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Enganada por grileiro, desempregada luta para não virar sem-teto no DF

Acompanha da neta, Maristela trabalha na obra do barraco que foi obrigada a abandonar - Arquivo pessoal
Acompanha da neta, Maristela trabalha na obra do barraco que foi obrigada a abandonar Imagem: Arquivo pessoal

Felipe Pereira

Do TAB, em São Paulo

02/02/2022 04h00

Maristela Marques Costa, 46, tem um cronograma para evitar morar na rua. O primeiro passo é juntar um amontoado de compensados de madeira até esta quarta-feira (2). Em seguida, planeja organizar um mutirão e terminar de erguer o barraco na sexta (4). A última etapa depende de São Pedro.

Maristela conta com um final de semana sem chuvas para o piso secar até o domingo. Se tudo der certo, incluindo as variáveis que não controla, na próxima segunda-feira (7) ela conseguirá afastar de vez o risco de virar moradora de rua, situação inimaginável para alguém que raspou as economias do banco de 2009 a 2014 para pagar as parcelas de um terreno no Condomínio Porto Rico, em Santa Maria (DF). Nesse período, sem desconfiar, entregou a poupança de uma vida inteira a um grileiro.

Em maio de 2017, apenas quatro meses depois de deixar um barraco de alvenaria e finalmente se mudar para o condomínio, um empresário apareceu se apresentando como dono do terreno. Ela tinha um contrato de compra e venda com firma reconhecida em cartório, mas a ilusão foi calcada num documento desonesto.

Durante a disputa judicial que se iniciou pelo pedaço de terra, a mulher descobriu que entregara R$ 15 mil a um criminoso que responde a diversos processos por estelionato. Em 2012, ele chegou a ser preso em flagrante, apresentando documentos e certidões falsas em um cartório.

Os documentos do empresário que pedia o terreno de volta, por sua vez, eram a definição da lisura — e incluíam a cessão de direitos entregue pela dona anterior do lote, que tinha o nome registrado na Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal. A Justiça determinou a reintegração de posse.

Construção - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Fase final de construção do imóvel que Maristela foi obrigada a deixar
Imagem: Arquivo pessoal

Maristela só não foi diretamente para a sarjeta porque a pandemia impediu o cumprimento imediato da ordem judicial, mas em 14 de dezembro de 2021, depois da decisão em segunda instância, foi colocada no olho da rua. "Me faltou o chão naquela hora. Me senti como um cachorro sem dono, me senti humilhada."

De imediato, a Associação de Moradores do Condomínio Porto Rico lhe cedeu um espaço de acolhimento temporário. Ocorre que nem todos aprovaram a solidariedade da presidente da entidade — o argumento é que a sede serve para reuniões, não para alojar moradores.

Diante do impasse, foi fixado um prazo para Maristela deixar o local: 31 de janeiro. Desempregada e sem poder bancar um aluguel, ela traçara planos. Ia pegar a carroça em que guardou seus pertences e encostar numa praça. Dessa vez, o imponderável agiu a seu favor. No último final de semana, um sobrinho ofereceu espaço em um terreno para que Maristela construa um barraco. Ela ganhou mais uns dias na associação de moradores, mas sabe que não pode demorar para sair.

Começava a corrida contra o tempo.

Pertences - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Os pertences de Maristela estão numa carroça aguardando um novo lar
Imagem: Arquivo pessoal

Três famílias na rua

Os cinco netos de Maristela disputavam quem escolheria a próxima atração na TV. O revezamento entre Luccas Neto, "Peppa Pig" e "Masha e o Urso" acabou às 9h daquela manhã, 14 de dezembro. Foi a chuva dar uma trégua para que o oficial de justiça batesse à porta. Estava acompanhado do advogado que representava o dono do terreno e por policiais militares.

O caminhoneiro que acompanhava a ação de despejo entregou caixas e avisou que esperaria Maristela chamar quando terminasse de empacotar as coisas. O desespero era ainda maior porque as duas filhas de Maristela já haviam erguido barracos no mesmo terreno, que tem quase 200 m². A ação do grileiro colocava avó, duas filhas e seis netos na rua.

