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'Eu estava em perigo': Brasil vira destino de refugiados LGBT+

O venezuelano Jesus Villarroel tinha 23 anos quando pisou pela primeira vez no Brasil. A porta de entrada foi a cidade de Pacaraima, em Roraima, por onde diariamente passa um contingente de refugiados e imigrantes vindos da vizinha Venezuela em busca de abrigo, proteção e trabalho.

Uma pergunta, na hora da triagem, o pegou de surpresa: "Você é gay?". "Eu fiquei calado, porque pensei: 'e se todo mundo for homofóbico aqui também? E se eu for preso?'." Começou, então, a chorar. "Você pode se expressar mais no Brasil, aqui é um lugar seguro", ouviu como resposta.

Até Jesus chegar ali, foram dias de percurso e apreensão. Era fevereiro de 2019, seu país estava em convulsão política e o rumor nas ruas é de que as fronteiras seriam fechadas.

O venezuelano partiu da capital Caracas até Santa Elena de Uairén, a 20 km da fronteira com o Brasil, de um dia para o outro. Não se despediu dos pais. Com uma mochila e algumas peças de roupa, juntou-se a conterrâneos num ônibus em péssimas condições. Foram recepcionados por militares armados e a passagem fechada.

Miséria e ameaças

Com um grupo de quase 100 pessoas, ele se embrenhou no mato numa andança de cinco horas até chegar no posto de triagem, onde foi questionado sobre as condições que o levaram a pedir abrigo. As motivações eram muito parecidas com as dos companheiros de viagem.

Jesus Villarroel em 2018 na Venezuela; um ano depois, já refugiado, nos primeiros meses em Brasília
Jesus Villarroel em 2018 na Venezuela; um ano depois, já refugiado, nos primeiros meses em Brasília Imagem: Acervo pessoal

Jesus tinha três trabalhos, mas o dinheiro não rendia nem pra continuar a faculdade pública de medicina. "Teve uma época em que a gente só comia massa de milho, sardinha, mandioca e abóbora. A gente ficava 15 dias sem gás, porque é muito caro. A gente trabalhava, trabalhava, e não tinha nenhuma perspectiva", ele explica.

A penúria financeira somava-se a um estado permanente de apreensão que vivia desde os 18 anos, quando foi ameaçado por policiais na saída de um bar gay. Jesus ofereceu o celular para que fosse liberado. "Eu conto até três e você volta para o seu buraco", ouviu dos policiais.

Sua homossexualidade provocou brigas e distanciamento da família à época. "As notícias que chegavam para mim na Venezuela eram de que havia muito gay desaparecendo. Eu não conseguia falar sobre isso. Existe muita homofobia e machismo, é um país muito catolico, eu tinha que ter um jeito de macho para ser levado a sério", observa.

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Grupos invisíveis

A história de Jesus é apenas uma entre tantas que passaram a ser mais ouvidas ali na fronteira do Norte, região que corresponde a 54,3% das solicitações de reconhecimento da condição de refugiado analisadas pelo Conare (Comitê Nacional para os Refugiados) em 2022. Ali, as crises humanitárias e a perseguição a LGBT+ se cruzam e se confundem entre as justificativas.

O TAB ouviu ONGs e profissionais que trabalham em campo, e todos apontam um crescimento no número de refugiados LGBT+ no país, embora esses grupos passem invisíveis entre as 348.067 solicitações protocoladas na última década, segundo dados do Ministério da Justiça em 2022.

A última vez que houve algum monitoramento desse grupo foi em 2018. Àquela altura, os LGBT+ correspondiam a 369 solicitações desde 2010, segundo relatório do Conare e do Acnur (Alto-Comissionário da Nações Unidas para Refugiados),

Um número aparentemente pequeno, mas que é considerado, por quem trabalha no acolhimento de refugiados, como a ponta do iceberg de uma outra realidade. "Muitos dos que fogem por essas razões podem não saber que o Brasil é um país acolhedor. Podem ter receio de se expressar, ter vergonha e, por razões ligadas à parte financeira nessa comunidade, podem não apresentar elementos que indiquem que são desse recorte", explica Davide Torzilli, representante da Acnur.

Naquela realidade de 2018, a maior parte das solicitações (89,7%) foram submetidas por pessoas vindas do continente africano, sobretudo da Nigéria (32,7%). Gana, Camarões, Serra Leoa, Togo e República Democrática do Congo aparecem na sequência.

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Hoje são 62 os países no mundo que criminalizam atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo, segundo dados da ILGA (Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexuais) - quase metade está na África. "Mas 2018 foi antes da situação da Venezuela", pondera Torzilli. "Atualmente, é um tema que afeta muito mais países."

