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'Nosso Robson Crusoé': a luta por marmitas que matam a fome no centro de SP

Distribuição de marmita no Movimento Estadual da População de Rua de São Paulo - Gabi Di Bella/UOL
Distribuição de marmita no Movimento Estadual da População de Rua de São Paulo
Imagem: Gabi Di Bella/UOL

Tiago Dias

Do TAB, em São Paulo

29/09/2021 04h00

São 11h da manhã de sexta-feira (25) e uma fila de pessoas dobra a esquina da Rua José Bonifácio com a Praça da Bandeira, na região da Sé, em São Paulo, em uma cena cada vez mais frequente pelo centro.

É ali a base do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo, um dos quatro locais de distribuição de marmitas que ainda resistem durante a pandemia, mas que no início daquela semana estava ameaçado de não ter mais refeições para entregar.

Sentada no meio fio, Katia da Silva, 38, disse ter visto a notícia na TV. Recém-viúva e com quatro filhos, ela mora num quartinho e diz nem imaginar o impacto caso isso acontecesse. "Só recebo R$ 150 do governo, estou com quatro meses de aluguel atrasado", diz.

Ao seu lado, Alcinete Maria, 48, pede para não aparecer nas fotos. Quer evitar que familiares a reconheçam na imprensa. "Eles têm alto nível, mas todo mundo fecha os olhos, e eu não posso me trancar em casa. Não consigo comprar uma bolacha", diz, em tom de desespero.

Kátia e Alcinete não se conhecem, mas são exemplos de como o perfil naquela fila mudou com a chegada da covid-19. A diversidade é evidente dos pés à cabeça. Há quem apareça descalço, enquanto outros aparecem com uniforme de trabalho. A massa heterogênea inclui mães jovens, menores de idade, idosos, negros, brancos, homens, mulheres, travestis. A fome, ali, parece democrática.

Coordenador do Movimento, Robson Mendonça, 67 diz nunca perguntar se a pessoa está em situação de rua ou não: "Essa é a ideia: não deixar ninguém com fome", diz. Ele começou a semana de forma turbulenta após saber que a prefeitura planejava reduzir os pontos e refeições do Cozinha Cidadã. Os cortes já aconteciam há um mês, sob a ameaça de extinção total. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo e o Ministério Público chegaram a pedir a manutenção do programa emergencial, mas a Justiça negou a decisão.

Num ato extremo, Robson acordou naquela segunda (20), vestiu seu uniforme de trabalho — um avental branco que veste em cima de camisa, bermuda e chinelos — e se acorrentou na grade em frente à Câmara de Vereadores.

Robson Mendonça, presidente do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo; acima, quando se acorrentou na frente da Câmara dos Vereadores - Gabi Di Bella/UOL - Gabi Di Bella/UOL
Imagem: Gabi Di Bella/UOL
Robson Mendonça se acorrenta em frente à Câmara de Vereadores - Divulgação - Divulgação
Robson Mendonça, presidente do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo, se acorrenta na frente da Câmara dos Vereadores
Imagem: Divulgação

O plano era fazer uma greve de fome, até a prefeitura se pronunciar sobre a continuidade do programa. Passou seis horas acorrentado quando as câmeras apareceram e os assessores garantiram a reunião com o presidente da Câmara, Milton Leite (DEM). O vereador ligou para o prefeito Ricardo Nunes (PSDB) na frente de Robson e desligou garantindo que o Cozinha Cidadã seguiria até dezembro.

No dia seguinte, uma faixa apareceu em frente à sede do Movimento. Foi feita coletivamente por alguns moradores de rua. Dizia: "Bom dia. Muito obrigado por sempre lutar pelos pobres, Sr. Robison (sic)."

Distribuição de marmita no Movimento Estadual da População de Rua de São Paulo - Gabi Di Bella/UOL - Gabi Di Bella/UOL
Imagem: Gabi Di Bella/UOL
Robson Mendonça, presidente do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo - Gabi Di Bella/UOL - Gabi Di Bella/UOL
Sede do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo
Imagem: Gabi Di Bella/UOL

A história de Bigode

Robson Mendonça é um senhor gaúcho cujos cabelos e o bigode grisalhos, além do corpo parrudo, lhe dão um aspecto típico de um avô bonachão — impressão que se desmancha com a voz grave e sempre alta. Ali, o chamam de pai, bigode ou defensor.

