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Em Salvador, povo dribla restrições para render homenagens a Iemanjá

Comunidade do axé presta homenagens cedo, logo após fogos na alvorada - Rafael Martins/UOL
Comunidade do axé presta homenagens cedo, logo após fogos na alvorada Imagem: Rafael Martins/UOL

Alexandro Mota

Colaboração para o TAB, de Salvador

03/02/2022 04h00

Placas de metal cobrem as escadarias que dão na areia da praia. No mar, uma fita de interdição, amarela e preta, foi presa a uma pedra para bloquear o acesso. Guardas Civis advertem que apesar de ser um 2 de Fevereiro, o dia não está para o mar, nem para aglomeração — motivo pelo qual todo esse aparato foi montado —, lembrando que a pandemia não acabou. Esse é um lado do que foi a manhã do dia de Iemanjá no bairro do Rio Vermelho, em Salvador, casa da centenária e mais famosa festa à Rainha do Mar do Brasil.

Mas parafraseando o lema de outra típica festa popular soteropolitana, "quem tem fé, pula a balaustrada". E, ao furar o cerco, ajuda a colocar nesse cenário flores no mar, cheiro de alfazema, balbuciar de rezas e aplausos a todo momento que ondas mais fortes rebentam nas pedras. Nesta quarta-feira não houve a festança com centenas de milhares de pessoas nas ruas de quase todo ano, mas em branco não passou — nem foi a esvaziadíssima homenagem de 2021.

Festejos em homenagem a Iemanjá no bairro do Rio Vermelho, em Salvador - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Festejos em homenagem a Iemanjá no bairro do Rio Vermelho, em Salvador
Imagem: Rafael Martins/UOL

O que é mesmo pular uma mureta para quem já enfrentou o trajeto Rio de Janeiro - Salvador? Para cumprir uma tradição de mais de dez anos, foi isso que fez a autônoma Claudia Araújo e o motorista de aplicativo João Araújo, ambos de 49 anos. A vinda a Salvador mistura comemoração e fé, pelo aniversário de casamento deles (realizado no dia 2 de fevereiro há 31 anos, quando nem eram assim tão próximos da religião nem da Rainha do Mar) e para agradecer pela saúde do filho.

"Eu tenho um menino de 4 anos, transplantado renal há 2 anos. Eu pedi tanto a Iemanjá para dar saúde a ele que não podia deixar de vir entregar o presente, assim como não deixei no ano passado", conta, emocionada, Claudia. Enquanto João cantava cantigas de xirês, a esposa decorava o presente que iria para o mar, uma cesta de palha com pães que ganharam, antes de ir para as águas, glitter, rosas e perfume alfazema.

Uma moquequinha de gente

A entrega dos presentes no mar é o ponto alto da festa — ou pelo menos é a obrigação de quem depois dali vai curtir a parte profana, este ano limitada a poucas festas particulares. Os bares e restaurantes da região tiveram permissão para funcionar, mas apenas com som ambiente. Eventos na rua foram impedidos pela prefeitura, bem como o trabalho de vendedores ambulantes: mesmo quem estava vendendo rosas passou aperto com a fiscalização.

Festa movimenta a economia com venda de flores, apesar de decreto municipal restringir o comércio de rua - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Festa movimenta a economia com venda de flores, apesar de decreto municipal restringir o comércio de rua
Imagem: Rafael Martins/UOL

"Oxe, isso aqui é uma 'moquequinha' diante do que realmente é a festa", lembra saudoso o ex-pescador Joaquim Manoel Santos, 85. Ou melhor. "Não bote Joaquim aí não, se chegarem aqui procurando Joaquim Manoel vão dizer que já morreu, todo mundo aqui me conhece é como Manteiga", brinca. Devidamente apresentado, Sr. Manteiga usa a expressão 'moquequinha' para explicar as poucas pessoas que viam de longe a entrega do presente principal, de uma das mais famosas colônias de pescadores do bairro, da qual já fez parte.

Para alcançar esse feito de ter algumas dezenas de curiosos na hora do tão esperado presente, foi preciso antecipar a entrega (que costumava ocorrer no cair da tarde, quando era levado ao mar junto a centenas de balaios com outras oferendas) em um caramanchão onde o presente era exibido ao longo do dia. Essa é uma tradição de pelo menos 104 anos.

O relógio ainda não marcava 8h quando o presente principal já estava indo para o mar na embarcação Rio Vermelho. Nela, contrastava suas cores vermelha e branca com uma grande bandeira azul cintilante e uma representação de Iemanjá com os votos de 'saúde' — uma mensagem clara de que o clima agora é outro, já que no ano passado a bandeira foi preta e lembrava as '224.504 vidas' perdidas na pandemia até ali, com a campanha de vacinação ainda se iniciando.

