Advogada dos médicos ex-Prevent: 'votei em Bolsonaro e me arrependi'
"Fui parar na Wikipedia." Entre elogios, críticas e memes, a advogada Bruna Morato, 33, conta ter se espantado com a quantidade de fake news circulando sobre ela, após ter passado oito horas depondo na CPI da Covid, em Brasília.
Nascida e criada em Santana, na zona norte de São Paulo, ela topou conversar com o TAB em seu escritório, em Guarulhos, porque o enfoque seria "ela mesma", não a razão de estar sob os holofotes desde a semana passada. Ela recebeu a reportagem enquanto carregava caixas de um lado para o outro.
Uma das falsidades que mais a surpreendeu foi a de que seria filha de um presidente de associação de hospitais interessado em minar a credibilidade da operadora de saúde Prevent Senior. "Muito pelo contrário. Fui criada por um militar que inclusive fez parte da ditadura no Brasil."
Bruna representa legalmente os doze médicos que trabalhavam que relataram pressões para receitarem kit covid a pacientes, na Prevent Senior. A advogada, que diz não gostar de ativismos nem de nada extremo, atua com resolução de conflitos de alta complexidade, utilizando técnicas de mediação, conciliação, negociação e, conforme descreve, comunicação não-violenta.
Mora na filosofia
Em um prédio comercial no centro de Guarulhos, a advogada apresenta o escritório que divide com o marido — o mesmo espaço que foi invadido em junho, conforme registrado em boletim de ocorrência. Tudo lá tem ar de antiquário. "Sou contra o descartável", ela afirma.
Na sala de reuniões decorada com móveis pesados de madeira, Bruna aponta para a reprodução de um quadro de Rafael Sanzio. Seu hobby não poderia ser mais óbvio: estudar história da arte.
Minutos depois, mais à vontade, entre bonecas de pano que aparecem no canto de outra sala, revela que sua princesa preferida é Jasmine, da Disney (do desenho "Aladdin"). "É também o desenho com a melhor trilha sonora", afirma.
Em outra sala, mostra uma tela que representa a luta do bem contra o mal. É onde ficam os dois estagiários do escritório. "Um deles gosta de mitologia nórdica", conta. Sobre crenças, diz que não segue nenhuma específica.
Bruna está sempre conectando passado e presente, mesmo que não perceba. Ela trata de equiparar as denúncias apresentadas — e consideradas por Omar Aziz (PSD-AM), o presidente da CPI, como "gravíssimas, estarrecedoras" — a fatos de sua história pessoal e ao que viveu com o homem que a criou.
Bruna cresceu num núcleo familiar conservador e foi criada por um casal de idosos do lado paterno. Ulisses, "pai-avô" e principal referência, foi um militar de carreira. "Ele sempre falava: 'preciso te educar porque vou partir mais cedo que os pais das suas amigas'. Não tinha celular, nem computador. Acabei crescendo 'low profile', como você disse."
A administradora Brunna Argondizo, amiga de infância, confirma. "Ela cresceu com idosos, então ela tinha essa ideia de cuidar dos outros." Foi querendo ser médica.
Quando Bruna era adolescente, Ulisses foi diagnosticado com câncer no pâncreas em estágio avançado. Para agradá-lo, escolheu estudar direito, algo impensável até então. Segundo a amiga, a jovem resolveu realizar o sonho do avô.
Bruna conheceu o marido na FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas), onde estudou. Estão juntos desde 2007, mesmo ano em que Ulisses faleceu, e são pais de duas crianças. Foram os cuidados paliativos que aliviaram a dor e o sofrimento nos últimos dias de vida de Ulisses.
Brunna Argondizo, a amiga, contou ao TAB ter dado risada quando viu Bruna na televisão. "Dez mil folhas é mesmo a cara dela. Eu era do fundão. Já ela sentava lá na frente, tinha uma canetinha para cada matéria."
Na faculdade, tinha pavor de perder a identidade, de virar uma figura arrogante e assustadora. Renata Giovanoni Di Mauro, uma professora, mostrou que ela poderia ser diferente. Outra referência é a advogada Claudia Stein, sua professora na pós-graduação. Não faltam diplomas de especialização na parede do seu escritório. Um deles a gabarita pelo "método Lótus" de inteligência emocional pela Sociedade Brasileira de Inteligência Emocional. O certificado da OAB data de 2011, um ano antes da sua formatura, em julho de 2012.
Como tudo começou
Bruna é consultora jurídica de alguns médicos vinculados à Prevent Senior desde 2014. Em março de 2020, no início da pandemia, eles estranharam as orientações do jurídico da empresa.
"Por favor, não informar o paciente ou familiar sobre a medicação nem sobre o programa", dizia uma mensagem de WhatsApp, datada do dia 25 daquele mês. "Procuraram minha opinião. Aí é aquilo: obrigar o médico a receitar medicação não é autonomia médica."
Bruna foi reunindo provas durante um ano e meio, com a anuência desses profissionais. O valor da consultoria aos médicos foi cobrado (ela não abre os valores), mas a advogada explica que sua presença na CPI não poderia jamais ter relação com qualquer pagamento. "É meu dever como cidadã. Cobrar por isso seria a mesma coisa de achar um cachorro na rua, devolver para o dono e pedir um resgate."
Em junho de 2021, com suas dez mil páginas, Bruna buscou alguém com quem pudesse dialogar tecnicamente sobre o dossiê, antes de apresentá-lo à CPI. Lembrou de Roberto Piccelli, que a acompanhou na sessão onde foi apresentada a denúncia de 66 páginas. O colega foi advogado de uma ação civil pública que resultou na proibição de campanhas publicitárias de kit covid bancadas com dinheiro público pela Secom (Secretaria de Comunicação) do governo Bolsonaro.
