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Depois da morte de MC Kevin, a internet perguntou: monogamia mata?

Sandy Millar / Unsplash
Imagem: Sandy Millar / Unsplash

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

23/05/2021 04h01

Dois dias depois da morte do funkeiro MC Kevin, a discussão sobre o que teria ocorrido já dominava as redes sociais. A versão mais corrente dava conta que o músico havia pulado da janela para que sua cônjuge não o flagrasse tendo relações sexuais com outras duas pessoas.

Uma publicação em específico chamou atenção: antropóloga e socióloga, Marília Moschkovich postou no Twitter: "A monogamia mata. (...) É absurdo que na nossa sociedade a vida de qualquer pessoa valha menos do que a moral da fidelidade monogâmica. Triste demais. Demais."

Embora não se saibam detalhes sobre o relacionamento entre MC Kevin e Deolane Bezerra, sua esposa, é provável que fosse um casamento monogâmico, em que cada indivíduo se relaciona com apenas um parceiro. Mas a declaração de Moschkovich, que é pesquisadora do Núcleo de Estudos Sobre Marcadores Sociais da Diferença (Numas) da USP (Universidade de São Paulo), fez muita gente voltar à pergunta que mobiliza as sociedades humanas há milênios: como a monogamia surgiu entre nós?

Para a maioria das pessoas, a monogamia é um conceito tão arraigado aos costumes que fica difícil conceber outra forma de arranjo social. Mas nem sempre foi assim. Os compromissos e relacionamentos maritais — e sexuais — entre homens e mulheres, criados e socializados como seres anatômica e sexualmente diferentes, se transformaram ao longo do tempo. Isso pra não jogar na conversa a preponderância do comportamento heterossexual, que ao longo do tempo estabeleceu-se como o mais comum.

Seja por lei, seja por tradição, a construção da monogamia não pode ser pensada somente de forma biológica, nem somente de forma social. "Não existe ser humano sem corpo e não existe corpo humano sem cultura, sem sociedade. Essas coisas nunca existiram separadas e nunca vão existir separadas", comenta Moschkovich. "As construções sociais e os sistemas simbólicos orientam nosso corpo."

Fundador do Instituto Paulista de Sexualidade e autor do livro "Relações Conjugais", o psicólogo Oswaldo Rodrigues afirma que a espécie humana desenvolveu um mecanismo que facilitasse a reprodução e diminuísse a competição destrutiva com outros elementos. "[A monogamia propiciou] aumentar as chances reprodutivas", diz ele ao TAB. "A criação de certas regras permite programar o futuro em épocas de diminuição de população humana. Além de eliminar o processo competitivo, a monogamia garantia o cuidado com a prole de maneira estável."

Como a monogamia surgiu? Não há consenso entre especialistas. A biologia evolucionista acredita que a monogamia surgiu entre antigos hominídeos ao mesmo tempo que o bipedismo, há 4,5 milhões de anos. Filhotes de mamíferos são em geral mais frágeis, e entre os primatas, é comum que macho e fêmea cuidem junto dos filhotes. "A monogamia, para o darwinismo, foi uma estratégia promovida por força evolutiva como uma questão de sobrevivência", afirma ao TAB o biólogo Waldir Stefano, pesquisador de genética de populações e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Outros pesquisadores defendem que o hábito da união conjugal tornou-se norma apenas com o Homo sapiens, entre 10 mil e 20 mil anos atrás — e há estudos genéticos que fundamentam essa linha de pesquisa.

Nem todo mundo acredita nisso. Para Marília Moschkovich, entender a monogamia como "instrumento evolutivo" não passa de "uma grande lorota europeia do século 19". "Isso foi formulado com ares científicos, a partir da ideia do darwinismo social. Essa ideia é errada. Temos evidências científicas de que as coisas não funcionam assim", afirma. Mesmo entre evolucionistas, a hipótese da vantagem da monogamia sobre a poligamia é inconclusiva, porque "apostar geneticamente" em um só parceiro é arriscado. Se a ideia é garantir a sobrevivência da espécie, ter mais parceiros sexuais é uma estratégia reprodutiva mais inteligente.

Como ocorre entre os outros animais? A literatura científica aponta que apenas cerca de 5% a 8% dos mamíferos costumam ter parceiros fixos. "Entre aves, a porcentagem de espécies monogâmicas é bem mais alta", compara Stefano. "Mas, de uns tempos para cá, com a possibilidade de fazer exames de DNA, percebeu-se que mesmo entre aqueles que eram considerados monogâmicos, é recorrente a existência de filhotes que não são provenientes dos mesmos pais."

Qual a vantagem da monogamia, então? Impossível não analisar à luz da cultura. Um sistema que diferencia os gêneros e os incumbe de funções diferentes, no cuidado e sustento da prole, acabou se materializando entre algumas sociedades humanas, com o reforço de valores religiosos e a ascensão da noção de "propriedade" — uma vida menos comunitária cria não apenas as ideias de exclusividade, mas de partilha de bens entre descendentes. Moschkovich analisa a questão a partir da sociologia, em comparação aos animais. "A monogamia é um sistema simbólico. Os animais não simbolizam, não têm contrato social, tácito ou explícito, que define com quem eles podem se relacionar sexualmente ou com quem podem ter filhotes, com quem podem conviver."

Ainda existem sociedades não-monogâmicas? De forma geral, no mundo contemporâneo ocidental os Estados têm mecanismos de controle para que a monogamia seja a praxe: seja na possibilidade de beneficiar o parceiro como companheiro ou cônjuge no plano de saúde, seja na própria maneira de oficializar a união conjugal, por meio do casamento (civil e religioso). "Muitos grupos culturais permitem casamentos com mais de uma pessoa, especialmente em camadas sociais financeiramente mais abastadas ou que detêm poder social e legal", diz Rodrigues. "Então temos no mundo ocidental leis que determinam a exigência de casamento monogâmico, mas ainda assim existem subgrupos com relacionamentos múltiplos. Esses são considerados ilegais, com penalidades para bigamia ou poligamia, mesmo que não legalmente registradas."

Mas há exceções. "Alguns grupos religiosos afirmam a necessidade de controle de poder. Um exemplo são os Emirados Árabes Unidos, onde a lei permite o casamento com mais de uma pessoa", prossegue o psicólogo. "Em regiões com menor influência de regras universalizadas, necessidades regionais possibilitam regras de casamento de uma mulher com mais de um homem ou de um homem com mais de uma mulher."

Na poligamia existe o adultério? Pode existir. Puladas de cerca sempre tiveram espaço também, com o consentimento de todos ou em relacionamentos paralelos clandestinos. "Há ainda os que vivem o poliamorismo, com mais de uma pessoa no relacionamento afetivo. Alguns vivem o cotidiano igual a um casamento, mas sem as proteções legais que o casamento produz entre os indivíduos que têm menos poder financeiro e social no relacionamento", pondera Rodrigues.

E por que 'monogamia mata'? O tuíte da socióloga Moschkovich não era força de expressão. Ela explica que pensou sobre a força de um sistema que faz alguém achar que sua vida vale menos que uma instituição a ser protegida (casamento, relacionamento monogâmico), e lembra do alto número de feminicídios no país. "Se você olhar os dados, 70% deles são motivados 'porque ela traiu', 'queria terminar o relacionamento', é tudo nessa chave. Nas respostas ao meu tuíte, muita gente confunde, dizendo que dizer isso é oposto a dizer que o problema é o machismo, o gênero e o patriarcado. Mas essas coisas não são opostas: a monogamia é um sistema que está intimamente articulado com o machismo. Não dá para falar em machismo sem pensar em sistema monogâmico."