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Mãe de Moïse: 'Não posso deixar o Brasil enquanto justiça não for feita'

Ivana Lay, mãe de Moïse Kabagambe, congolês assassinado na Barra da Tijuca (Rio de Janeiro) - Zô Guimarães/UOL
Ivana Lay, mãe de Moïse Kabagambe, congolês assassinado na Barra da Tijuca (Rio de Janeiro)
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Daniele Dutra

Colaboração para o TAB, no Rio

03/02/2022 12h23

Após cinco longas horas de depoimento, sem pausas ou intervalos, a família de Moïse Kabamgabe deixou a Delegacia de Homicídios da Capital, no Rio, na tarde chuvosa de quarta-feira (3), escoltada pelos advogados e rodeada pela imprensa. A Polícia Civil investiga o caso do congolês de 24 anos morto a pauladas por três homens na praia da Barra, na zona oeste do Rio. "Eu só quero justiça", disse Ivone Lotsove Lolo Lay, assustada com a quantidade de pessoas, câmeras e microfones à sua volta.

Segundo a família, o congolês foi morto no quiosque onde trabalhava, Tropicália, na noite de segunda-feira (24), após cobrar R$ 200 do pagamento atrasado. O caso só ganhou repercussão dias depois, quando a comunidade congolesa do Rio de decidiu fazer um protesto em frente ao estabelecimento no último sábado (29). Moïse foi agredido por quatro homens durante 15 minutos e recebeu 30 golpes com um bastão de madeira. Além das pancadas, os agressores deram uma "mata-leão", socos e amarraram as mãos e braços de Moïse com cordas, até a morte

Nesta semana, a polícia prendeu três homens responsáveis pelas agressões. Nas imagens é possível ver cinco pessoas, um agressor que ainda não foi preso, dois homens que assistiram a toda a ação, e um casal que aparece depois para ver os sinais vitais de Moïse. Dentre os agressores estão o funcionário do quiosque Tropicália, o cozinheiro do quiosque Biruta, que fica ao lado, o atendente da barraca do Juninho, de mesmo dono do quiosque Biruta, e um vendedor ambulante. Os três presos deverão responder por homicídio duplamente qualificado, por impossibilidade de defesa e meio cruel.

Ivana Lay, mãe de Moïse Kabagambe, assediada pela imprensa - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
Ivana Lay, mãe de Moïse Kabagambe, assediada pela imprensa
Imagem: Zô Guimarães/UOL

'Por que tanto ódio?'

Por volta das 20h, após a tarde de depoimentos que só aconteceram uma semana depois do crime, a casa de Ivone Lotsove, localizada em Madureira, zona norte do Rio, estava cheia. A música africana tocando em som ambiente parecia não atrapalhar a conversa em francês. Com um olhar cansado e silenciosa, Lotsove interagia pouco com a família e amigos da comunidade congolesa.

Pelo menos 12 pessoas estavam na sala para dar apoio à mãe e aos irmãos do rapaz. "Depois disso a gente quer sim sair do país, mas não antes de concluírem o caso do meu filho. A gente não pode deixar o Brasil enquanto a justiça não for feita", disse Lotsove ao TAB. "Só vamos sair depois que tivermos uma resposta, depois que tudo for concluído. Prenderam três pessoas, mas até agora ninguém explicou o que de fato aconteceu. A gente quer saber a verdade, o motivo de tanto ódio. Cadê as outras pessoas que viram e não prestaram socorro?" desabafou Djodjo Baraka, irmão da vítima.

Ivana Lay, mãe de Moïse Kabagambe, assediada pela imprensa - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
Ivana Lay, mãe de Moïse Kabagambe, assediada pela imprensa
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Moïse Kabamgabe e os quatro irmãos vieram para o Brasil em 2011 para fugir da fome e da guerra na região. A mãe só conseguiu vir em 2014 e sem o pai, que desapareceu nos confrontos locais.

