Em Mossoró (RN), túmulo de cangaceiro Jararaca recebe centenas de devotos
"Água mineral bem geladinha!", "olha a vela!". São 10h e o sol castiga os vendedores e moradores de Mossoró, no Rio Grande do Norte. No calor de 33° C, homens e mulheres se apinham na calçada do Cemitério São Sebastião, prestes a entrar no local em que descansam os mortos.
Mas, entre os gritos dos ambulantes e o andar das pessoas, um outro assunto domina o interior do cemitério. "Jararaca não é ali?", pergunta uma moça. "É o túmulo mais visitado", continua ela, de saída. Jararaca, nome de cobra feroz, é o apelido do cangaceiro José Leite de Santana. Pernambucano de Buíque, ele protagoniza uma dos episódios mais gloriosos da história de Mossoró.
Em 1927, a cidade fora vítima de uma tentativa de invasão do bando de Lampião, do qual Santana fazia parte. Reunindo soldados e moradores comuns, a cidade resistiu e expulsou os cangaceiros. Jararaca, porém, ficou ferido e foi capturado no dia seguinte. No Dia de Finados, anualmente, ele reúne centenas de pessoas no seu túmulo, que vão fazer promessas ou agradecer pelas graças alcançadas. Jararaca, quem diria, virou santo.
O cangaceiro Jararaca, de pele negra, estatura média e um dos mais valentes do bando, não recebeu o apelido de cobra à toa. "Jararaca é, talvez, mais audacioso, mais sanguinário, mais perigoso do que Lampião", descrevia o recifense Jornal Pequeno logo após a prisão do bandido.
Entre tantas histórias do cangaceiro "destemido" — como era apontado — é até difícil saber o que é verdade e o que é folclore. O escritor cearense Leonardo Mota, autor de "No tempo de Lampião", conta um desses causos, quando Jararaca foi levado até o Cemitério São Sebastião para ser executado, cinco dias depois da prisão. "Um gosto eu não deixo pra vocês: é se gabarem de que eu pedi que não me matassem. Matem! Que matam mas é um 'home'! Fiquem sabendo que vocês vão matar o 'home' mais valente que já pisou neste?". Com a frase inacabada, Jararaca tombou. Segundos antes, tomara um tiro na cabeça, sendo jogado depois para dentro da sepultura e dando início à lenda do santo cangaceiro.
Segundo o pesquisador e historiador Tales Augusto de Oliveira, essas histórias — tanto das versões da execução, como dos assassinatos atribuídos a ele — são difíceis de serem confirmadas, mas ajudam a manter a forte simbologia sobre Santana. Por isso mesmo, a "construção simbólica" fez com que um homem considerado sanguinário e temido durante a vida se tornasse motivo de paixão. "Na mentalidade popular, essa ideia da morte dele pode vir como uma espécie de expurgo, ou seja, de purificar. Mesmo tendo sido bandido, ao entrar no cangaço e morrer da forma que morreu, ele foi absolvido".
Outro motivo, conta, é a "bravura muito forte". Ao sobreviver a duas balas de uma Winchester 44 — uma que transpassou o peito, e outra na perna direita — e reagido mesmo na hora da sua execução, dias depois da captura, virou uma espécie de mártir. "Mas longe de pensar que Jararaca e o bando eram Robin Hood, de tirar dos ricos para dar aos pobres. Não mesmo", alerta o pesquisador.
Graça ou maldição?
No meio da manhã, poucas pessoas passam por ali. O movimento, dizem, é maior no começo e no fim do dia, quando o sol dá uma trégua. Mesmo assim, algumas pessoas desafiam a temperatura que faz arder a pele e passam pelo túmulo de Jararaca, seja por curiosidade ou para acender velas. "Vou já lá para ele me dar a oportunidade de ganhar na vispa [jogo de bingo], brinca uma ambulante. "Pode ser que a gente fique amaldiçoado", alerta outra mulher. Por ali, a dualidade entre bem e mal está sempre presente, alimentando os mitos de décadas que pairam sobre o cangaço.
