'Doença não é sentença de morte', diz paciente de cuidados paliativos em SP
A voz encorpada de Cândido Jorge Torres, 69, que já fez muito sucesso quando apresentava programas de rádio, rompe o silêncio do quarto de hospital. Está mais baixa e arrastada do que antes, consequência do tumor descoberto há cinco anos e meio. A má notícia veio quando ele participou de um protocolo de pesquisa de câncer no Hospital São Camilo (SP), pelo SUS: a pinta no lado direito de sua face era um melanoma.
O locutor não suavizou a realidade. "É o começo de uma nova vida. E essa nova vida vai trazer para mim algumas dificuldades", pensou. Tampouco perdeu o chão. "Antigamente o diagnóstico de câncer era uma semimorte, porque não havia tantos tratamentos. Agora é uma vida diferente. Mas é vida ainda". Só ficou triste por se afastar do trabalho. O câncer na região da parótida não demorou a ser removido. Após três meses de recuperação, voltou à rotina.
Depois de um ano, no entanto, o melanoma reapareceu no pé do ouvido. Cândido foi operado novamente e ficou mais uns meses de molho. Como a doença não tinha cura, continuou recebendo acompanhamento da equipe de cuidados paliativos do mesmo hospital e seguiu em frente. Quando veio a pandemia, estava na rádio Multi FM, de Guarulhos, onde apresentava o programa "Só Lembranças'', aos sábados à tarde.
Sentia-se realizado atendendo as ligações de ouvintes que pediam músicas antigas. O lado financeiro também contava, já que ele não é aposentado. Mas, por fazer parte do grupo de risco, foi orientado a ficar em casa.
A paixão de Cândido pelo rádio vem de longa data, mas nunca imaginou que estaria em um. Foi pintor de paredes até o dia em que telefonou para um programa. "Não sei o que estou fazendo aqui porque o senhor do lado de lá tem uma boa voz", disse o radialista.
Em seguida, recebeu o primeiro convite para ser locutor. Recusou. Só aceitou o terceiro, feito diretamente pelos donos da emissora. E lá se vão 17 anos. Deitado na cama hospitalar, Cândido se anima ao contar essas histórias. Em junho desse ano, descobriu que estava com metástase no fígado. E na semana anterior foi internado com icterícia, a primeira internação depois das duas cirurgias e de muitas sessões de quimioterapia e radioterapia.
Antes de dar entrada no hospital, Cândido ficava em casa, na Vila Matilde, passando boa parte do tempo em repouso e sendo cuidado pela esposa e pela filha, já que o filho mora em outro endereço. Tinha uma vida bem normal, como define, apesar da fraqueza nas pernas e das dores no abdome. Fora submetido também a uma CPRE (colangiopancreatografia retrógrada endoscópica) que colocou um stent para dilatar as vias biliares e eliminar a icterícia. A ideia era se fortalecer para começar a imunoterapia, que poderia estacionar ou diminuir o tumor.
Não foi o que aconteceu. "A gente conversou ontem que mesmo que o câncer tenha se espalhado, isso não significa o fim. Independente do momento em que ele esteja, a gente está com ele até a hora que Deus quiser, sem saber quando vai ser, não é, seu Cândido?", diz Caroline Hipólito, enfermeira de cuidados paliativos que está no quarto. Além da pele amarelada, o locutor respira devagar por causa do cansaço. Mais cedo, sentiu uma "dor nova" e temeu não ter condições de conversar com a reportagem do TAB. Para suportar essa dor, está tomando um soro com analgésicos.
Durante a entrevista, ele pega o celular na cama e mostra o áudio do poema "A flor do maracujá", do poeta Catulo da Paixão Cearense, que declamou na rádio. Enquanto a voz de Cândido enche o ambiente com o texto que parece uma oração à natureza, ele mantém o olhar distante, como se pudesse atravessar a parede do quarto. Assim que a gravação acaba, ele confessa o desejo de voltar aos estúdios. "O meu lugar está me esperando".
Para isso, se agarra à fé. "A fé nada mais é do que uma planta que a gente tem que regar todos os dias. Senão, ela definha e acaba morrendo. Peço a Deus para, se não me curar, pelo menos me manter vivo". Ele se imagina aproveitando a vida na chácara que a filha comprou, em Salto do Pirapora. "O meu sonho é pequeno. Enquanto eu estiver na casa nova nos fins de semana, terei condições de fazer um programa na rádio Transversal FM". Cândido faleceu no dia seguinte.
