O dia a dia de pessoas que escolheram viver em trailers no Rio
Portas abertas, almoço "na varanda" do vizinho, chão de terra batida, gatos por todos os lados e árvores gigantescas em volta, fazendo sombra aos pés de acerola, pitanga e manga-espada. Alguns juram ter visto cobra jiboia e gambá, além de toda sorte de insetos. Tudo isso, sendo bastante otimista, é recompensado pelo silêncio e a proximidade do mar — são apenas dez passos até a Praia do Pontal.
Não, não se trata de um condomínio rural na orla carioca. A reportagem do TAB está em um camping no bairro do Recreio, zona oeste do Rio. O espaço, destinado a atividades de lazer e turismo, também serve de abrigo a 40 trailers de campistas por vez, além de motorhomes e barracas. É tudo temporário. Segundo a direção, não é permitido morar ali.
"Quem acha esse estilo de vida estranho e muito desapegado se engana", conta Humberto Fidelix, 67. Ele mora num trailer há mais de 15 anos, e esse mês estacionou no camping. Barracas, trailers e motorhomes, cada grupo no seu quadrado, desconstroem a imagem de desajuste, solidão e falta de rotina destes nômades urbanos.
Engenheiro mecânico aposentado e vacinado, Fidelix saiu de João Monlevade (MG) nos anos 1970 com destino ao Rio. Decidiu morar num trailer depois de sofrer um assalto à mão armada. No instante em que teve uma arma apontada para si, decidiu mudar. "Você tem que ter pouca coisa. O mais bonito nisso tudo é a simplicidade, além da questão do tempo. Hoje, sei usá-lo de uma forma mais inteligente."
Ele trocou a casa de 75 m² onde morava com a mulher e os três filhos (a mais velha está em Portugal), em Guaratiba, pela vida itinerante. Vive acompanhado da gata Damares em um trailer de 15 m² que vale R$ 40 mil. A estadia no camping, por mês, custa de R$ 900 a R$ 1,3 mil, mais taxas de luz, água, TV a cabo e internet.
Magro, de estatura mediana, Humberto está de bermuda e chinelo. Diz acordar às 5h e correr por 30 minutos. Faz supermercado, cozinha e conversa com a "vizinhança". Duas a três vezes por semana, recebe a visita da mulher, que é enfermeira.
"Tem dias que ela vem e dorme aqui, é ótimo para namorar. Ajudou meu casamento a sobreviver. A rotina a dois desgasta. O casamento gira em torno de criar os filhos: depois disso a relação suporta diversos desenhos, entre eles o da distância, que é meu caso. Nosso amor é o mesmo. As pessoas precisam ter seu espaço. Duas pessoas envelhecendo juntas têm prazo de validade", opina.
Do lado de fora do avance, uma estrutura de barraca encaixada ao trailer amplia a área coberta. Humberto passa horas na varanda improvisada assistindo ao futebol na TV de LED, enorme, virada para fora, onde tem mesinha com cadeiras, churrasqueira, plantas, mangueira e chuveirão. A água é de poço. No avance ficam geladeira, freezer, máquina de lavar roupa, fogão e pia. O interior do trailer se resume a uma cama de solteiro, guarda-roupas diminuto e um banheiro — daqueles de ônibus intermunicipal — com chuveiro a gás, além de uma bateria e um carregador de energia.
Nas portas dos trailers, carros, motos, pranchas de surf, churrasqueiras e bastante repelente. Há dois supermercados por perto, mais o pequeno comércio local e a farmácia que entrega. O lixo é recolhido pela administração, que também cuida da segurança dos sócios.
Fidelix conta ter aumentado o número de acampados durante a pandemia. "A maioria diz que vai partir após a vacinação. O risco é gostarem e ficarem."
Seu maior desejo agora é comprar um motorhome e viajar a América do Sul inteira, dormindo cada noite num lugar.
Destino: mudança
A maioria dos atuais sócios do camping tem mais de 50 anos, embora a pandemia tenha aumentado as vendas de trailers ou casas sobre rodas entre adultos de 20 a 35 anos.
O lugar e o clima parecem uma tomada do filme norte-americano "Nomadland", que rendeu Oscar à protagonista, Frances McDormand. Há de trailers sofisticados — que apostam em cercas-vivas para garantir um pouco de privacidade, banheira de hidromassagem e ofurô — aos mais convencionais, como o da ex-secretária Rosângela Cardozo, 63, que adora receber a visita da filha e dos netos ao longo da semana e dos amigos e vizinhos para uma cerveja gelada aos sábados.
"A primeira vantagem de viver assim é que posso, enfim, ter bichos", diz Rosângela, aos risos.
Depois que o segundo marido morreu, em 2009, ela saiu do apartamento onde morava em Inhaúma, na zona norte do Rio, e se mudou para o trailer.
Sua rotina diária passa por varrer as folhas secas caídas, tomar banho de baldinho no mar ("não sei nadar") e ouvir música brasileira ao cair da tarde.
Nos fins de semana, é comum a vizinhança se juntar para fazer churrasco e beber ao ar livre, programa favorito de Rosângela, perfeito para o outono carioca, quando o calor não derrete ninguém fora do ar condicionado. Cada um leva sua cadeira.
Os terninhos da época do escritório e os mais de cem pares de sapato deram lugar ao trio bermuda, camiseta de malha e chinelo. "Quando você escolhe viver assim, é o que tem", resume ela, enquanto reforça o repelente nas pernas. "Se optei por uma vida assim, o jeito é se adaptar e pronto. Sou super feliz no meu trailer, e não pretendo sair dele tão cedo."
Além da decoração caprichada, a ex-secretária, organizadíssima, tem wi-fi, TV a cabo, uma varanda charmosa com mesinha e jogo de cadeiras que abrem e fecham ("mais fácil para guardar"), além de uma coleção de plantas e flores muito bem cuidadas na porta. Com o novo estilo de vida, velhos hábitos voltaram ao cotidiano, como o de cozinhar diariamente.
"Minha única dificuldade é consertar chuveiro ou algo assim. Mas quando dá ruim, sempre aparece um vizinho amigo para socorrer. Medo eu só tenho de ventania, porque pode derrubar árvores em cima do trailer."
Chamar de quê?
O cantor e compositor Dalton Amauri, 73, define a vida num trailer como o "portal da criação". Ele trocou a boemia carioca pela tranquilidade do trailer onde vive sozinho há 15 anos.
"Isto me trouxe sossego, melhorei minha saúde. Se continuasse naquela vida, já estaria morto. Me recuperei em todos os sentidos, passei a compor mais. Tinha 70 composições, hoje passam de 500", diz o músico.
Amigo da ex-mulher ("já casei demais"), Amauri é pai de quatro (um de criação), avô de cinco e bisavô de um. "Dá para namorar. Sempre tem alguém por alguns dias. Mas tudo com respeito, meu trailer não é bagunça, não."
Parceiro musical de baluartes do samba como Marçal, Zeca Pagodinho ("quando Zeca nem era famoso"), Moacyr Luz, Arlindo Cruz, Sombrinha e Jovelina Pérola Negra, ele é neto do maestro Paulo Silva e fez escola no lendário bloco carioca Cacique de Ramos.
A leva de nômades segue vivendo. "Sua cerveja gelou?" e "Já fechou [a janela] para não entrar pernilongo?" são algumas das perguntas mais frequentes. A vontade de aproveitar o clima familiar, a vibe segura e reunir a galera para um pôr do sol seguindo de muitos brindes são um inesperado convite para, quem sabe, ficar por mais uma semana estacionado e esticar a temporada.
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