Pescadores artesanais se arriscam para subsistir na poluída Guanabara
Em um fim de tarde de 2017, dois pescadores jogaram a rede na baía de Guanabara, quando foram pegos de surpresa por uma tempestade. Chico conseguiu prender seu barco em um toco de madeira, mas seu amigo saiu desgarrado.
O episódio assustador acabou uma hora depois, e ambos voltaram para casa com mais uma história para contar. Em 18 anos no mar, esta é uma das tantas que Francisco Antônio, 60, tem como pescador artesanal.
A reportagem de TAB ouviu a história na casa dele e de sua esposa, Maria Lucia de Souza, 48, em Itaboraí, no estado do Rio. O pescador explica que, cada vez mais, precisa se aventurar mar adentro na baía e correr riscos. Antes bastava navegar poucos quilômetros no rio Caceribu. Agora, precisa procurar peixe em alto mar, enfrentando correntes e marés.
O principal problema é o assoreamento, que atola os barcos e impede que os peixes, que não nadam em canais de águas rasas, cheguem, em quantidade, naquele e em outros rios que desaguam na baía de Guanabara.
O assoreamento é um fenômeno natural, mas é acelerado pela poluição, desmatamento e aterros na baía, que já perdeu 30% de sua área original. Segunda maior baía em extensão do litoral brasileiro, a área é de aproximadamente 400 km² e abrange 16 municípios do estado do Rio.
Dentre eles, TAB visitou três: Itaboraí, Magé e a capital. Além de Chico, conheceu um pescador de caranguejo, do Rio Suruí, e um morador da Ilha do Fundão que viu a praia da infância virar lama.
Entre jacarés e bicicletas
As rotinas de Francisco e Lúcia são complementares. Há 16 anos, formam o típico casal de pescador: ele sai à pesca de manhã, ela vende os peixes de tarde.
Tainha, corvina, tilápia, cará e robalo, os dois os limpam juntos e compartilham a mesma bicicleta vermelha para trabalhar. O pescador pedala até o porto, onde fica seu barco e de outros pescadores artesanais. Ela, de porta em porta para oferecer a mercadoria pescada.
A lembrança emociona Chico: "Não sei como explicar, mas a sensação de pescar e estar entre jacarés, manguezais e o cantar das garças é deliciosa". Já Maria não vê a hora de não precisar mais trabalhar: "É que meu joelho já não aguenta mais as horas de pedaladas".
Quando a maré está para peixe, o casal vende 50 kg por dia. Muito pouco perto dos 300kg que o pescador trazia para a casa há sete anos atrás. Maria relembra que quando o conheceu, ele vendia tudo em frente ao bar onde ela trabalhava.
O casal mora em uma casa de três cômodos. Além deles, três cachorros e uma neta. No quintal, árvores e plantas de diferentes espécies e brinquedos espalhados por todo canto. Com as dificuldades na pesca, os dois têm tido problemas para pagar as contas — constantemente, a luz é cortada. Chico, que é cearense e veio ao Rio com 17 anos, não vê a hora de se aposentar e voltar para a terra natal.
Pega caranguejos e seringas
O manguezal é identificado pelos pescadores pelo cheiro e pela vegetação. Terreno úmido, lama, material em decomposição e árvores com raízes suspensas em suspensão são típicos do ecossistema.
Já para encontrar o caranguejo, tem que ter habilidade. A toca aberta na lama é sinal de que é dia de pesca. Já a toca fechada, o crustáceo está em fase de metamorfose e quem come a carne pode até morrer.
Estes são conhecimentos que Rafael Pereira, 34, recebeu do pai. São três gerações de catadores de caranguejos antes dele. Pai, avô e bisavô sustentaram suas famílias com a caça nos manguezais do rio Suruí, em Magé.
O dia de Rafael começa cedo. Sai de bicicleta e chega às 5h ao porto, onde está seu pequeno barco. Antes de navegar, verifica a maré para descer o rio por dois quilômetros até o manguezal mais próximo. Já no mangue, coloca nas tocas os laços — armadilhas para pegar os caranguejos. Às 12h, os tira. São, se o dia estiver bom para a pesca, 600 unidades.
Antes, quando não corria riscos de seu barco atolar no assoreamento, Rafael não tinha preocupação com o horário nem de acesso a mangues mais distantes. Desde o início de 2000, quando um duto da Petrobras rompeu e despejou óleo na Baía, a poluição é, cada vez mais, um obstáculo para os pescadores dali.
No caso dos manguezais, o assoreamento é o lixo (garrafas pet, eletrodomésticos, móveis) enterrado nas lamas. Da capital e de regiões próximas, chegam pelos canais de água. A maré enche e, como sempre foi, alaga o mangue. A lama encobre o lixo e este ciclo se repete outras vezes criando camadas de lixo soterrados.
O resíduo mais perigoso para Rafael são os vidros e seringas. Com 9 anos, aprendeu a catar o caranguejo no sistema braçal. Além da lata de óleo como armadilha, "a gente enfiava o braço na toca e pegava a isca com a mão". No entanto, hoje em dia, "se eu coloco meu braço, corro o risco de cortá-lo até com seringa hospitalar".
Em 2018, lembra Rafael, quase desistiu da profissão. "Adentrei no mangue e, mesmo com a vegetação verde, a lama estava coberta por lixo". Atualmente, ele é presidente da ACAMM (Associação de Caranguejeiros Amigos dos Mangues) e lá, busca minimizar os impactos da poluição dos mangues.
Lixo vem, aves vão
Em 1977, quem morava na Vila Residencial, na ilha do Fundão, zona norte do Rio, tinha, no quintal de casa, a praia do canal do Cunha para aproveitar os dias de sol. Nesta época, Roberto Vianna, 50, o Beto, estava com seis anos e brincava, ali naquelas águas, com os amigos durante o período de férias.
Esta praia não existe mais. Beto viu sua parte favorita da vila virar lama. Primeiro foi o surgimento do óleo de 1986, que engrossou a areia da praia e as lamas do manguezal. Depois, o vazamento de óleo em 1987 e 1988, que inundou o canal do Cunha e sujava os que teimavam em mergulhar. "Para não ficar de castigo, a gente se lavava em uma bica antes de chegar em casa."
Para Beto, o vazamento de 2000, foi o que mais impactou a região. Foca, 56, pescador que TAB encontrou no porto dali, recorda que, nesta época, parou de pescar durante três anos. "Ninguém mais queria peixe da baía".
O cheiro, atualmente, é fétido. A parca quantidade de aves, em busca de alimento, se mistura ao lixo que boia na margem do mangue. Em dia de maré baixa o assoreamento seca parte do canal e os pescadores navegam apenas onde têm bóias, que são como sinalizadores para não atolarem o barco.
Além da praia que sumiu e da água poluída, Beto ainda tem se preocupado com as enchentes. "Antes, não tínhamos problemas com isso: as águas da chuva escoavam para o canal". Em janeiro deste ano, a maré encheu, as águas do canal alagaram o seu quintal, e ele precisou construir um bloco de concreto na porta de casa.
Segundo Beto, que trabalha com cultivo de árvores frutíferas e reflorestamento de terrenos abandonados, este novo fenômeno se dá porque o assoreamento e o lixo impedem que a maré cheia escoe para o mangue.
Além disso, o aterro das ilhas, no início de 1950, acabou com os canais. E consequentemente com a circulação de água entre eles.
Este aterro foi a construção realizada na presidência de Getúlio Vargas (1951-1954) para construir o campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) na Ilha do Fundão, que aterrou oito ilhas. O problema na baía vem de longe e só piora.
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