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Para cientistas ouvidos pela CPI da Covid, relatório dá cara ao caos

O médico sanitarista Claudio Maierovitch na CPI  - Jefferson Rudy/Agência Senado
O médico sanitarista Claudio Maierovitch na CPI Imagem: Jefferson Rudy/Agência Senado

Mateus Araújo

Do TAB, em São Paulo

21/10/2021 04h01

Se no glossário negacionista — grande adversário do combate à pandemia — as palavras "ciência" e "cientista" não merecem muito crédito, elas foram, por outro lado, fundamentais para a composição das mais de 1.100 páginas do relatório apresentado pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL) à CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Covid.

O documento que sugere indiciar 68 pessoas, incluindo o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), compila uma longa argumentação de médicos, pesquisadores e professores, a maioria denunciando e criticando as ações do governo nestes quase dois anos de pandemia. Alguns deles estão fora do Brasil, desenvolvendo pesquisas em universidades estrangeiras, como é o caso da microbiologista Natalia Pasternak, desde julho na Universidade de Columbia, e o epidemiologista Pedro Hallal, professor visitante na Universidade da Califórnia, em San Diego.

Hallal conversou com o TAB na quarta-feira (20), logo após a leitura do relatório da CPI. Professor da Escola Superior de Educação Física da UFPel (Universidade Federal de Pelotas) e coordenador do EpiCovid-19, o maior estudo epidemiológico sobre coronavírus no Brasil, ele depôs à Comissão em 24 de julho de 2021.

"Assisti a partes. Estava no meio de reuniões, mas fiquei dando umas paradas para ver a transmissão, e já havia lido trechos do relatório que estava disponibilizado", conta. "Tem muito do relatório que foge da minha alçada, porque são tipificações que entram numa linguagem jurídica que não domino. Mas, em relação à questão da pandemia, digo que o relatório faz justiça ao apontar os responsáveis por boa parte dos equívocos [na condução da política pública de controle da crise sanitária]."

Para Hallal, o relatório de Renan Calheiros atinge seu principal objetivo — que é dar cara ao caos — justamente ao nomear o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e o presidente Jair Bolsonaro como alguns dos culpados pelo quadro grave do Brasil. "Esse é o resultado natural. Antes da pandemia, se me perguntasse quem eram os responsáveis, eu diria: eles dois."

Entre os crimes de Bolsonaro descritos no relatório estão prevaricação, charlatanismo, crimes contra a humanidade, de responsabilidade, incitação ao crime e falsificação de documento particular. Pazuello é acusado de crime contra a humanidade, epidemia com resultado morte, emprego irregular de verbas públicas, comunicação falsa de crime e prevaricação.

O epidemiologista Pedro Hallal, durante depoimento na CPI. - Edilson Rodrigues/Agência Senado - Edilson Rodrigues/Agência Senado
O epidemiologista Pedro Hallal, durante depoimento na CPI
Imagem: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Genocídio de indígenas

O depoimento de Pedro Hallal à comissão foi um dos reforços para a tese de que a gestão Bolsonaro cometeu crime de genocídio de indígenas durante a pandemia. A acusação, no entanto, ficou fora do relatório de Calheiros, após acordo entre os senadores do grupo que controla as ações da CPI — não sem discussões.

À comissão, Hallal contou que foi censurado pelo governo federal numa coletiva de imprensa, um ano antes. Na ocasião em que apresentava os dados do EpiCovid-19, um slide contendo informações sobre a pandemia entre indígenas foi cortado sem seu consentimento.

"A minha consideração é técnica, e não jurídica. O estudo que a gente conduziu — o maior estudo epidemiológico sobre a covid-19 no Brasil — mostrou que a população indígena tinha cinco vezes mais risco de contaminação do que a população branca", lembra. "Se isso [a diferença no índice] aconteceu por acaso ou se isso acontece por uma política equivocada do governo, não cabe a mim dizer. O que digo é que existe uma infecção em nível muito mais alarmante na população indígena do que na branca."