O quinto irmão tem 7 anos e nasceu no Brasil. "Eu era criança, não lembro muito bem dos detalhes e ela nunca gostou de falar sobre a nossa saída do Congo. Diz que falar no assunto causa ainda mais sofrimento", contou Djodjo, de 21 anos. De acordo com a Comunidade Congolesa do Rio de Janeiro, o estado tem cerca de 4 mil congoleses. Pelo menos 60% são refugiados.

Com olhar triste, de cabeça baixa, a mãe de Moïse conta que os dias foram passando e ela continua sem respostas. "Ninguém falava nada sobre o caso do meu filho, não tinha nenhuma novidade. É como se nada tivesse acontecido", disse, segurando um quadro com a foto do congolês. "Ele era um ótimo filho. Alegre, amoroso, engraçado, cuidava da casa e sempre ajudou a cuidar dos irmãos mais novos", disse. A casa humilde conseguia acolher quem chegasse para prestar apoio e solidariedade.

Por volta das 20h15, três primos de Moïse chegaram e uma delas se emocionou, assim que viu Lotsove. As duas trocaram abraços fortes e choraram juntas.

Familiares de Moïse Kabagambe na casa da mãe do congolês, em Madureira, RJ - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
Familiares de Moïse Kabagambe na casa da mãe do congolês, em Madureira, RJ
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Os últimos dias de Moïse

Antes de trabalhar como garçom temporário no quiosque Tropicália, Moïse foi garçom em um restaurante italiano, em uma churrascaria e também chapeiro em uma hamburgueria. O sonho do rapaz era dar uma vida melhor para a família e ter um negócio próprio, uma hamburgueria. A mãe do jovem trabalha como trancista em um salão de beleza e Djodjo é funcionário de carteira assinada de uma hamburgueria. Depois dos últimos acontecimentos, eles ganharam uma licença — mas a partir de hoje (3) o rapaz já vai precisar retomar a rotina.

No sábado (22), Moïse foi jogar bola no parque de Madureira com os dois irmãos mais novos. "Foi um final de semana ótimo. Ele adorava jogar bola, tomar banho de piscina e ficar em família. De todos os irmãos, ele era o mais próximo de mim, o mais amigo", contou Djodjo.

Durante a noite, Moïse foi até o bairro de Barros Filho, onde seu melhor amigo Chadrac Kembilu, 26, morava. "Ele sempre ficava aqui comigo, passava uns dois, três dias, depois voltava pra casa da mãe. Aqui era o lugar onde ele gostava de ficar, pra gente curtir, sair, conhecer umas meninas, curtir a juventude", disse o amigo.

A dupla e outros amigos da comunidade congolesa que moram na região foram até um "pagofunk". "Ele estava feliz, se divertindo, curtindo. Adorava pagode, gostava de vestir camisas de marca com boné, era flamenguista fanático. Moïse sempre foi um menino tranquilo, de respeito, trabalhador, estudioso, acordava cedo e o sonho era ajudar a família. Uma das frases que mais falava era 'Je suis desolé', que significa 'sinto muito' em francês. Ele dizia isso sempre, estando errado ou não", contou Chadrac.

Uma das programações preferidas do jovem era fazer churrasco, tomar uma cerveja e ver futebol. "Ele sempre assumia a churrasqueira, fazia churrasco pra todo mundo. Em qualquer dificuldade que a gente tivesse, sempre ficava à disposição para ajudar", disse Chadrac.

Moïse, que era trabalhador informal, avisou aos amigos e à família que iria trabalhar no domingo e na segunda-feira. O irmão relata que ele já tinha feito algumas queixas sobre o quiosque, já que algumas vezes não recebia o pagamento da diária, ou o patrão não pagava a comissão de 10% dos garçons. "Ele recebia uma diária de R$ 50, mais comissão. Tinha dias em que o patrão só pagava R$ 20, o valor da passagem. Às vezes ele chegava em casa reclamando que os colegas tinham ganhado comissão e ele não, porque o pagamento dos clientes que ele atendeu foi feito no cartão de crédito", contou Djodjo.

