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'Abre a câmera, chuchu': por dentro do estranho mundo das lives NPC

Diante de uma câmera de celular, milhares de pessoas ao redor do mundo parecem ter entrado em uma espécie de transe. Elas estão ao vivo no TikTok, com os olhos vidrados, rosto impassível e as mãos no ar, num leve movimento repetitivo, à espera de interação.

Do outro lado da tela, a audiência envia presentes em tempo real. Uma avalanche de emojis de casquinhas de sorvete, espigas de milhos, rosas, donuts e corações. Ali, cada ícone animado provoca uma reação diferente, mas rápida e contínua, como se quem estivesse ali não fosse uma pessoa real. E é essa a intenção.

Sejam bem-vindos a uma live NPC, onde os criadores de conteúdo precisam ser exatamente o que a sigla diz, um "non-playable Character" - ou seja, "um personagem não-jogável" -, com frases e reações programadas, como aqueles que você é obrigado a interagir nos jogos de videogame.

Esse jogo da vida real é um dos mais recentes fenômenos de uma cultura cronicamente online, comum a tantos jovens (e outros cada vez mais adultos) que se entretêm em lives, mas causou estranheza a quem está alheio ao que acontece na plataforma online mais popular do mundo.

"Aberração", "doentio", "vergonhoso" foram alguns dos adjetivos mais usados no X (antigo Twitter) na maré de raiva em reação aos vídeos do TikTok. A ironia também foi usada para criticar o suposto excesso de tempo vago desses influenciadores. Uma delas, em especial, imita um modelo NPC segurando uma carteira de trabalho, repetindo a frase: "Por favor, assina minha carteira".

"Realmente, eu nunca tive minha carteira assinada", diz Kine-Chan, como a influenciadora mineira Caroline Souza, 22, é conhecida nesse universo. Com 3 milhões de seguidores no TikTok, ela foi uma das primeiras a fazer uma live NPC no Brasil, inspirada em criadoras de conteúdo asiáticas que capricham no uso de filtros e maquiagens para se parecer um personagem computadorizado.

Bem antes do NPC entrar no vocabulário das redes, Kine-Chan viralizou ao posar com orelhinhas de coelho, unhas postiças e pose de personagem de anime, repetindo frases que seus seguidores pediam. Um deles pagou para aparecer em destaque na live, e pediu uma saudação para "Jefferson Caminhões". Virou meme - e durante muito tempo esse tipo de live ficou conhecida aqui apenas como? "Jefferson Caminhões".

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Acostumada a ter 2.000 pessoas simultâneas nas suas lives (onde apenas conversava e respondia perguntas), Kine-Chan viu seu engajamento explodir quando fazia NPC - as transmissões chegavam a 17 mil pessoas ao mesmo tempo.


Não é pouca coisa. Os tais presentes virtuais valem dinheiro de verdade. Os influenciadores ganham em dólar cada vez que alguém assina sua live ou chama sua atenção com os emojis. "Tem presentes muito caros, como o leão e o astronauta [que chegam ao equivalente a R$ 1.500]", ela explica. "As rosas e os milhos são mais baratos [cerca de R$ 0,30], mas em grande quantidade rendem uma grana boa."

O engajamento foi tão fora da curva que o NPC entrou na agenda de produção de conteúdos daqueles que vivem de renda das redes sociais. A baiana Xehli G. difundiu ainda mais a brincadeira ao vestir chapéu de cangaceiro e abrasileirar as falas. Com ela, os milhos se tornaram cuscuz.

Kine-Chan tenta explicar o fascínio hipnótico que o NPC parece provocar. "Eu já me vi presa muitas vezes em lives de NPC de outras pessoas. Tem gente que manda mil rosinhas só pra ver se a pessoa fala mil vezes a mesma coisa. Eu acho que a graça é essa, ver se a pessoa reage sem sair do personagem de jogo", diz.

E, enquanto isso, o dinheiro vai pingando.

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Profissão: cronicamente online

Kine-Chan é exemplo de uma geração que realmente viu nas lives, trends e TikTok um trabalho fixo - e muito bem remunerado, diga-se. Ela até trabalhou em outras áreas (foi professora de reforço e atendente de telemarketing, sempre sem registro, como muitos brasileiros). "Não aguentei, graças a deus eu fui pra internet."

São jovens que se conectaram desde a infância.

Aos 14, o hobby de Kine-Chan era manter um canal no YouTube para fazer review de anime. Aos 17, entrou na faculdade de direito, mas já gastava muito tempo nas transmissões - de manhã, fazia live enquanto jogava online, à noite, fazia os "lives alcoólicos".

Ela explica: "Quando eu perdia algum jogo, ou quando tomava susto em algum game de terror, eu tinha que tomar o drinque de alguma bebida. Vários youtubers faziam isso nessa época, era para um público mais velho".

Em 2019, no dia em que completou 18 anos, passou a trabalhar com "conteúdo exclusivo", um eufemismo para fotos e vídeos eróticos.

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Começou vendendo pacotes em grupos de Telegram, até abrir o próprio OnlyFans. Diz que chegou a ganhar R$ 35 mil no primeiro mês. Agora, essa faceta é sua principal fonte de renda. "Hoje eu ganho, com tudo, sete vezes mais."