Entre tantos pedidos para serem alcançados, uma senhora já conseguiu o que queria. Rosalina da Silva, 52, tinha o sonho de morar na casa própria. Sofrendo com o aluguel, pediu ao cangaceiro que a mostrasse como "ter minha sombra": "e ele me mostrou. Não foi do jeito que eu pensei, uma casona boa, mas é uma sombra que é minha. Saí do sofrimento de pagar aluguel", afirma. Assim, a dona de casa visita o cemitério há mais de 10 anos para agradecer pela benção concedida. "Eu achava que ele não abrisse milagre, devido ao tanto que já fez, que tinha feito pra trás. Mas ele foi salvo", acredita.
Ver para crer
A aposentada Luzineide Pereira, 63, estava ali pelo segundo ano. O motivo de ir, diz, é pela tradição de adoração e pelos relatos de milagres. Ela não conquistou nenhum até o momento, mas "tem muitas pessoas que contam". O próprio cunhado, afirma, "vinha todo ano, pediu pela saúde e ficou bom".
Sobre o que pediu, Pereira prefere manter a discrição: "é segredo". Entretanto, pretende continuar visitando a sepultura nos próximos anos. "É só realizar. É que nem São Tomé: é preciso ver para crer. Muita gente já realizou, e a gente também sente a vontade de ter o pedido realizado", deseja.
Luzineide estava acompanhada da família. Ana Paula, a filha da aposentada, defende a crença, que vem principalmente "da boca dos mais velhos". "Quem tem a fé consegue tudo, move montanhas. Mas a gente sempre tem algo para se apegar. Então o povo usa ele como um elo, como se fosse um tributo que liga aos pedidos do dia a dia", diz.
Para a técnica de enfermagem, Jararaca construiu a vida no "lado ruim", mas depois decidiu ir para o "lado bom". "A gente nem debocha nem tripudia, porque a fé é de cada um".
'Todo ser humano erra'
Maria da Conceição da Silva, 54, foi outra a acender sua vela sobre a sepultura. Enquanto alguns preferem não revelar o motivo do pedido, ela não tem problema em dizer: veio pedir saúde para o marido.
Todos os anos, revela, está presente ali e espera conseguir a primeira graça. "Eu quase não vinha esse ano por causa da pandemia, mas deu certo". No coração da doméstica, Jararaca não está só. "Sou muito católica. Tenho muita fé em Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Nossa Senhora das Graças... Frequento muito a igreja, vou à missa todos os domingos cedo. E agora reservei esse tempinho para ele".
Também doméstica, Jucicleide Xavier é outra que não perde a chance de tentar o contato com o santo cangaceiro. Junto com as amigas, diz que vem todos os anos e acende sua vela para renovar o pedido: "estava sem nenhuma e fui comprar ali". Ainda que Jararaca seja acusado de diversas atrocidades, isso não lhe importa hoje. "Todo ser humano erra na vida, então tem o perdão. Eu creio que Deus já perdoou, por esses anos todo que ele já se foi". O pedido de renovação ela prefere não dizer. "É promessa, não posso dizer. É pra gente e Deus". Ainda que não conheça ninguém que tenha conquistado uma dádiva atribuída a Jararaca, ela não perde a fé. "Só venho aqui, acendo uma velinha e pronto", afirma.
Devoção além do Rio Grande do Norte
Para Felipe Francisco da Silva, que trabalha como fiscal do cemitério, o movimento está voltando aos poucos, depois da fase mais grave da pandemia. Segundo ele, a expectativa de visitação no cemitério durante o feriado de Finados era de 20 mil pessoas. Acompanhando diariamente o vaivém do "São Sebastião", ele é outro que confirma o grande culto sobre Jararaca. "Desde o tempo em que eu tô aqui, o túmulo mais visitado é o de Jararaca. Vem gente de São Paulo, de Alagoas, do Ceará. Aqui e acolá eu sou indagado e levo as pessoas lá", afirma.
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