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Patrulheiro ambiental voluntário no Rio: 'não podemos desistir'

Alexandre Anderson, presidente da Ahomar (Associação de Homens e Mulheres do Mar), em patrulha na Baía de Guanabara - Carlos Tautz/UOL
Alexandre Anderson, presidente da Ahomar (Associação de Homens e Mulheres do Mar), em patrulha na Baía de Guanabara Imagem: Carlos Tautz/UOL

Carlos Tautz

Colaboração para o TAB, no Rio

14/11/2021 04h01

"Tua lancha é mais manjada que Caveirão da PM quando entra em favela carioca", costumam dizer os amigos de Alexandre Anderson, 51, toda vez que ele embarca na pequena lancha de um motor para fiscalizar as poucas áreas da Baía da Guanabara onde os pescadores artesanais ainda podem pescar.

Presidente da Ahomar (Associação de Homens e Mulheres do Mar), que representa cerca de quatro mil famílias de pescadores artesanais, Alexandre faz pelo menos uma vez por semana o que ele chama de "patrulha ambiental", de forma voluntária.

"Passo por áreas que deveriam ser reservadas à pesca mas que são invadidas por atividades econômicas em sua maioria da indústria do petróleo. Anoto, georeferencio e fotografo tudo para depois protocolar as reclamações na Capitania dos Portos, no Ibama, nos Ministérios Públicos Federal e Estadual e no Instituto Estadual do Ambiente", descreve.

Essa rotina o obriga a passar várias horas seguidas no mar, o que deixa a esposa, Daize Menezes de Souza, 54, também pescadora e fundadora da Ahomar, além do neto Cauã, 12, preocupadíssimos com sua segurança.

"Daize me liga o tempo todo. Parece até um GPS", brinca Alexandre. E ela tem razão em se preocupar: a lancha da Ahomar pode ser facilmente reconhecida pelas centenas de pessoas que com ela cruzam na Baía durante as patrulhas.

Desde 2009, Alexandre e a própria Daize precisaram ser inseridos no programa nacional de proteção aos defensores dos direitos humanos.

Em 2015, Maicon Alexandre Rodrigues de Carvalho, o Pelé, também pescador, fundador da Ahomar e ativista ambiental,foi incluído no programa e, assim como Daize e Alexandre, teve de se mudar de Magé para viver em instalações precárias do programa, localizadas em outro município fluminense.

Porta-helicóptero Atlântico, da Marinha, ancorado no porto da Ilha das Cobras, no Rio - Carlos Tautz/UOL - Carlos Tautz/UOL
Porta-helicóptero Atlântico, da Marinha, ancorado no porto da Ilha das Cobras, no Rio
Imagem: Carlos Tautz/UOL

Milícia que mata bicho-papão

A entrada dos três no programa de proteção é justificada. Desde 2009, quatro pescadores foram assassinados e dois permanecem desaparecidos. Ainda hoje, ao sair pela Baía, Alexandre fica à mercê das milícias marítimas que prestam informalmente serviços de proteção e transporte a dezenas de empresas instaladas na Baía.

"As milícias do mar que ameaçam e roubam pescadores derivam das milícias da terra. Só em Magé há pelo menos cinco delas. Não são nenhum bicho-papão. As milícias, ligadas a grupos políticos locais, costumam matar os bichos-papões", relata.

Esse confronto começou em 2000. Alexandre, Daize, Pelé e dezenas de outros pescadores e pescadoras interromperam o funcionamento de oleodutos que passavam por Magé, na praia em que se localizava a antiga sede da Ahomar, em protesto contra o abandono das comunidades de pesqueiros e catadores de mariscos e moluscos.

Na madrugada de 18 de janeiro daquele ano, 1,3 milhão de litros de petróleo vazaram de duas instalações da Petrobras, contaminando dezenas de praias e rios afluentes.

Alexandre Anderson: 'instalações industriais são bomba-relógio na Baía de Guanabara' - Carlos Tautz/UOL - Carlos Tautz/UOL
Alexandre Anderson: 'instalações industriais são bomba-relógio na Baía de Guanabara'
Imagem: Carlos Tautz/UOL

Estigma do peixe

"Ninguém no Rio queria comprar sardinha, tainha, mexilhão, por medo da intoxicação. O pescado foi estigmatizado e nós ficamos sem ajuda de ninguém. Subimos nos tubos de óleo e interrompemos a produção. Aí nossa luta apareceu na imprensa e as autoridades se movimentaram", recorda Alexandre.

As ameaças começaram nesse momento, porque as milícias já obrigavam várias das empresas afetadas pelo protesto a contratarem seus serviços e partiram para as ameaças, que logo se transformariam em tragédia. "Os seguranças milicianos vieram atrás da gente", diz Alexandre.