Ele é presidente da associação, reconhecida como ONG em 2010, focada na inclusão social de moradores de rua, com serviço de emissão de documentos e indicações de cursos gratuitos, empregos e tratamentos médicos.

O acesso à cultura é um dos pilares do Movimento, como é o caso das biciclotecas — bikes itinerantes que distribuem livros a essa população. A ideia veio de quando o próprio Robson morava na rua. Precisava escrever um ofício e sentiu dificuldade. Tentou ler mais, mas, sem residência fixa, não conseguia usufruir das bibliotecas municipais. Hoje, seu favorito é "A Revolução dos Bichos", de George Orwell.

Robson Mendonça, presidente do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo - Gabi Di Bella/UOL - Gabi Di Bella/UOL
Imagem: Gabi Di Bella/UOL
Puff prepara sopa no Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo - Gabi Di Bella/UOL - Gabi Di Bella/UOL
Puff prepara sopa no Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo
Imagem: Gabi Di Bella/UOL

Filhos e netos

O relógio marca 11h30 e a fiscal Vilma Fonseca pesa as últimas marmitas entregues pelos restaurantes conveniados ao programa. Aos estabelecimentos, a prefeitura paga R$ 10 por marmita, mas é preciso seguir uma série de orientações: cada quentinha precisa ter no mínimo 600 gramas e uma mistura de carne com legumes.

Numa balança pequena, ela abre uma das embalagens — só com arroz, macarrão e almôndegas ao molho. O visor aponta pouco mais de 500 gramas. "Essa aqui já veio errada", diz.

Naquele dia, o ponto recebeu 400 marmitas vindas de restaurantes, e mais 150 estavam sendo preparadas na cozinha improvisada nos fundos do escritório. "É o mestre-cuca aqui que faz", Robson aponta para um jovem de boné que diz se chamar Puff. Dentro de uma panela grande, borbulha uma sopa com macarrão, atum e legumes.

O corredor que dá acesso ao espaço é decorado com fotos de moradores de rua. É a primeira coisa feita quando alguém procura o Movimento, como se fosse preciso, antes de qualquer coisa, tirar aquelas pessoas da invisibilidade.

Ele aponta para uma imagem em especial, onde um rapaz negro, com bermuda e camiseta, tem o rosto quase ofuscado pela luz que irradia de uma janela. "Esse filho aqui a polícia matou quando tinha 21 anos", diz. "São todos filhos de criação, os de sangue morreram."

No centro do mural, a imagem de Robson já grisalho, mas com muitos quilos a menos, aparece maltrapilho. Época da rua. "Ver isso me ajuda a ter ânimo na vida."

No escritório, fotos dos "netos" estão pela parede e decoram a mesa onde um monitor mostra mensagens de WhatsApp. Ele checa se a reunião com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, que cuida do programa, vai mesmo acontecer. O assunto a ser debatido era o aumento do número de marmitas do programa. "Parece que eles não vão mais me receber agora à tarde", diz.

Robson Mendonça, presidente do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo - Gabi Di Bella/UOL - Gabi Di Bella/UOL
Imagem: Gabi Di Bella/UOL
Robson Mendonça se exalta após princípio de briga: "Aqui nunca tem polícia, porque eu mesmo já boto ordem"; na foto acima, ele aponta para imagem da época que era morador de rua - Gabi Di Bella/UOL - Gabi Di Bella/UOL
Robson Mendonça se exalta após princípio de briga: "Aqui nunca tem polícia, porque eu mesmo já boto ordem"; na foto acima, ele aponta para imagem da época que era morador de rua
Imagem: Gabi Di Bella/UOL

Sobreviventes do náufrago

O relógio aponta 11h50 quando duas travestis entram na fila. Dizem procurar diariamente por marmitas. "É sempre aqui ou no chá do Padre", diz Rebeca, 26, citando a distribuição de alimentos feita pelo Padre Júlio Lancelotti há poucos metros dali, na rua Riachuelo, onde outra fila se forma simultaneamente. A amiga tem o rosto inchado, com alguns machucados. "Eu sou nova aqui", diz. "Vim do Pará."

Alguém tenta furar a fila. Um homem ameaça outro: "Vou te matar!". Enérgico, Robson entra no meio dos dois aos gritos: "Eu já avisei! Eu quero respeito! Aqui não tem criança!".

"Eu não posso deixar virar bagunça", diz Robson, ainda exaltado. "Aqui nunca tem polícia, porque eu mesmo já boto ordem."

