Ansiedade, budismo e psicologia: dá para meditar sem ser 'gratiluz'?
Sentar-se numa posição confortável, prestar atenção à respiração, deixar os pensamentos virem e irem embora, sem julgamento e sem se prender a eles. Você pode ouvir essas instruções de um monge budista ou de um(a) psicoterapeuta.
Práticas que trazem relaxamento, bem-estar, concentração e atenção plena são objetos de busca nas mais diversas tradições — do hinduísmo ao MIT (Massachusetts Institute of Technology), passando pelos gregos estoicos e até mesmo pelo cristianismo. No entanto, com a popularização do mindfulness, yoga e um interesse crescente pelo budismo no Ocidente, religião e ciência se encontram e divergem no exercício de práticas que entraram na moda.
O curso online Buddhism and Modern Psychology (Budismo e Psicologia Moderna), da Universidade de Princeton, uma das mais prestigiosas dos EUA, não deixa mentir. Mais de meio milhão de pessoas já se inscreveu no curso para entender como mindfulness, self (o "eu") e outros conceitos aparecem na religião milenar e na pesquisa de nomes como Sigmund Freud ou Jon Kabat-Zinn.
Lutando contra a evolução. Robert Wright, instrutor do curso de Princeton, traça dois eixos de aproximação entre budismo e psicologia: o distanciamento dos nossos sentimentos para encarar a vida com mais objetividade, e o questionamento do que é o self — e se ele realmente existe. No primeiro eixo, Wright explica que, segundo a filosofia budista, nossos pensamentos não são bons termômetros da realidade. "Quando você age com raiva ou muita emoção, você entende aquele sentimento como real. Mas, quando você está meditando ou contemplando esses sentimentos, a raiva, o medo, a ansiedade, você percebe que eles não são reais", afirma a bicunim (mulher ordenada na vida monástica) Yifa, em uma das aulas. Esse mesmo princípio é usado no tratamento da ansiedade. Observar uma crise de pânico e tentar não ser envolvido pelos sentimentos, mas contemplá-los e entender que eles vão passar, costuma ser ensinado pelos profissionais de saúde mental. Isso seria, nas palavras de Wright, uma luta contra o que a nossa natureza humana, fruto da seleção natural, nos manda fazer. Em uma situação de perigo, nosso corpo ativa diversos mecanismos para se proteger. Mesmo quando não há perigo real, a ansiedade bate, e é preciso usar a mente para "convencer" o corpo de que estamos seguros.
Então é só meditar? A meditação e a yoga costumam ser duas formas de treinar essa percepção mais precisa da realidade, sem o filtro dos nossos sentimentos. Aliás, o ponto de contato costuma ser o mindfulness. Uma das definições mais conhecidas da técnica é a de Jon Kabat-Zinn, PhD em biologia molecular e fundador da Clínica de Redução de Estresse e do Centro de Mindfulness na Medicina, Atenção à Saúde e Sociedade, ambos do MIT. Para ele, mindfulness é "a percepção que advém de prestar atenção, intencionalmente, ao momento presente e sem julgamentos". Essa capacidade de perceber o momento presente em sua totalidade exige treino, que vem normalmente da prática da meditação.
Dá para meditar sem ser "gratiluz"? Atenção plena e relaxamento não são exclusividade dos budistas. Doutor em psicologia e diretor da Iniciativa Mindfulness, Tiago Tatton arrisca dizer que essa associação costuma ser feita por conta do "fetiche" ocidental pelo budismo. "Depois do movimento beatnik nos Estados Unidos, há uma superpopularização da meditação. Começa-se a criar uma cultura de meditação para transcender a realidade material, para transcender esse mundo deprimente. Isso entra na narrativa desses caras nos Estados Unidos — do guru dos Beatles a Jack Kerouac e Allen Ginsberg", afirma Tatton. Hoje, usa-se o termo "budismo secular" para designar práticas e crenças ligadas originalmente à filosofia budista, mas descoladas de conceitos religiosos ou sobrenaturais.
