'Radicalizei', diz o ator José de Abreu, prestes a lançar candidatura
Nevou na Grécia no inverno de 2019, quando uma corrente de ar do Ártico derrubou a temperatura para -20°C. José de Abreu estava na casa de um amigo de longa data na ilha de Andros, a cerca de 35 milhas náuticas (65 km) de Atenas, fazendo hora para voltar ao Brasil.
José não gosta de invernos, fica um tanto "deprê". Tomou uns tragos, jantou, conversou e se viu sozinho quando os convivas foram dormir. Abriu o Twitter e, ao passar por postagens sobre Juan Guaidó, o opositor que se proclamara presidente da Venezuela, não se conteve: declarou-se presidente do Brasil.
"Uma atitude impensada", o ator definiria em sua autobiografia "Abreugrafia" (ed. Ubook), à qual o TAB teve acesso, ainda com anotações do autor digitadas às margens. Já era madrugada na Grécia, mas 20h no Brasil, "hora em que a internet ferve". José postou, foi dormir e acordou com milhares de notificações no smartphone. "Atitudes impensadas" o levariam outras vezes aos "trending topics".
Após finalizar as gravações de "Um Lugar ao Sol", que estreia em 8 de novembro, e à espera do lançamento do livro no dia 17, prestes a se mudar para Portugal e de olho na disputa para deputado federal pelo PT-RJ, @zehdeabreu vem disparando posts aos seus mais de 478 mil seguidores — muitas vezes a esmo, como quem se perde num personagem de "artista maluco, ator que diz o que quiser", palavras suas.
"Não, amor, não está certo isso", às vezes lhe diz a mulher, a maquiadora Carol Junger, 23. "E ele me ouve. E se corrige", contou ela ao TAB por Zoom, em 18 de outubro. Era noite de segunda-feira e o casal beliscava romeu e julieta no Jardim Oceânico, área nobre na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio. "Ele é esquentadinho, não leva desaforo para casa."
"Sou homem, branco, cis, classe média, não tenho escapatória, não posso cometer mais esse tipo de erro. Tenho consciência política e consciência dói. Sei que não é plena, o tempo todo. Sei que me falta entender o que é ser mulher, ser negro, indígena ou gay, embora eu tente crescer a cada dia."
E agora, José?
Embora tente "mulherar", como certa vez declarou, mulheres estão entre os principais pontos cegos do ator.
"Se encontro na rua, soco até ser preso", José retuitou, referindo-se à deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP). O post, machista e violento, foi criticado.
"Muito nos espanta que alguém já consagrado na profissão artística possa confundir liberdade de expressão com 'direito à ofensa', direito este jamais previsto em nossas Constituições desde os tempos imperiais até hoje", destacou, em nota, a Secretaria da Mulher.
Em artigo para a Folha de S.Paulo, Tabata Amaral escreveu: "Jamais seremos um país realmente democrático enquanto a política não for um espaço seguro, física e psicologicamente, para as mulheres. E isso só acontecerá quando tivermos tolerância zero com a intolerância, independentemente de quem seja o alvo ou o agressor."
"Errei redondamente", o ator disse em live com a ativista feminista Lola Aronovich, professora da UFC (Universidade Federal do Ceará). Ambos de esquerda, são amigos de internet.
Lola foi quem fez o convite para que José pudesse "pedir desculpas de verdade, sem 'mas'" — sem tentar justificar a atitude misógina. Para ela, o pedido foi sincero.
Em fevereiro de 2020, quando a atriz Regina Duarte aceitou o convite do presidente Jair Bolsonaro para liderar a Secretaria Especial de Cultura, José foi mais uma vez ao Twitter: "Lembra de quantos gays lhe tiraram rugas? Coloriram seus cabelos brancos? Criaram figurinos para esconder suas banhas?", provocou.
Ante as críticas, retrucou, em áudio à coluna de Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo: "Para mim, não interessa se é homem ou mulher. [...] Fascista não tem sexo. Eu não vou parar. Eu sou radical mesmo e estou num caminho sem volta."
Um Zé no volante
Os episódios de Regina e Tabata não foram contemplados nos livros. A narrativa vai até sua autodeclarada Presidência.
"Antes da Fama", cuja capa traz uma foto de 1968 do ator, fichado no Dops, conta a infância e a adolescência do paulista de Santa Rita do Passa Quatro. O segundo volume, "Depois da Fama", estampado com um retrato de 2012, cruza sua trajetória com novelas de sucesso como "Pantanal" (1990), "A História de Ana Raio e Zé Trovão" (1991), "Renascer" (1993), e "Avenida Brasil" (2012), entre outras.
Um fio condutor notado nos livros é a passagem do tempo segundo o carro que o ator dirigia à época.
José já foi investigador policial rodando com uma Rural Willys verde e branca, chapa fria, em São Paulo; revendeu queijo a bordo de um Ford Bigode viajando para Santa Rita; vendeu máquinas de escrever com um DKW-Fissore bege, que também era usado para levar camaradas da Vanguarda Armada Revolucionária, a VAR-Palmares para lugares seguros — os passageiros deviam ficar de olhos fechados o tempo todo, pois, se presos, não saberiam indicar trajeto ou endereço.
O autor não tinha percebido as menções a carros, o que viu como sintomático do quanto automóveis são citados como se fossem "prolongamentos do pênis", afirmou ao TAB, em conversa por Zoom. Atualmente anda só com apps.