Nicolas Ceandrini, voluntário há três anos, observa que o patrono está até calmo para a ocasião. "Enquanto não saltar a veia na cabeça, tá tudo bem. Ele é nosso Robson Crusoé", diz, comparando-o ao personagem do romance escrito por Daniel Defoe, sobrevivente de um náufrago que se vê entre deixar-se levar pela maré ou lutar pela vida.

Puff e mais quatro voluntários levam as caixas de isopor para a calçada e pedem espaço: "Olha o pesado!" A distribuição então começa. Os primeiros da fila saem com sorriso no rosto e pedem para aparecer nas fotos.

Distribuição de marmita no Movimento Estadual da População de Rua de São Paulo - Gabi Di Bella/UOL - Gabi Di Bella/UOL
Imagem: Gabi Di Bella/UOL
Adilson Vila Santos na fila de distribuição de marmita no Movimento Estadual da População de Rua de São Paulo - Gabi Di Bella/UOL - Gabi Di Bella/UOL
Adilson Vila Santos, há cinco anos morador da Praça da Sé
Imagem: Gabi Di Bella/UOL

Com a camiseta da Seleção Brasileira (azul), Adilson Vila Santos, 41, é um deles. Morador da Praça da Sé há cinco anos, diz o quão difícil é conseguir o cartão de acesso do programa Estadual Bom Prato, para onde a prefeitura queria enviar os beneficiários do Cozinha Cidadã. "Poucos conseguem e, às vezes, eu não tenho nem 1 real", diz.

Já Gilberto Camporez, 34, diz que o problema na cidade é sempre o mesmo: "continuidade". Nos últimos dez anos, ele conta ter saído e voltado para a rua algumas vezes. Em 2018, na fase boa, foi aos Estúdios Globo participar do programa "Encontro com Fátima Bernardes", graças ao trabalho com poesia. Na época, havia acabado de lançar o livro "Velha Calçada". "Policial que me bateu, veio me dar os parabéns e comprar meu livro", faz questão de observar. Conta que guarda os últimos 150 exemplares do seu livro na casa de um amigo — e alguns versos de cor na cabeça. "Posso falar uma pra você?", pede.

Lembra o dia que eu não tinha lugar pra dormir?
Pois você deu um jeito, e dormimos juntos
Teve um dia que eu desmaiei por sentir fome
Então você me segurou e esperou que a emergência chegasse
Quando sai do hospital você ainda me esperava
Obrigado, velha calçada

Marmita distribuída no Movimento Estadual da População de Rua de São Paulo - Gabi Di Bella/UOL - Gabi Di Bella/UOL
Imagem: Gabi Di Bella/UOL
O escritor Gilberto Camporez come marmita distribuída no Movimento Estadual da População de Rua de São Paulo - Gabi Di Bella/UOL - Gabi Di Bella/UOL
O escritor Gilberto Camporez come marmita após recitar poesia
Imagem: Gabi Di Bella/UOL

São 12h11 quando as marmitas acabam. Um senhor desce a ladeira com dificuldade e já encontra as caixas de isopor vazias. "Ele vem todo dia, há um ano e meio. Coitado, hoje chegou atrasado", observa Ceandrini.

Muitos outros depois chegariam, entre eles um gari, vestido com o uniforme laranja, e uma senhora amparada por uma amiga: "Eu acho que aposentado nem tinha que estar aqui. Por isso acaba tudo", resmungou.

A reunião com a Secretaria atrasou, mas aconteceu no final daquela tarde. Segundo Robson, ficou acordada a tentativa de aumentar gradativamente o número de marmitas, além de viabilizar um programa municipal para substituir o Cozinha Cidadã a partir de 2022. "A pandemia pode até passar, mas essas pessoas continuarão impactadas pela crise", observa.

Oficialmente, a Secretaria confirma a continuidade do serviço em três pontos de distribuição de comida e diz que são entregues diariamente 2.320 marmitas; outras 13 mil são entregues em comunidades. Em nota enviada ao TAB, não cita a ameaça de extinção, nem o novo prazo: "O programa desenvolvido em caráter emergencial no início da pandemia para atender a população em situação de rua está mantido e passa por transição para garantir a segurança alimentar em condições mais adequadas na cidade de São Paulo."

Na segunda-feira (27), dia em que por pouco ficaria sem a distribuição de refeições, Robson informou à reportagem que recebeu 700 marmitas de restaurantes. Estava feliz. "Dessa vez ninguém ficou sem", garantiu.