Antes da entrega, a 'moquequinha' de gente que pode ficar mais próxima do presente por um pouco mais de tempo era composta por membros do Ilê Axé Awa Negy, terreiro onde foi preparado, além de servidores da prefeitura, alguns policiais militares e, principalmente, jornalistas. A entrevista coletiva improvisada diante da oferenda buscava saber o simbolismo do presente que todo ano é guardado em segredos até a saída do terreiro.

Aos 85 anos, Manteiga é um dos mais velhos pescadores do bairro e lembra época em que conduzia embarcação com presente - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Aos 85 anos, Manteiga é um dos mais velhos pescadores do bairro e lembra época em que conduzia embarcação com presente
Imagem: Rafael Martins/UOL

Neste ano, foi um cavalo-marinho feito com búzios — presente que, segundo Pai Ducho de Ogum, líder do Awa Negy, foi pedido por Iemanjá em referência a um presente similar entregue há mais de dez anos e confeccionado pela artista plástica Sandra Rosa.

Pai Ducho estava um tanto exaltado, garantia que aquilo era sim uma festa a altura de Iemanjá, mas bradou contra pessoas não vacinadas ou que não colaboram com a saúde coletiva. "Se o pessoal procurasse se unir para fazer o que tinha que fazer, tudo isso já tinha acabado. Eu garanto sim que Yaori…", dizia pai Ducho quando foi interrompido por uma onda forte que molhou os pés de todos os jornalistas. "Tão certo assim", sentenciou, rindo com a surpresa.

O presente tem que ser obrigatoriamente levado primeiro até a Pedra da Sereia, trecho de mar que tem uma imagem de Iemanjá sobre uma pedra. Depois da reverência, é entregue em alto mar, em local que os pescadores contam guardar segredo. No retorno, um ritual com búzios é feito para confirmar se o presente foi aceito por Iemanjá.

Estrela da festa, acesso ao presente foi restrito à imprensa por conta da pandemia - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Estrela da festa, acesso ao presente foi restrito à imprensa por conta da pandemia
Imagem: Rafael Martins/UOL

Saudades do mar

"Minha avó era da macumba", conta a aposentada Dejanira de Jesus, 75. "Minha mãe era do axé e eu e minhas irmãs vinhámos desde pequenos", lembra o serralheiro Jailton dos Santos, 65. Não foram raras respostas como essas à indagação do porquê ir prestar homenagem à Iemanjá tão cedo, perto das seis da manhã. As ligações familiares explicam grande parte da tradição da festa. O Sr. Manteiga discorda. "Hoje tem muito mais é turista, gente de fora, pescador mesmo hoje é muito pouco, os da minha época tudo morreram", conta.

De fato, a festa originalmente restrita e discretamente iniciada pelos pescadores, ganhou outros públicos. Primeiro, registra o historiador Nelson Cadena em seu livro "Festas Populares da Bahia'', essa mudança ocorreu por volta de 1870, quando os "veranistas", pessoas que passavam a ocupar a então vila de pescadores, começaram a se envolver na organização do 2 de Fevereiro. Hoje, as festas privadas e feijoadas particulares também atraem socialites e famosos. Apesar disso, ainda é considerado uma festa visivelmente popular.

Outras figuras carimbadas na Festa de Iemanjá são os fotógrafos. A ocasião é um deleite de imagens para amadores e profissionais, atraídos pelas cores e pelos símbolos da religiosidade. Na festa deste ano, eles e elas pareciam por vezes até mais numerosos do que os devotos. Cly Loylie, 65, começou a fotografar a festa aos 15, quando era morador da Paciência, outro trecho de praia do Rio Vermelho. "Houve de fato uma comercialização da festa, mudou muito a comunicação, mas que bom que estamos voltando a ter. Eu sinto falta das barracas que eram montadas na rua, era uma marca forte", lembra, saudoso.

Entrega do presente da colônia de pescadores do Rio Vermelho, nos festejos em homenagem a Iemanjá, em Salvador - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Entrega do presente da colônia de pescadores do Rio Vermelho, nos festejos em homenagem a Iemanjá, em Salvador
Imagem: Rafael Martins/UOL

Dandalunda, Janaína ou Marabô

Com seus mais de 60 km de orla, Salvador nasceu para o mar e elegeu o Rio Vermelho como palco do principal festejo marítimo, tendo disputado com festas que foram perdendo espaço, como lavagens que ocorreram nos bairros da Pituba e da Barra. Apenas o festejo do Bom Jesus dos Navegantes, no primeiro dia do ano, compete em pompa, mas não em público, com a festa de Iemanjá.

Em 2020, último ano da festa em seu formato sem restrições pandêmicas, o festejo se tornou Patrimônio Imaterial de Salvador — honraria concedida pela Fundação Gregório de Mattos, da Prefeitura.

Ressignificada mais fortemente nos últimos anos como uma mulher gorda, negra e de cabelo crespo, Iemanjá também é conhecida por outros nomes, como Dandalunda, Janaína e Marabô. É a rainha do mar, mãe de todos ou mãe dos orixás e também reconhecida como a dona do Orí (Cabeça).