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Na mira de Bolsonaro, técnicos da Anvisa relatam 'sensação de insegurança'

O presidente Jair Bolsonaro (PL) e o diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres - Mateus Bonomi/AGIF
O presidente Jair Bolsonaro (PL) e o diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres
Imagem: Mateus Bonomi/AGIF

Do TAB, em São Paulo

20/01/2022 04h00

Diante da enxurrada de ameaças de negacionistas e antivacinas a colegas de trabalho, um servidor da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) decidiu construir um muro no entorno da própria casa, em Brasília. Apesar de morar em um condomínio fechado — com serviço de segurança 24 horas —, ele acredita que assim poderá reforçar sua proteção.

"Aumentou a sensação de insegurança", afirma o profissional concursado, que há 15 anos faz parte da equipe da autarquia responsável por regulamentar e fiscalizar no Brasil a produção e o consumo de medicamentos e vacinas.

O clima de tensão na agência se arrasta desde o início da pandemia, quando iniciou-se uma série de ataques públicos contra a atuação das equipes de vigilância sanitária no combate à covid-19. Investidas que partiram, sobretudo, do presidente Jair Bolsonaro (PL) e de seus apoiadores.

A onda mais recente surgiu após a Anvisa liberar o uso da vacina da Pfizer contra covid-19 para crianças com idades entre 5 e 11 anos. A decisão despertou a fúria de Bolsonaro, que em uma transmissão ao vivo na internet, em 16 de dezembro de 2021, cobrou a divulgação dos nomes dos técnicos responsáveis pela autorização. Na mesma noite, ele insinuou haver interesses escusos no trabalho dos profissionais.

Em entrevista ao TAB sob condição de anonimato, o servidor conta que esse tipo de assédio tem afligido a muitos técnicos, afetados inclusive em sua vida pessoal. "Há até familiares que, quando você vê, estão postando no Facebook coisas a favor de Bolsonaro, querendo divulgar seus dados", conta o servidor. "Muitos colegas confessam que esse estímulo — até em nível de possível violência — mexeu com todo mundo."

No início de 2022, fiscais da Anvisa foram hostilizados no porto de Santos enquanto trabalhavam. De acordo com a Univisa (Associação dos Servidores da Anvisa), "um grupo entoava um coro com palavras de baixo calão em relação à Anvisa, o que certamente tem relação com o clima de animosidade incentivado por algumas autoridades". O motivo da represália teria sido a recomendação de suspensão definitiva da temporada de cruzeiros no Brasil, anunciada em 12 de janeiro.

Amigos e rivais

"Se o Senhor não possui tais informações ou indícios [sobre corrupção na Anvisa], exerça a grandeza que o seu cargo demanda e, pelo Deus que o senhor tanto cita, se retrate." A frase, recebida com alívio por muitos servidores da Anvisa, foi escrita pelo diretor-presidente da agência, o médico Antonio Barra Torres, em resposta às acusações do presidente Bolsonaro. A carta-resposta foi divulgada em 8 de janeiro.

Tão logo veio a público, naquele sábado à noite, a nota de Barra Torres foi compartilhada massivamente em grupos de WhatsApp de funcionários da Anvisa. O tom do diretor deixou as equipes "em polvorosa", como afirma outra servidora que trabalha na agência desde 2005 e também não quis se identificar. "O pessoal, em grande maioria, está indignado com os comentários e críticas infundadas de Bolsonaro."

Antonio Barra Torres chegou à Anvisa em 2019, por indicação do próprio presidente da República, de quem era amigo. Primeiro foi diretor e, depois, passou ao posto de diretor-presidente. No início da pandemia, o contra-almirante fazia coro aos discursos do chefe de Estado que minimizavam a crise na saúde. Em março de 2020, Barra Torres participou, em Brasília, de um ato de apoio a Bolsonaro que pedia o fechamento do Congresso. Na ocasião, ele ficou sem máscara, contrariando as normas sanitárias. Durante depoimento na CPI da Covid, ele afirmou que não pretendia ter participado do ato.