No fim da década de 1960, ingressou no curso de direito na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). No primeiro dia de aula, conheceu José Dirceu, então presidente do Centro Acadêmico 22 de Agosto, que foi discursar sobre as leis que tornaram ilegais a UNE e outras organizações. Ali embarcou no movimento estudantil, junto à DI-SP (Dissidência Paulista), e no teatro da universidade, o TUCA, ligado à AP (Ação Popular). Ali, deu os primeiros passos como artista; primeiro nos bastidores, como produtor, depois nos palcos, como ator.
C'est la vie
José Pereira de Abreu Júnior, 75, estreou na TV com "As Três Marias" em 1980, mas foi em "Anos Dourados" que quase se perdeu no personagem: ele interpretava Major Dornelles, um galã que amava tanto a mulher (interpretada por Nívea Maria) quanto a amante (Betty Faria).
O ator fez análise por mais de 15 anos, segundo sua conta, pois precisava "aterrissar". "Geminiano, com lua e ascendente em Peixes, se não colocasse ao menos uma ponta do dedão no solo, eu não duraria muito", relatou.
Nas palavras do diretor de teatro Luís Artur Nunes, que assina o prefácio de um dos livros, José tem personalidade "geminiana e mercurial". Eles trabalharam juntos na peça "Fala, Zé" (2006), um monólogo de autoficção. "Quem falava ao público era o Zé, um Zé sem sobrenome, um Zé-personagem, vivendo no fio da navalha entre o real e o imaginário", definiu o diretor.
Perder-se ou deslumbrar-se era um risco real para o José jovem, como o autor diz no segundo livro: um garoto que passou a infância num colégio de freiras de Santa Rita e estudou num seminário de Ribeirão Preto, onde foi abusado.
Na juventude, além do eixo Rio-São Paulo, morou em Porto Alegre, passou por cidades na Bahia e Pernambuco, perambulou por Paris, Londres, Amsterdã, Andros e Pelotas — até fins de 1979, quando pegou uma Brasília vermelha e dirigiu ao Rio. Pouco tempo depois, assinou seu primeiro contrato "rumo à fama", como define no primeiro livro: 45 mil cruzeiros por mês.
José casou-se diversas vezes e teve cinco filhos. Rodrigo, o primeiro, morreu aos 21 anos ao cair da janela do apartamento no Rio, em 1992. "Por que te conto tudo isso? Essa trajetória me levou ao divã. Na análise, descobri que não tenho medo da morte. Tenho medo da dor", ele me disse no outono de 2014, na França.
Grisalho e sozinho pela primeira vez depois de muito tempo, o ator tinha tirado um ano sabático, instalando-se num apartamento no charmoso Le Marais, em Paris. Nós nos encontramos algumas vezes num café de esquina perto do Marché des Enfants Rouges, onde conversávamos por horas. As entrevistas iriam compor um perfil seu para o caderno "Aliás", do jornal O Estado de S. Paulo, que foi engavetado.
"A vida tá me dando uma chance de viver uma experiência diferente. É uma sensação imensa de liberdade, montar casa sozinho, lavar privada, fazer faxina, andar a pé, aprender. Ficar anônimo", dizia.
Mas o outono virou inverno e, mal com o tempo, sozinho e revirando as próprias lembranças, decidiu escrever a autobiografia, que terá versões impressa, ebook e audiolivro.
Um lugar ao sol
Em Paris, escreveu um terço do livro. Em busca de um lugar mais ensolarado, alugou uma casa com vista para o mar em Andros, na Grécia, onde incorporou um personagem de "autor que vai para uma ilha, estilo Hemingway em Cuba". Finalizou o prólogo do segundo livro e gravou o primeiro áudio em Auckland, na Nova Zelândia, durante o lockdown provocado pela pandemia.
"O protagonista dos dois volumes desta autobiografia é um artista, um militante político, um ser humano movido a paixão, que viveu muitas vidas, na ficção e na realidade", diz no prefácio o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Lula e José se conheceram num comício na Candelária, no Rio, na campanha de 1989. Lula precisava atravessar um mar de gente para conseguir subir ao palco; José o levou nos ombros.
"'Socialista sonhador', como ele próprio se define, jamais se filiou a partidos políticos e nunca aceitou cargos públicos", diz Lula na introdução. Na verdade, José é filiado ao PT ao menos desde a época da AP-470, o julgamento do processo do mensalão no STF (Supremo Tribunal Federal), e hoje pretende deixar a carreira de ator para se lançar candidato a deputado federal. "Radicalizei."
Em abril de 2016, ele protagonizou uma discussão com um casal no Kinoshita, refinado restaurante japonês na zona sul de São Paulo. Um rapaz xingou o ator de "bandido", "ladrão" e "vagabundo" que "vive da Lei Rouanet". José cuspiu na cara dele.
No dia seguinte, o ator participou do "Arquivo Confidencial", um quadro do "Domingão do Faustão": falou da cusparada e defendeu o governo de Dilma Rousseff (PT). Entre impeachment, Lula preso, Lula livre e Bolsonaro no poder, abraçou a política de vez.
"It's a long, long, long way...", cantarola o artista, no fim da conversa. "O parlamento usa a palavra como princípio, meio e fim. Vem de parlare. E a palavra é a arte do ator." Pergunto se, se ele vencer, quem assumiria em Brasília, um Zé ator ou um Zé parlamentar, personagem. "Como faz para separar? É um José só."
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