Bruna afirma não ter medo de ameaças e diz não se achar corajosa. "Coragem, pra mim, é pular de bungee jumping."
No Google, entre os assuntos em ascensão relacionados ao seu nome, estão "Partido - Tipo de organização". Surpresa com o interesse das buscas, contudo, a advogada diz que acabou de contratar uma assessoria de imprensa. Tem vergonha de falar de política e afirma que votou no presidente Bolsonaro. Diz que se arrependeu da escolha e não tem problema em assumir equívocos. Achou que o Brasil precisava de uma mudança. Quando viu os ministros — cita Sergio Moro e Luiz Henrique Mandetta —, acreditou que poderia dar certo. "Pensei que ele seria como uma rainha da Inglaterra. Sou meio ignorante nesse sentido."
O tal do hino
A advogada fala com propriedade sobre a Prevent Senior, cita nomes, entra em detalhes, mostra provas à reportagem e avalia que a empresa adota uma "cultura organizacional diferenciada", baseada no lema "lealdade e obediência", para justificar "condutas absurdas".
Mostrou um vídeo com médicos, todos com a mão no peito, cantando o intitulado "Hino dos Guardiões". A introdução parece saída de um episódio de "Game of Thrones". "Nascemos para trilhar, um caminho a nos salvar, nascemos para viver, de lutas até morrer", diz a letra.
"Era constrangedor", lamenta um dos doze médicos assessorados pela advogada. Ele é um dos três profissionais que saíram do anonimato e
está preocupado com os ataques recebidos depois que foi ouvido no "Fantástico". Preferiu não ser identificado na reportagem.
Segundo o médico, "os doze" não são um grupo. Muitos sequer sabem quais colegas estão entre eles. Acredita que o comodismo dos profissionais que se adequaram à cultura da Prevent, com salários que chegam a R$ 90 mil, é um dos fatores que mantém a maioria em silêncio. "Não vão falar. Tem muitos outros médicos que participaram [da criação do dossiê] com informações importantes, mas não aparecem formalmente na denúncia."
Ele conta que decidiu procurar Bruna Morato em abril. Sobre a razão de os médicos em questão não terem procurado o CFM (Conselho Federal de Medicina), ele aponta três principais: a impossibilidade de fazer denúncia anônima no órgão, o medo de represálias e o histórico de denúncias que não dão em nada.
Bruna admite que, num primeiro momento, foi ingênua ao alertar o jurídico da empresa sobre os desmandos, na esperança de que não soubessem exatamente o que estava acontecendo. "E aí as pessoas ficaram criando conjecturas malucas: 'o que ela está fazendo ali'?! Eu estava fazendo o que qualquer pessoa devia fazer, após apurar uma história: falar a verdade e fazer uma denúncia."
Proposta de acordo
Em nota enviada à reportagem, a Prevent Senior "nega e repudia as acusações mentirosas levadas anonimamente à CPI da Covid e à imprensa". Afirma que, antes da CPI, a advogada levou as denúncias à empresa e pediu a formalização de um acordo milionário para não acusar a Prevent. Sobre as provas apresentadas, diz que se trata de "mensagens editadas ou truncadas, fora do contexto original, que devem ser apuradas e periciadas por investigadores técnicos e órgãos reguladores para que se chegue à verdade dos fatos. Lamentavelmente, aos moldes do que aconteceu nos piores tempos da Operação Lava Jato, atacou-se primeiro a reputação de uma empresa, para depois esclarecer os fatos".
A nota segue. "Ao longo da epidemia, a Prevent aplicou cerca de 500 mil testes em que constatou o contágio de 56 mil pacientes. Desse número, 7% redundaram em mortes, taxa menor do que a média dos outros serviços. Todos os casos foram rigorosamente notificados. A Prevent Senior sempre respeitou a autonomia dos médicos, nunca demitindo profissionais por causa de suas convicções técnicas.
Esse índice de 93% de vidas salvas, na faixa etária média dos 68 anos de idade, é, comprovadamente, superior ao que se registra nos hospitais das redes pública e privada. Não por acaso, o índice de confiabilidade e aprovação da clientela da Prevent Senior é superior a 90%."
'Tenho vergonha de você'
Sobre as alegações de que o dossiê traz dados inverídicos, Bruna responde calmamente que escolheu levar à CPI dois casos específicos (o do médico Anthony Wong e o da mãe de Luciano Hang). "A verdadeira causa do óbito, em decorrência da covid-19, é omitida na certidão para continuar propagando um tratamento que nunca funcionou." Nesse caso, também existe crime de falsidade ideológica.
A reportagem insiste para que Bruna liste quais crimes a Prevent cometeu, mas ela não cede. "Os médicos fizeram relatos de quais eram as possíveis irregularidades. Na minha visão eram pavorosos, mas prefiro não falar." Joga então para as autoridades.
Bruna espera que a força-tarefa montada pelo MP de São Paulo avance. Também acredita que a CPI chegará a algum lugar. A advogada vem recebendo bastante apoio, mas lamenta que pessoas próximas e familiares tenham se perdido na ideologia, em nome de um tratamento ineficaz para a covid-19 e sobretudo perigoso.
Informal, troca de blusa para as fotos e fala que está precisando de um corte de cabelo. Também faz questão de posar em frente à tela de uma mulher de olhos vendados que incorpora a imagem da Justiça, ao lado do aquário na sala do marido. "Recebo ligações de familiares que dizem 'tenho vergonha de você'. O que importa é que tenho comigo a verdade."
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