A ida de Barra Torres para a Anvisa, segundo outra técnica da agência ouvida por TAB, estava associada a "uma missão clara de não aprovar o avanço da regulamentação de produtos de cannabis no país". Em 2019, a Anvisa abriu uma consulta pública para flexibilizar o plantio de Cannabis sativa para fins medicinais no Brasil, mas desde então a diretoria da agência não tomou uma decisão final sobre o tema.

No entanto, diante dos desgastes com o governo federal em relação ao enfrentamento da pandemia, Barra Torres passou a se distanciar de Bolsonaro. "O diretor-presidente da Anvisa parece ter adotado uma postura cada vez mais técnica, e de defesa da Anvisa, o que ficou bastante evidente durante sua arguição na CPI", comenta a servidora. "Parece-nos que ele quer desvincular sua imagem a do presidente da República, que está bem desgastada publicamente. Talvez por uma questão de reputação."

Ao TAB, dois dos servidores entrevistados elogiaram a postura "técnica" e "polida" do diretor. "Quando ele deu a resposta na CPI, em que fez o mea-culpa por ter ido à manifestação e não ter usado máscara, por exemplo, a gente ficou realmente feliz", comenta um deles.

O diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, durante depoimento aos senadores na CPI - Pedro Ladeira/Folhapress - Pedro Ladeira/Folhapress
O diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, durante depoimento aos senadores na CPI
Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress

Para outra funcionária, o rompimento do chefe com Bolsonaro é pessoal, mas ainda assim faz aceno para uma base bolsonarista. "No texto, ele toca em questões de religião, conservadorismo, honra e servidão à pátria como militar", pondera. Segundo ela, a percepção interna é de que o empenho e a importância técnica da agência para conter a pandemia deixaram o diretor-presidente "sem muita saída, a não ser apoiar" as equipes.

"Ele teria de ter um trabalho de retórica muito grande para encontrar brechas nas avaliações técnicas ou ligar um 'foda-se' que poderia manchar sua reputação 'ilibada'", diz. "Ele não é um idiota. Mas também não é um cara da vigilância sanitária e da saúde coletiva. Só cumpre seu papel de referendar a decisão técnica e defender a agência."

Aparentemente, as investidas de Jair Bolsonaro contra a Anvisa enfraqueceram também o apoio que ele tinha entre alguns funcionários da autarquia. "Os bolsonaristas assumidos estão mudos no grupo que mantemos, e, no início da pandemia, eles ainda tentavam defender o presidente", diz uma técnica. "Vejo outros colegas de perfil lavajatista fazendo postagens bem contundentes contra as falas de Bolsonaro, e até colegas com cargos de gestão que não faziam costumeiramente esse tipo de comentário de cunho político."

Ameaças a servidores da Anvisa tiveram aumento exponencial após ataques de Jair Bolsonaro - Agência Câmara - Agência Câmara
Ameaças a servidores da Anvisa tiveram aumento exponencial após ataques de Jair Bolsonaro
Imagem: Agência Câmara

Ataques

Desde 17 de dezembro, a Univisa (Associação dos Servidores da Anvisa) registrou mais de 200 ameaças e tentativas de intimidação contra técnicos da agência. "Variam, desde as mais genéricas, jurando de morte servidores e diretores, até as mais específicas, onde funcionários e dirigentes são citados nominalmente", afirma o diretor de comunicação da entidade, Fábio Rosa.

Entre as mais agressivas até o momento, de acordo com ele, estão uma promessa de atentado à sede da Anvisa e um vídeo de uma mulher afirmando que iria até Brasília "purificar a terra onde a Anvisa está instalada, usando combustível abençoado". "As ameaças são mais um elemento da difícil conjuntura enfrentada pelos servidores da Anvisa. Elas se somam à falta de pessoal, que resulta numa sobrecarga de trabalho, além do congelamento salarial que já passa de cinco anos. É notável o impacto sobre a saúde (sobretudo mental) dos servidores", reclama o diretor da associação.

Procurada pela reportagem de TAB para comentar o tema, a assessoria de imprensa da Anvisa recusou o pedido de entrevista, justificando que no momento "não está conseguindo atender a pedidos de entrevista em razão da alta demanda interna gerada pelas análises de processos".