'Ele queria saber o porquê de tudo': a vida e a partida de Jaider Esbell
"Puxo pela minha história pessoal e da minha família na terra indígena", disse o artista plástico Jaider Esbell ao responder uma pergunta sobre o seu processo criativo. Nascido na região onde se localiza a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, Esbell se destacava ainda como escritor, ativista e educador. Era também referência central no movimento de consolidação da Arte Indígena Contemporânea no Brasil. Ele foi encontrado morto em São Paulo na terça-feira (2), aos 41 anos, em um momento de ápice na carreira.
O lugar onde Jaider nasceu é um dos temas centrais de sua obra, repleta de muitas cores e texturas. Parte dela está exposta na mostra "Moquém_Surarî': Arte Indígena Contemporânea" que integra a programação da 34ª Bienal de SP. Não por acaso, foi batizada pelo próprio Esbell como "Bienal dos Índios" -- e tem 150 obras de 34 artistas indígenas que ficarão expostas até o dia 28 de novembro.
"A Raposa Serra do Sol é meu território ancestral, independente de fronteira ou decreto político. E ninguém pode dizer que não é. E a gente traz toda essa história para cá", declarou Jaider durante sessão de perguntas em um evento no Museu de Arte Moderna de São Paulo realizado no dia 11 de outubro. Na ocasião, Esbell celebrou uma cerimônia de abertura com cânticos nativos, guiou uma visita à exposição no museu e participou de roda de conversa entre com lideranças indígenas, representantes da Igreja Católica e o público convidado.
O artista era filho de Zenilda Sarmento da Silva, indígena Macuxi, e Francisco das Chagas Esbell, que descendia de um garimpeiro venezuelano que migrou para o Brasil e se casou com a mulher que viria a ser avó de Jaider. Ele nasceu no Sítio Felicidade, que ficava localizado na região chamada de Pé da Serra, no município de Normandia, no seio de uma família produtora rural. Além disso, já adulto, foi adotado como filho por Bernaldina José Pedro, mestra da cultura Macuxi.
'Cientista maluco'
Antes de se tornar artista, uma habilidade que descobriu ainda na infância, Esbell saiu da casa dos pais em Normandia e foi para a capital Boa Vista. Depois, passou uma temporada nos Estados Unidos. Mesmo nesta fase, nunca perdeu o contato com seus parentes indígenas do interior.
A irmã de Jaider, a servidora pública Marinês da Silva Esbell, 51, conta ao TAB que o artista era muito extrovertido e sempre foi curioso. Ela cita como exemplo que o apelido do irmão entre os colegas da escola era "cientista maluco", por sempre questionar e fazer experimentos com o ambiente onde nasceu e permaneceu até a adolescência.
"Ele queria saber até do cocô dos bichos. Queria saber porque o excremento das vacas se espatifava quando caía no chão e o dos cavalos ficava firme e redondo no chão já que os dois bichos comiam o mesmo capim. Era inquieto, minha mãe dizia que ele era 'malcriado', como diziam os antigos. Ele não se conformava com resposta fácil, queria saber o porquê de tudo."
O fascínio pela natureza e pelas comunidades foi representado nas obras de Jaider posteriormente -- ainda que sem a visão idílica de uma criança, mas com teor crítico sobre a própria existência como indígena e da terra nativa.
Em um ensaio publicado em 2020, Jaider contou que aquele cenário de deslumbramento inicial da infância era o que depois veio a compreender como uma das estampas da colonização e da guerra onde ele e seu povo já estavam como estranhos.
"Me fiz explorador em um lugar onde tudo se explorava. Eu tive que negociar com o medo, com a timidez, com a tristeza, com a solidão, com a apatia. Por lá exploravam a terra não mais para agricultura familiar comunitária. Se explorava a terra para grandes companhias. Agricultura de monocultura. Exploravam a terra para retirar minérios, madeira, terra para grandes fazendas de gado que a gente não via para onde ia tamanho rebanho."
A arte para fins construtivos
O curador geral da 34ª Bienal de São Paulo, Jacopo Crivelli Visconti, afirma que a morte de Jaider é uma enorme perda e ainda é difícil de se elaborar. Visconti conta que, durante os três anos de preparação da Bienal, conviveu com o artista e o reconhece como "extraordinário", além de ser responsável por várias ações em defesa dos Direitos Humanos que transcendem a arte trabalhando com muita inteligência, talento e qualidade.
"Para começar, o Jaider criou um cenário e uma definição de Arte Indígena Contemporânea brasileira, que não existia antes de ele chegar nesse cenário. Ele articulou de exposições a textos com a consciência de alguém que atua em vários âmbitos, da arte ao ativismo em uma esfera institucional. Por isso é difícil dizer para onde o movimento vai se encaminhar: justamente porque ele criou algo que ninguém havia feito antes, inclusive a nível mundial", declara.
Ele relata ainda que, com Jaider, de uma maneira geral, a relação sempre começava pela tensão. "Acho que de um ponto de vista histórico, quando você olha as relações entre brancos e indígenas, não há como achar que as coisas comecem de outra forma. Por outro lado, no caso do Jaider, tudo tinha um fim construtivo, nunca destrutivo. Era isso que o tornava especial, porque estava claro que estava construindo algo não somente para si, mas para uma comunidade que ele fazia questão de estar o tempo todo representando", completa.
Legado
Em texto publicado em 2018, Jaider explica o motivo de chamar o movimento de Arte Indígena Contemporânea: "Na história da literatura especializada sobre arte contemporânea produzida no Brasil, não temos autores artistas indígenas. Nesse sentido, o componente novo surpreende por seu protagonismo histórico. Convidamos a um inteiro desconstruir para outros preenchimentos".
O artista e professor indígena Charles Gabriel é irmão adotivo de Jaider Esbell. Para ele, que também tem obras na Moquém_Surarî, a morte de Jaider não vai interromper o trabalho de outros artistas indígenas, para quem ele era não só fonte de inspiração, mas de incentivo.
"Ele deixou essa lembrança, esse legado para todos nós que somos artistas indígenas não abandonarmos o que fazemos e acreditarmos em nós mesmos, seguir com esse trabalho", disse. "Nós não vamos parar, e acreditamos que ele vai nos ajudar, mesmo em espírito".
O velório de Jaider ocorreu na noite de quinta-feira (4) em Boa Vista, no Palácio da Cultura, prédio que abriga a maior biblioteca pública do estado de Roraima. A cerimônia teve homenagens artísticas como música, declamação de poemas de artistas locais, e celebrações religiosas católicas, além de cânticos indígenas Macuxi, etnia a que Jaider pertencia e homenageava em suas obras.
O artista deixa a mãe Zenilda Sarmento da Silva e seus onze irmãos, além de inúmeros amigos, familiares e admiradores de sua obra.
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