Vivendo um dia de cada vez
De repente, Joyce Thais de Figueiredo Souza, 36, sentiu uma dor forte na mama direita. Era agosto de 2016. Notou o seio vermelho, com aspecto de casca de laranja, o bico para dentro e saindo dele um líquido marrom. Mesmo a mamografia e a biópsia revelando o câncer em estágio avançado, ela só se deu conta da gravidade dois dias depois, durante uma conversa com a chefia da UTI do hospital onde trabalhava como técnica em farmácia. Quando a ficha caiu, teve uma crise de ansiedade e desmaiou.
Joyce tinha mudado de lado. Em vez de dar medicamentos para os pacientes oncológicos, passou a recebê-los. O pior foi ver o desespero da família. Tentou transparecer que estava bem. Precisava ser forte pelo casal de filhos pequenos, pois queria vê-los crescer. Passados dois anos da mastectomia e das sessões de quimioterapia e radioterapia, o câncer foi para a mama esquerda. Dessa vez, os médicos optaram apenas por seguir com os remédios.
Ainda digerindo a notícia, soube que estava com metástase nos pulmões e precisou remover uma parte do pulmão direito. Isso não foi tudo. No ano seguinte, começou a sentir muita dor de cabeça. O diagnóstico? Cinco nódulos malignos. Joyce manteve a calma. "Lidei melhor com a doença vindo uma metástase atrás da outra porque consegui tratar todas de uma vez", conta. O tumor na cabeça foi tratado com radiocirurgia e radioterapia.
Desde então, Joyce está sob cuidados paliativos no Hospital São Camilo de Santana, tratamento coberto pelo plano de saúde. Atualmente faz quimioterapia uma vez por semana, toma medicamentos e faz fisioterapia para combater o linfedema da mão direita. Não pôde mais trabalhar. Tentou vender produtos personalizados, mas não deu certo. Está provisoriamente aposentada por invalidez.
Embora os tumores na cabeça e nos pulmões tenham aumentado, as dores de cabeça e o cansaço diminuíram. Joyce já não fica tão esgotada ao conversar ou subir os dois lances de escada na parte externa de sua casa, em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. Também não se incomoda com os olhares dos quais é alvo quando perde os cabelos. Certa vez um homem insinuou que ela estava imitando uma cantora americana. "Senhor, estou careca por causa do tratamento de um câncer e não tenho vergonha disso". Ele se calou.
Joyce vê o câncer com naturalidade. Passou a se comportar com mais paciência e positividade, como observa o marido. "Ela não desistiu. Está sempre firme. Tem os altos e baixos da vida que até nós, que não temos nenhuma doença, temos. Mas graças a Deus, essas recaídas são poucas. Não tomam um grande tempo da vida dela", afirma Anderson de Souza. O tempo, ela usa com a família ou divulgando o livro "Contém esperança: histórias sobre viver e conviver com uma doença grave", onde publicou uma carta emocionada que escreveu aos filhos.
Ou sonhando em levá-los à Disney. Ou planejando comprar uma casa. Só não há espaço para o medo em seus pensamentos. "Vou morrer como todo mundo vai. Pode ser de câncer ou não. Que eu possa ter uma vida normal enquanto puder e tiver os profissionais, as medicações e os recursos que existem hoje em dia. Tenho a doença, mas não encaro como uma sentença de morte", conclui.
De acordo com a OMS, os cuidados paliativos são um conjunto de cuidados feitos para a pessoa que sofre de uma doença grave ou incurável que ameace a vida — e também para sua família, com o objetivo de aliviar o sofrimento, melhorando o bem-estar e a qualidade de vida dos envolvidos.
Na explicação da enfermeira paliativista do Hospital São Camilo, tudo o que tiver indicação médica e possa fazer bem ao paciente, é feito. "Mas existem momentos da doença em que a gente sabe que, infelizmente, a gente não vai conseguir reverter nem tratar a causa principal. O paliativo cuida de todo esse momento. Desde o momento do diagnóstico da doença incurável até o fim."
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