Fiel ao que foi exposto

Ao depor à CPI em 11 de junho de 2021, o médico sanitarista Claudio Maierovitch, da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), foi taxativo: disse que "a população brasileira é tratada como animal", ao criticar a gestão do governo Bolsonaro com relação à pandemia. "O governo se manteve na posição de produzir imunidade de rebanho, com essa conotação toda, para a população, em vez de adotar medidas reconhecidas pela ciência para enfrentar a crise", afirmou ele, no Senado.

Nesta quarta-feira, o relatório que resultou do depoimento dele e dos demais convocados à Comissão, diz o pesquisador, mostrou-se "fiel a tudo apresentado, às entrevistas e às informações apontadas desde o início das ivestigações". "É uma farta documentação", comentou ao TAB, por telefone.

Presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) de 2003 a 2008, e chefe de Vigilância de Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde, de 2011 a 2016, Maierovitch avalia que, do ponto de vista da saúde pública, não houve surpresa nas sugestões de indiciamentos do relatório da CPI, "mas, sim, o reconhecimento de tudo que foi apontado por diversos profissionais, autoridades políticas e representantes da sociedade".

O primeiro ponto importante nas acusações, segundo o sanitarista, foi destacar a omissão do governo federal no enfrentamento à pandemia. "Até hoje não há um plano para contenção de disseminação do vírus", diz ele. "Pelo contrário. O presidente passou esse tempo todo tentando impedir que houvesse qualquer tipo de medida — tentando, por exemplo, impedir que prefeitos e governadores restringissem o funcionamento de certos setores da economia."

Outros temas que constam no relatório e com os quais Claudio Maierovitch concorda são as acusações referentes à tentativa da disseminação intencional do vírus, o atraso na compra das vacinas, a divulgação de falsas notícias e as medidas de prevenção baseadas na prescrição de medicamentos ineficazes - o chamado kit-covid. "Sabemos que isso significou mais gente doente, mais sofrimento e mais mortes. O relatório traz isso e atribui a essas atitudes a dimensão da tragédia - dos que morreram e dos que ainda vão sofrer com as consequências da doença."

O médico sanitarista Claudio Maierovitch e a microbiologista Natalia Pasternak durante depoimento na CPI  - Jefferson Rudy/Ag?ncia Senado - Jefferson Rudy/Ag?ncia Senado
O médico sanitarista Claudio Maierovitch e a microbiologista Natalia Pasternak durante depoimento na CPI
Imagem: Jefferson Rudy/Ag?ncia Senado

Legado

A presença de cientistas na CPI e a importância de seus relatos para o inquérito expõem uma contradição peculiar do governo Bolsonaro: embora estudos científicos sejam fundamentais nas respostas mais rápidas ao controle da covid-19, o Brasil realizou sucessivos cortes ao financiamento público para a ciência. Recentemente, em 7 de outubro, o Congresso Nacional aprovou um projeto, a pedido do ministro da Economia, Paulo Guedes, para retirar R$ 600 milhões do orçamento federal previstos para bolsas de pesquisa. A decisão deve afetar cerca de 30 mil pessoas.

Mas a CPI pode chamar mais atenção da sociedade para a ciência, acreditam os médicos entrevistados pelo TAB. "Para parte da população que está bem informada não é novidade que o governo não apenas nega ciência como procura sabotá-la. Mas a CPI permitiu que isso viesse à tona para um público muito mais amplo", diz Claudio Maierovitch.

O mesmo acredita Pedro Hallal. Para ele, "a comissão ensinou a todos". "Para os cientistas, ensina que nós temos que falar uma linguagem menos técnica, rebuscada e mais popular. Para a população, ensina que, como qualquer filme de tragédia que começa ignorando a ciência, é importante confiar nos cientistas. Para o governo, ensina que se deve financiar a ciência como política de estado."