As crianças, que tinham entre cinco meses e seis anos de idade, não entenderam por que a família estava se separando, mas Maristela sentiu alívio em saber que as filhas conseguiram abrigo em casas de amigas. A concessão da associação de moradores evitou que ela própria ficasse ao relento. Os problemas eram grandes, mas ninguém dormiu na rua — pelo menos naquele momento.

Fundo - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Ao fundo, o imóvel em que Maristela morava e na parte da frente o local onde a filha morava
Imagem: Arquivo pessoal

Parecia um bom negócio

Maristela conta que, até 2003, o Condomínio Porto Rico era uma grande chácara, desmembrada em lotes. Por ali, as residências são humildes. A oportunidade de ter uma casa própria surgiu em 2009, quando um ex-genro sugeriu que a família juntasse economias para comprar um terreno. Ele vendeu o carro, a sogra vendeu a televisão e se comprometeu a pagar as parcelas restantes do financiamento.

Demitida em 2014 do mercado onde trabalhava como empacotadora, Maristela usou o dinheiro do acerto para quitar a dívida. Ela e o ex-genro transferiram um total de R$ 15 mil ao grileiro. A renda como faxineira e auxiliar administrativa do Ministério da Agricultura serviu para pôr os barracos em pé.

Maristela organizou mutirões e familiares ajudaram a erguer as paredes, construir o telhado e fazer o piso. Ajuda meio desinteressada, porque a recompensa aos parentes era uma macarronada. Ela estava orgulhosa por ter se livrado do barraco de madeirite e finalmente usufruir de uma moradia de alvenaria. "Tinha cerâmica e metade das paredes estava rebocada", lamenta.

Maristela  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Maristela foi enganada por um grileiro e acabou despejada de casa
Imagem: Arquivo pessoal

Caindo numa cilada

Com o andamento do processo entre 2017 e 2021, ficou claro qual seria o veredicto do juiz. Diante da iminência de despejo, Maristela procurou ajuda. O advogado Jardson Douglas Ribeiro e Silva recebeu um pedido de um colega do Grupo de Ativismo de Brasília da Anistia Internacional para examinar o caso. Foi ele quem descobriu a ficha corrida do grileiro. Não haveria como recuperar o terreno.

O advogado explica que a única medida ao alcance de Maristela é registrar um boletim de ocorrência para abertura de investigação e pedir o ressarcimento do dinheiro pago. Jardson considera provável o ganho de causa e difícil o recebimento dos R$ 15 mil. "Muitas vezes, acontece de a vítima do golpe vencer na demanda judicial, mas a pessoa condenada não ter bens em seu nome. O homem até tem bens, mas não no nome dele."

Maristela tem mágoas com a Justiça por ser despejada em época de pandemia, um período difícil de encontrar emprego. A mulher que já fez de tudo — de fabricar salgadinhos a cortar grama para o Governo do Distrito Federal — tem dificuldades de encontrar trabalho aos 46 anos. Mas ela sabe que sua penúria é culpa de um tremendo 171."Caí numa cilada", resume.

Associação - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Maristela está provisoriamente na associação de moradores enquanto tenta construir um barraco
Imagem: Arquivo pessoal

Nova tentativa

Até o final da semana, Maristela saberá se vai precisar passar uns dias na rua antes de conseguir construir o barraco no terreno do sobrinho. Ela segue confiante em arranjar o material e a ajuda na mão de obra para erguer o barraco e fazer o piso em quatro dias — otimismo que não encontra respaldo no passado recente.

No último mês, Maristela abriu uma vaquinha online para evitar a situação de rua. A arrecadação foi pífia. "Até agora só três pessoas fizeram doação. Dá última vez que olhei tinha R$ 165", dz à reportagem.

Maristela acredita que a vida coloca dificuldades no caminho de todos e os obstáculos servem de provação para a fé. Ainda que busque seguir as Escrituras e reze o terço todos os dias, admite que está na metade do caminho. "Se tive de passar por isso, é porque Deus quis assim. Ele não dá uma cruz para quem não consegue carregar. A terra é uma passagem e não posso sentir ódio porque Deus fala em amar a teu próximo como a ti mesmo. Não vou dizer que amo [o grileiro], mas não odeio."