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Imagem: Divulgação

Numa conta feita por baixo, Kine-Chan ganha no mínimo R$ 200 mil em todas as suas atuações online. Isso tirando as presenças VIP que ela faz vestida de cosplay em eventos de anime.

Não demorou para o curso de direito ficar pelo caminho. "Eu não teria essa vida hoje se não fosse pela internet, mesmo se eu fosse juíza", defende, sorrindo e mostrando suas presas.

Sim, a influenciadora colocou resinas nos dentes caninos, como uma vampira, o que lhe confere um ar de personagem animado. "Ajudava muitos nas lives quando eu fazia a gatinha e ajuda nos cosplays também, fora que eu acho bonito. Para a identidade visual, é bom."

Jornada de trabalho

A vida com um salário polpudo exige dedicação. Kine-Chan vive com o celular na mão, precisa estar pronta para registrar e gravar algum conteúdo. Ela contabiliza um trabalho diário de 16 horas, com pausas para refeição e descanso. "Acham que é fácil, mas o trabalho é da hora que a gente acorda até a hora que a gente vai dormir."

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A agenda é regrada para que não falte conteúdo em nenhum dos seus perfis no TikTok, Instagram e Onlyfans. O conteúdo adulto é o que mais toma tempo, são vários os vídeos em que ela faz "collabs" com outras mulheres influenciadoras.

Nas últimas semanas, ela deixou de lado as lives NPC, quando a trend viralizou mundialmente. "Acho que virou modinha, deixou de ser a identidade dessas pessoas", justifica.

Por aqui, o youtuber Felca ajudou as lives a saíram das bolhas de forma irônica, chamando atenção até mesmo do TikTok, que chega a derrubar as lives NPC por identificar "conteúdo repetitivo e inautêntico, visando obter presentes dos espectadores". De alguma forma, é como se a moda NPC pudesse burlar a recompensa de forma orgânica. Um golpe e tanto para tiktokers bem-sucedidos que alegam faturar até R$ 30 mil por cada performance, como o caso de PinkyDoll, canadense apontada como uma das precursoras no ocidente.

Para Kine-Chan, a live NPC era um momento de relaxamento e diversão e nunca chegou a ser, no seu caso, sua principal fonte de renda. "Infelizmente, ou felizmente para quem gosta, nenhuma área da internet dá dinheiro como conteúdo exclusivo", ela diz. "As minhas lives ajudam a levar assinantes pra lá."

A canadense Fedha Sinon, conhecida como Pinkydoll, sucesso nos Estados Unidos
A canadense Fedha Sinon, conhecida como Pinkydoll, sucesso nos Estados Unidos Imagem: Reprodução
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Abra a câmera, chuchu!

Tem quem defenda que essas lives ficam famosas por ter um conteúdo implícito e sensual. Seja Kine-Chan no Brasil ou PinkyDoll nos Estados Unidos, garotas com decote e voz mais sensual parecem sair à frente na busca pelo olimpo do TikTok. "Mas isso é bem comum desde as lives no Twitch", a brasileira reconhece. "Nos jogos orientais tem um pouco também, de uma forma mais implícita."

Kine-Chan divulgou OnlyFans num outdoor em Balneario Camboriú (SC)
Kine-Chan divulgou OnlyFans num outdoor em Balneario Camboriú (SC) Imagem: Divulgação

A conexão nos remete ao final dos anos 1990, quando boa parte desses produtores de conteúdo ainda não tinham nascido. Numa época que a internet ainda era mato, foram os profissionais do sexo os pioneiros no uso da tecnologia de transmissão ao vivo. As cam girl recebiam presentes e doações dos telespectadores em troca da realização de atos sexuais. Parece familiar?

Se no Tiktok não há conteúdo erótico, na vida real ela chegou a pagar um outdoor em Balneário Camboriú (SC), onde mora há dois anos, para divulgar sua conta no OnlyFans. Ela também apareceu vestida de cosplay, em trajes mínimos, sendo impedida de embarcar num voo.

Por isso, as contas de Kine-Chan nas redes vez ou outra são derrubadas. Ela atribui isso a uma onda de cancelamento que sofre desde quando começou a ficar famosa no meio. "Nossa, é mó treta", ela ri. Numa das vezes, sofreu represália por fazer cosplay de um personagem menor de idade num conteúdo adulto. "Foi sem maldade", garante.

Na época do "Jefferson Caminhões", foi cancelada no Twitter pelo fato de fazer algo tão banal, segundo os críticos. "Falavam que tinha muita gente se matando para estudar medicina e ganhar uma grana nem parecida com a minha, quando comprei meu primeiro carro, eles voltaram com isso."

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"Para eles, se não tiver carteira assinada, não é trabalho. A coisa que eu mais ouço é: 'ela não deve ter nem o segundo grau'. E eu tenho, fiz curso também de design gráfico e o curso de direito. Nunca usei pra nada."

Aos 22 anos, ela pretende continuar na internet por mais alguns anos - "e depois em aposentar e viver de renda passiva de investimentos. E é isso."

E pra quem acha que esse é um trabalho fácil demais, ela manda um recado: "Então vai lá, chuchu, abre a câmera e faz."

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