Imigrantes e refugiados venezuelanos cruzam a fronteira em Pacaraima, em Roraima
Imigrantes e refugiados venezuelanos cruzam a fronteira em Pacaraima, em Roraima Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Prisões por 'ultraje ao pudor'

A Venezuela não tem leis anti-LGBT+, mas mesmo assim, em julho, um grupo de 33 homens foram detidos pela polícia em uma sauna gay na cidade de Valência sob acusações de "ultraje ao pudor". "Tem gente que acredita que uma pessoa gay é portadora de doenças", explica Jesus, queixando-se da falta de informações.

"Você só consegue algo educativo através das redes sociais. Não dá para se expressar 100% no rádio, TV e jornais. Hoje até tem influenciadores que falam do tema, apresentadores que se declaram gays, mas a sociedade pouco mudou, segundo os meus amigos que ficaram."

Uma forma de mensurar o aumento de histórias como a de Jesus está na decisão do governo federal em aprovar o rito simplificado para refúgio de pessoas LGBT+, em maio.

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Na prática, significa proteção facilitada e reconhecimento automático da condição de refugiado para pessoas vindas de países onde há perseguição ou criminalização por conta da orientação sexual e/ou identidade de gênero.

Um gesto histórico, na visão da Acnur. "É um reconhecimento de que entre as categorias das pessoas refugiadas existem grupos que podem ser mais vulneráveis", explica o representante Davide Torzilli. "É algo raro, único na região, seguramente. Um exemplo positivo que outros países poderiam replicar."

Lara Lopes decidiu fugir de Moçambique depois de ver duas personagens lésbicas numa novela brasileira
Lara Lopes decidiu fugir de Moçambique depois de ver duas personagens lésbicas numa novela brasileira Imagem: Daniela Toviansky/UOL

Espelho na TV

Lara Elizabeth Lopes, 39, sabe muito bem a realidade de Moçambique, primeiro país da África Oriental a extinguir leis anti-homossexuais, somente em 2015. Sua adolescência, no entanto, teve como pano de fundo um país que ainda se apoiava no código penal para proibir e penalizar "vícios contra a natureza". "Diziam que eu estava possuída por um espírito ou doente. Tudo ali era justificado pela Bíblia."

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De certa forma, foi o Brasil que descortinou uma outra realidade para ela. Foi pela TV, através da novela "Senhora do Destino", da TV Globo, sucesso em Moçambique. Na trama, duas personagens (vividas pelas atrizes Barbara Borges e Mylla Christie) eram lésbicas.

As cenas não traziam nada muito explícito. Era 2006 e o Brasil ainda não tinha visto um beijo gay na telinha, mas as personagens flertavam e discutiam a atração que sentiam uma pela outra — uma validação inimaginável para quem vivia naquele país.

"Era como se minha história estivesse sendo contada ali. Teve o maior impacto em mim. Ficava pensando que eu estava no lugar errado, porque ali a polícia é a primeira a cometer crime contra você", relembra Lara. "Eu sempre fui uma pessoa bastante masculina. Então mesmo que você não me pergunte, você conclui. Uma vez na rua, a minha parceira foi assediada por um policial e eu revidei." Acabou presa por desacato e colocada numa cela com homens.

A discriminação causou problemas na faculdade e foi empecilho nas entrevistas de emprego. "Ainda que eu tivesse habilidades para preencher aquela vaga, nunca era selecionada. Não existe a questão da inclusão como aqui."

Ela conseguiu o status de refugiada no Brasil em 2013. Hoje, é dona de uma oficina mecânica no bairro paulistano da Mooca, chamada Oluchi — "presente de Deus", na língua iorubá.

"Todo africano corre risco em seu país. Para eles não existe essa questão da orientação sexual, é coisa do branco", observa. "Aqui eu tenho o respeito que eu jamais tive em Moçambique."

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O tunísiano Matheus Jade Esseyah na Parada do Orgulho LGBT em São Paulo, em 2023
O tunísiano Matheus Jade Esseyah na Parada do Orgulho LGBT em São Paulo, em 2023 Imagem: Arquivo pessoal

'De boas' no Brasil

"Estou só esperando o momento em que vou dizer: sou brasileiro", diz, rindo, Matheus Jade Esseyah. O rapaz estava animado com a primeira viagem dentro do Brasil. Ele vai comemorar os 25 anos em Belo Horizonte, assistindo ao show de uma das bandas prediletas, Evanescence. De quebra, vai conhecer a família da namorada. "Vou fazer comida tunisiana, já sei como deixar os pais dela apaixonados por mim."

Matheus é um homem trans, vindo da Tunísia, país majoritariamente muçulmano no norte da África. Há dois anos no Brasil, ele já domina gírias e expressões brasileiras — "de boas" é a que ele mais repete.

O Brasil era uma conexão até seu destino final, a França, único país que sinalizou refúgio quando decidiu deixar seu país. "Minha vida estava em perigo. Uma vez uma pessoa colocou uma faca aqui", diz, apontando no pescoço, "e ficou me tocando lá embaixo".