Ao amigo, Moïse disse que ia para o trabalho e falou que, com o dinheiro do pagamento atrasado, iria comprar uma caixa de cerveja e carne para o churrasco. "Ele prometeu que iria, mas não voltou", disse Chadrac.

As reclamações sobre xenofobia não eram frequentes, mas Djodjo conta que já ouviu de colegas do trabalho que ele "deveria voltar para o seu país". Para o amigo, ele não se queixava sobre isso, mas Chadrac conta era rotina conviver com o preconceito das pessoas. "Isso a gente passa todo dia, por ser negro e refugiado. Todo congolês, africano, já passou ou passa por isso no Brasil", disse.

Familiares de Moïse Kabagambe na casa da mãe do congolês, em Madureira, RJ - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
Familiares de Moïse Kabagambe na casa da mãe do congolês, em Madureira, RJ
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Noite do crime

A notícia da morte de Moïse só chegou para a família na manhã de terça-feira (25), por volta das 7 da manhã. Djodjo conta que acordou com várias ligações. Em uma delas, o colega do irmão, que trabalhava em um quiosque próximo, disse que viu as agressões ao congolês e falou que ele estava morto. A família correu para a praia, mas o corpo já não estava mais lá. Moïse foi levado para o IML (Instituto Médico Legal) ainda na noite de segunda-feira (24) e fora admitido como indigente, já que nenhum documento foi encontrado com ele.

Alguns parentes de Moïse estiveram no quiosque na manhã seguinte ao assassinato. Chegando lá, fizeram perguntas para as pessoas, com o intuito de entender o crime. O dono do quiosque estava no local, mas disse que não sabia o que tinha acontecido e que não estava presente na noite do ocorrido. Em seguida, chamou dois policiais militares que estavam em frente ao estabelecimento.

Os agentes falaram que a família não poderia estar ali entrevistando as pessoas, fazendo perguntas -- e que, se eles quisessem informações, teriam de buscá-las na Delegacia de Homicídios, onde o caso está sendo investigado. No dia 29, a família e a comunidade congolesa do Rio fizeram uma manifestação em frente ao Tropicália. Os mesmos policiais estavam no local. Mais uma vez, sentiram-se coagidos. Segundo a família -- que viu o vídeo completo, sem cortes -- esses dois agentes são os mesmos que passaram no quiosque, viram Moïse caído e não fizeram nada.

Desde então, a vida da família é lutar por respostas e justiça. "Minha mãe não está bem, ninguém está bem, é muito difícil de acreditar. Depois que a gente viu o vídeo, o sentimento é ainda pior. É tudo muito revoltante. Ele quis vir para cá, acreditou no Brasil, e o Brasil fez isso com ele. A gente foge de uma guerra e vê que aqui é a mesma coisa", disse Djodjo.

O caso de Moïse ganhou repercussão nas redes sociais e espaço nos jornais do Brasil inteiro. Artistas, cantores, jornalistas e políticos comentaram sobre o caso e demonstraram indignação com o crime.

O jornalista Caio Barretto Brito compartilhou no Twitter um relato sobre o dia que conheceu Moïse através de Chadrac. Ele convidou o amigo do jovem morto para almoçar, mas o convite foi recusado. "Chadrac disse que não se sentiria bem almoçando em um restaurante enquanto amigos passavam fome. Fomos então ao supermercado e enchemos um carrinho de comida. Comecei a entender ali quem eram aqueles imigrantes: se um come, todos comem. Se um passa fome, todos passam fome."

Emocionado ao falar do amigo, Chadrac lamentou. "O Brasil é nossa segunda casa, nossa casa de acolhimento, mas agora essa casa virou insegurança, desgosto. Esses caras que mataram Moïse são perigosos. Minha cara está aparecendo em todos os cantos do Brasil, tenho medo de me pegarem também."

Assistidos por advogados da Comissão de Direitos Humanos da OAB e pelo Ministério Público do Trabalho, que instaurou um inquérito civil para apurar a ocorrência de trabalho análogo à escravidão nos quiosques onde Moïse já trabalhou, a família cobra respostas. E chora.