'Banho de choque' é tradição alegre no bairro Brasília Teimosa, no Recife
O relógio marcava 14h quando uma mulher, o companheiro e a filha dela botaram os pés na areia quente da praia. O sol estava pra lá de forte. Com duas sacolas -- uma delas cheia de brinquedos -- e uma esteira de palha, a família chegou animada até o "Buraco da Véia".
Por trás das lentes dos óculos escuros, todos olhavam para o mesmo ponto: uma mureta de concreto desgastada pelo tempo, desejada por todo e qualquer banhista que passa por estas áreas do Recife, conhecida como Brasília Teimosa. É sobre ela que as pessoas ficam para receber um choque.
Não é uma descarga de energia qualquer: o que faz o momento ser memorável é a batida das ondas fortes nas pedras da beira-mar, diversão popular e disputada nos dias de marés altas. É assim desde o final dos anos 1940, quando o local começou a ser povoado. Antes mesmo da chegada dos primeiros habitantes, as muretas de proteção mais antigas já estavam por lá. Para os moradores do bairro da zona sul do Recife, a brincadeira é considerada patrimônio local, motivo de orgulho.
Forasteiros
Quem chega de fora fica encantado com o que vê. O "banho de choque" renova, alegra e é de graça. E quando a alta da maré coincide com a lua cheia, o que pode ser visto na orla é ainda mais bonito. Dos carros que passam pela orla, muita gente tira fotos ou filma a subida da água após a batida nas pedras.
A expressão "banho de choque" é usada para descrever o que acontece quando as pessoas são molhadas pelas águas que "explodem" nos paredões e ganham alturas que cobrem os banhistas. Quanto mais força tiver a onda, maior será o impacto da água. Daí vem o "choque". Os mais cautelosos esperam sentados, de costas para o mar. Os corajosos esperam de braços abertos o momento do impacto. E comemoram com sorrisos largos.
"Vem gente de todo lugar tomar esse banho. Além de quem mora aqui, chegam pessoas de carros e bicicletas para aproveitar", conta o comerciante Urik da Silva, 34, que tem um restaurante em frente ao paredão da orla de Brasília Teimosa e também é fã da brincadeira. Enquanto trabalha, Urik vê as pessoas se divertirem. Nas folgas, aproveita o banho em frente ao seu estabelecimento, perto de onde mora também.
Antes de subir nas pedras, foi preciso um apoio do companheiro para evitar um escorregão ou até mesmo uma queda. Homem, mulher e criança sentam-se sobre as rochas e desfrutam juntos de uma brincadeira proporcionada pelas ondas do mar. A dona de casa Merilin da Paz, 40, estreou no "banho de choque" no sábado (8). Foi levada pelo companheiro Hugo Galdino da Paz, 27, para conhecer a diversão que ele aproveita desde criança.
O sorriso frouxo denunciava que a experiência foi boa. Ela voltou para a areia mais leve após o banho. "Até achei que fosse brincadeira quando ele disse que o nome era esse. Mas achei muito bom. Foi divertido." A pequena Isis, 5 anos, filha de Merilin, também estreante, era pura euforia. A menina gritava de alegria e sorria a cada onda que batia nas pedras e os molhava.
Morador do bairro do Pina, vizinho a Brasília Teimosa, o técnico eletrônico Hugo cresceu tomando "banho de choque" com os amigos. "Desde pequeno eu vinha jogar bola por aqui. Quando terminava a pelada, a gente corria pra cá. Como essa parte da praia é sempre muito lotada, a gente prefere vir nos dias que têm menos movimento."
Em Brasília Teimosa também há risco de ataque de tubarão, como em outras praias do litoral pernambucano. Placas no calçadão indicam o perigo. Para escapar dos incidentes, banhistas optam pelo banho no Buraco da Veia ou pelo "banho de choque", onde não é preciso entrar no mar aberto.
Em Pernambuco, desde 1992, quando os incidentes com tubarões começaram a ser registrados, 66 pessoas foram atacadas. Dessas, 25 morreram. Os dados são do Comitê Estadual de Monitoramento de Incidentes com Tubarões. Três casos foram notificados na orla de Brasília Teimosa.
Brasília dos teimosos
O clima de Brasília Teimosa hoje é muito diferente do encontrado até o início dos anos 2000. No lugar das palafitas e de muito lixo acumulado, hoje há bares, restaurantes, equipamentos de lazer e todas as casas são de alvenaria. O cartão-postal do bairro é uma avenida principal, de frente para o mar, que leva até o Parque das Esculturas de Francisco Brennand. A modernização da comunidade que nasceu na mesma época da capital federal só aconteceu após a visita do então presidente Lula, em 2003.
Os primeiros habitantes do local sofreram ameaças e tiveram seus barracos derrubados várias vezes, mas voltavam e reconstruíam suas moradias. A "teimosia", então, deu origem ao nome Brasília Teimosa. Apesar de estar muito perto de Boa Viagem, um dos bairros mais nobres do Recife, Brasília Teimosa não carrega nada de ostentação. Lá ainda não há prédios residenciais ou empresariais, como no vizinho.
A força das ondas, que antes era motivo de medo para os moradores das palafitas, hoje é atração na comunidade que nasceu a partir da primeira ocupação urbana da capital pernambucana, em 1947. Quando a maré estava alta, as moradias de madeira eram invadidas pelas águas. Muita gente perdia o pouco que tinha dentro de casa. O cenário era de extrema pobreza.
O último Censo divulgado pela Prefeitura do Recife, no ano de 2010, indicava que o bairro tinha 61 hectares e a população residente era de 18.334 habitantes. Devido à localização, Brasília Teimosa atraiu dezenas de pescadores no início da sua formação. Até os dias atuais, muitos moradores ganham a vida com a pesca. Uma colônia de pescadores funciona na comunidade e vende peixes para muitos consumidores do Grande Recife.
Outra curiosidade do bairro é que várias de suas ruas foram batizadas com nomes de peixes. Badejo, atum, salmão, albacora, saramunete (a "trilha", como é conhecida no Sudeste), espadarte, peixe-serra e arabaiana (o "olho-de-boi") são apenas algumas delas.
Devido à pandemia, o governo estadual proibiu a presença de barracas de comerciantes aos fins de semana nas praias do litoral pernambucano.
Muitas crianças e adolescentes brincam de tomar "banho de choque" enquanto seus pais estão na areia da praia. Os pequenos costumam ficar numa área onde se forma a piscina natural Buraco da Veia. Protegidos pelos arrecifes, eles esperam em segurança pelas águas que passam por cima das pedras. Em grande trecho da orla, pessoas mais velhas sobem no paredão à espera do banho.
Desde os dois anos morando em Brasília Teimosa, Aline Carlos, hoje com 40, conta que a diversão à beira-mar é antiga. "No tempo das palafitas a gente já fazia isso. Tomo banho de choque desde criança. Sempre gostei. É uma sensação muito boa. Quem vem de fora diz que a gente mora num paraíso."
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