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Na Tunísia, relações sexuais entre pessoas adultas do mesmo gênero são puníveis com até três anos de prisão. "Se a polícia sabe e tem provas, eu posso ser preso", ele resume.

Assim como Lara e Jesus, sofreu com ameaças e agressões. "Muita coisa aconteceu?", ele pausa, tentando achar as palavras. "Como se fala suicide attempt?", pergunta. Na tradução livre, é "tentativa de suicídio".

A relação estremecida entre a Tunísia e a França o impediu de completar a viagem. O Brasil se tornou a única opção. E o Tinder, aplicativo de encontros, o canal por onde conseguiu o contato de uma ONG — deu match num rapaz e contou sua história em busca de informações de casas de apoio.

Apenas aqui Matheus conseguiu fazer tratamento hormonal com acompanhamento médico. Fez aulas de português, achou vaga numa casa social e conseguiu emprego. Hoje ele é desenvolvedor de web.

Mais recentemente, fez a sonhada mastectomia, como prêmio de um concurso de beleza, o Mister Trans internacional. O convite para desfilar foi feito na primeira Parada do Orgulho LGBT+ que ele foi na vida, em São Paulo. "Falei: 'De boas, bora!'"

Matheus Jade foi eleito Mister Trans International na segunda edição do Mister Brasil Trans, em 2022
Matheus Jade foi eleito Mister Trans International na segunda edição do Mister Brasil Trans, em 2022 Imagem: Divulgação
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Sem atendimento especializado

"Percebemos que muitas dessas pessoas chegavam aqui e não sabiam o que fazer e para onde ir", diz Henrique Amoêdo, coordenador de comunicação do Instituto Adus. A ONG promove a reintegração de refugiados e chega a atender 800 pessoas mensalmente no Estado de São Paulo. A ideia, agora, é estar mais presente, inclusive, entre pessoas LGBTs que ainda não deixaram seus países.

"A pessoa trans, por exemplo, não sabe que o nome social aqui é obrigatório, que o SUS oferece tratamentos. Não há, em São Paulo, atendimento especializado para refugiados LGBT+. Nosso objetivo é mapear a necessidade dessas pessoas", completa Amoêdo.

"Claro que eles pensam em ir para a Europa, para o Canadá, mas a entrada nesses países é muito difícil. Quando você diz que é por questões de orientação sexual, você passa por um questionário gigantesco. Tem uma pesquisa que mostra que 98% das solicitações devido a isso são negadas", observa Amoêdo. "A gente tem problemas aqui, mas eles vêm de lugares tão complicados, que o Brasil acaba sendo acolhedor."

Matheus compara as duas realidades. Em Tunes, na capital, eram apenas dois cafés culturais voltados para a comunidade - frequentemente alvo de violências. "Eu vivi minha vida inteira num país onde até mesmo um casal hetero não podia se beijar na rua."

'Me sinto mais acolhido aqui'

A atenção aos refugiados LGBT+ também tem marcado os planos e parcerias da Operação Acolhida, que cuida do fluxo migratório venezuelano, hoje responsável por mais de 60% dos pedidos de solicitação de refúgio no país. Segundo a Ancur, há discriminação também dentro dos abrigos.

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Até ser interiorizado em Brasília, onde mora hoje, aos 29 anos, o venezuelano Jesus Villarroel passou por situações tensas em Roraima, quando morou num acampamento próximo à rodoviária de Boa Vista à espera de uma vaga num abrigo.

A rotina, segundo ele, era como um microcosmo da sociedade venezuelana, com aliciamento de pessoas para facções e homofobia. "Era xingamento, ameaça, tinha que ficar sempre de olho na hora de dormir."

Jesus conta que presenciou seu namorado brasileiro sofrer homofobia na rua em Brasília e sabe que desafios também existem por aqui. "Mas me sinto mais acolhido pelos brasileiros do que pelo pessoal do meu próprio país", justifica. "Daqui eu só saio se for expulso."

Lara em sua oficina mecânica: sonho realizado, ela quer que Lula combata a discriminação a LGBT+ em países africanos
Lara em sua oficina mecânica: sonho realizado, ela quer que Lula combata a discriminação a LGBT+ em países africanos Imagem: Daniela Toviansky/UOL

Há muito mais tempo no novo lar, a moçambicana Lara Lopes sente o mesmo. Além de abrir a oficina, foi aqui que ela realizou o sonho de se casar e ter dois filhos, mas ela vê um papel maior que o país pode desempenhar. "O atual presidente [Lula] gosta muito dos países africanos, mas do mesmo jeito que ele fala da fome, ele tem que combater discriminação, a falta de inclusão", defende.

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"Para que não tenham mais Laras perdendo 29 anos da sua vida vivendo num país com medo, sem poder trabalhar, e tendo migrar milhas de distância para poder se firmar como pessoa."

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