Então é ciência? Kabat-Zinn foi um dos grandes nomes dessa secularização do budismo quando, nos anos 1970, colocou o mindfulness em um contexto científico em seus estudos e práticas no MIT, usando a meditação como parte do tratamento de pacientes com dor crônica. "O que os budistas estão apontando não é algo que é, em si, budista. Atenção e percepção plenas são universais", diz ele em uma de suas aulas na plataforma Master Class, gravada em 2020. Hoje, há evidências dos benefícios da prática principalmente para pessoas com dores crônicas, transtornos de ansiedade, transtornos depressivos e dependência de álcool e outras drogas, relata Marcelo Demarzo, professor do departamento de medicina preventiva na Escola Paulista de Medicina da Unifesp. "São dois contextos diferentes: tem o contexto das tradições, das filosofias que a gente costuma considerar como orientais, e, nos últimos 40 anos, tem o contexto laico, científico, acadêmico, que a gente localiza na figura do Jon Kabat-Zinn", afirma o professor, que é coordenador do Centro Brasileiro de Mindfulness e Promoção da Saúde - Mente Aberta, promovendo pesquisas na área em parceria com instituições como a Universidade de Oxford.
A prática é aplicada em consultório? Depende. Algumas linhas usam o mindfulness durante a psicoterapia, de forma científica, enquanto na maioria das vezes a prática é feita fora do ambiente da clínica. Algumas das linhas de psicoterapia que trabalham com essa ferramenta são a terapia cognitivo-comportamental (no que é chamado de "terceira onda"), terapia de aceitação e compromisso (ACT), terapia comportamental-dialética e terapia focada na compaixão. "É importante diferenciar quando se fala de tratamento para pessoas com diagnóstico de um transtorno de saúde mental versus a promoção de saúde mental", alerta a neurocientista Elisa Kozasa, professora e pesquisadora do Instituto do Cérebro do Hospital Israelita Albert Einstein. "Quando a gente fala de utilizar essas técnicas no tratamento, isso precisa ser indicado pelo profissional de saúde mental", adiciona.
Zona cinzenta. Quando a prática é feita em consultório, ou mesmo indicada para um paciente procurar fora da clínica, os limites entre psicoterapia e religião precisam ficar bem definidos para não ferir o código de ética da psicologia. E Tatton vê aí uma dificuldade. "Em alguns casos, vejo um esforço da pessoa [que ensina o mindfulness] em querer ser meio monge. Uma coisa assim de bater foto de perna cruzada, de contar história budista — a chuva cai, a grama cresce, essas coisas, sabe? Só que aí você não sabe mais o que você é — se você é meio guru, meio psicólogo." Outro alerta que o psicólogo faz é para o abuso de poder. Segundo ele, há queixas frequentes de mulheres assediadas ou abusadas por instrutores. "Se você for aprender meditação, procure um psicólogo ou psicóloga que tenha um treinamento sério. Se você quiser aprender budismo, procure um templo reconhecido, pessoas com uma história sólida", indica.
O que os budistas acham disso tudo? Uma das grandes críticas à secularização e à popularização da meditação é que a prática tenha virado um produto com função utilitária. A "pílula de Buda", como é chamada. "Ela foi esvaziada do seu verdadeiro propósito transformador e virou mais um produto dessa indústria de wellness. Acordo às cinco da manhã, tomo meu suco verde, e aí pratico um mindfulness, entende?", diz Tatton. A busca pelo tema já vinha crescendo nos últimos cinco anos, observa Demarzo, da Unifesp, e ganhou ainda mais relevância durante a pandemia. No Google, o termo "meditação" atingiu pico histórico de buscas no fim de junho de 2020, depois de ter quase dobrado no fim de março do mesmo ano.
Paciência para aprender a ter paciência... Seja no contexto espiritual, seja no laico, colher os benefícios da meditação leva tempo, avisa Kozasa. "Qualquer habilidade que desenvolvemos exige dedicação. Se a gente entender essas práticas como treinar nossa mente para que ela se torne mais saudável, isso implica ter disciplina. Tem que começar aos pouquinhos, como uma atividade física", indica. Para os profissionais da saúde mental que queiram se aprofundar no tema, ela sugere cursos de formação. Tanto o Einstein quanto a Unifesp oferecem especializações.
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