Em 2012, ele, Daize e Pelé fugiram de Magé. Moraram em outros municípios, em prédios e casas do programa de proteção aos defensores dos direitos humanos. Pelé saiu da profissão, da militância ambiental e do programa de proteção. Alexandre e Daize retornaram à sua casa em Magé, em 2019, contando com a proteção da Polícia Militar, e desenvolveram sistemas próprios de segurança.

"É claro que a gente convive com o medo. Mas, se não fizermos nada agora, a situação vai piorar muito para os nossos filhos", diz.
Há dois anos, Anisio Mario de Souza, 47, pescador, comerciante e irmão de Alexandre, foi assassinado com cinco tiros à queima-roupa em frente da sua casa, na Praia de Mauá. "O Anísio chegava do trabalho com seu filho, Cristian, no colo. Até hoje as suspeitas recaem sobre grupos de milicianos que cobravam taxas que meu irmão se negava a pagar."

Estaleiro a céu aberto

Nas patrulhas ambientais que realiza semanalmente, Alexandre costuma registrar várias irregularidades, de vazamentos pequenos e médios que se acumulam, lavagem de tanques e cascos de navios que vêm de outras regiões e podem trazer espécies invasoras, navios ancorados em áreas de pesca, invasão das hidrovias, até grandes operações industriais. Alexandre aponta em direção a uma plataforma e um navio-plataforma de petróleo, ancorados em frente a Niterói.

Nada disso deveria acontecer. As 16 mil famílias de pescadores artesanal que resistem na Baía (há 20 anos, eram, perto de 32 mil) produzem quase 70% do pescado consumido pela população de 9 milhões de habitantes nos 17 municípios — entre eles, a própria capital — que, direta ou indiretamente, integram a bacia hidrográfica da Baía.

Na manhã do sábado (7), a reportagem do TAB passou quatro horas com Alexandre e o pescador Márcio da Silva Fonseca, e verificou toda sorte de atividade industrial -- formal e informal -- sendo praticada irregularmente na Baía, e sem fiscalização.
"Eles se aproveitam do fato de os órgãos públicos não operarem nos finais de semana", explicou Alexandre.

Naquele momento, o barco passava pelas duas plataformas e pelas bóias amarelas que deveriam sinalizar restrição à navegação. Nas plataformas, atividades industriais, inclusive com solda, aconteciam normalmente, como se os navios estivessem em diques de estaleiros — há vários deles, fechados, ao redor da Baía.

Em poucos minutos, a lancha da Ahomar alcançou o Arsenal da Marinha, na Ilha das Cobras, na cidade do Rio, onde hibernam os gigantescos porta-aviões São Paulo e Minas Gerais (desativados), por onde dezenas de marinheiros transitavam.
Passamos ao largo de outras bases e paióis da Marinha, localizados a poucas centenas de metros de enormes embarcações e instalações industriais ligadas a atividades petrolíferas.

Pescadores na Baía de Guanabara, no Rio - Carlos Tautz/UOL - Carlos Tautz/UOL
Pescadores na Baía de Guanabara, no Rio
Imagem: Carlos Tautz/UOL

Bomba-relógio

"Isso é uma bomba prestes a explodir." Por pouco, o questionamento de Alexandre não se transformou em profecia realizada.
Na mesma semana, o jornal Ilha Notícias, da Ilha do Governador, informou que foram registradas na tarde de quarta-feira (10) "duas explosões". Moradores relataram ao jornal que as janelas de suas casas tremeram e sentiram um deslocamento de ar.. A Marinha, afirmou o jornal, admitiu responsabilidade pelas explosões.

O promotor de justiça federal Lauro Coelho Júnior, que em 2009 acompanhou o caso de Alexandre e Daize, tem um diagnóstico cético a respeito da situação da Baía.

"A atuação dos órgãos públicos de controle privilegia a atenção aos riscos das atividades apenas para a trafegabilidade marítima, sem levar muito em conta que a criação de zonas de exclusão e as várias formas de poluição causada geram inegável impacto ambiental. Gera-se assim um grave conflito socioambiental, observado já faz décadas, sem solução aparente", disse Lauro.

Alexandre insiste. Embarcando de volta à Magé na pequena lancha da Ahomar, ele denuncia o discurso segundo o qual a Baía estaria morta. "Essa é uma estratégia para que os pescadores artesanais abandonem o que nos resta da Baía de Guanabara. As tainhas e sardinhas continuam a ser pescadas, os manguezais vêm se recuperando rapidamente. Não podemos desistir."