Hermès, Rolls-Royce e mentiras: a viagem do golpista 'filho do sheik' a NY
No dia 25 de julho, o influenciador João Victor Penha da Silva, conhecido como João VS, fez uma proposta "irrecusável" à mineira Cleo Schanen de Souza: uma entrada para um jantar exclusivo da Chanel em Nova York dali a quatro dias.
Em troca, Cleo, 19, que estava fazendo um intercâmbio nos EUA e trabalha com moda desde os 15, bancaria a passagem de ida e volta de João a NY (cerca de R$ 6.000, mais bagagem adicional). Como bônus, receberia serviço exclusivo de styling. "Paguei com a maior alegria do mundo", lembra ela.
Só que a proposta era uma cilada. Ao se encontrar com João em NY, Cleo descobriu que os contatos do rapaz eram de fachada, que as joias que ele havia prometido lhe emprestar eram falsas e que o tão esperado jantar na Chanel sequer existia.
João VS, 21, ficou conhecido na internet como a "Anna Delvey de Campo Grande". O apelido é uma referência a Anna Sorokin, golpista russa que enganou a elite de Nova York fingido ser de uma família rica para lucrar milhões e ter acesso a eventos exclusivos. Ela teve sua história contada na série "Inventando Anna", da Netflix.
Em agosto, uma conta no Twitter expôs golpes que o influencer deu para fingir uma vida de luxo que nem sempre corresponde à realidade.
Apesar da fama de filho de sheik, João vive no bairro de Campo Grande no Rio e fez promessas semelhantes a outras mulheres como Cleo.
A lojista carioca Amanda Aline, por exemplo, revelou ao TAB que João lhe ofereceu uma parceria em 2022 e recebeu acessórios no valor de R$ 1.200. João não devolveu os itens e ainda publicou fotos usando os acessórios (em uma delas, ele marcou o post como "parceria paga" com a marca italiana Off-White). João também ofereceu, pela internet, vagas de "sugar baby" em Dubai a homens gays e mulheres trans.
Ele nega as acusações.
'Matando' a mãe
A história de João e Cleo começou ainda antes do convite para o jantar em NY. Eles começaram a se falar em 2022, pelo Instagram, quando ele lotava a caixa de mensagens dela com elogios. "Ele disse que ajudava meninas a irem a eventos, alavancar a carreira delas", lembra Cleo.
Num primeiro momento, João ofereceu a ela entradas para a semana de moda de Paris. Em contrapartida, ela teria que pagar as duas passagens (sua e a de João), hotel e mais R$ 7.000 pelo "acesso". "Tudo tinha que ser rápido, eu tinha que dar a resposta na hora, senão ele colocaria outra pessoa". Os olhos de Cleo brilharam, mas a mãe, desconfiada, não deixou a jovem fechar negócio com um desconhecido.
João não desistiu: continuou cavando a amizade com Cleo e se aproximou da mãe dela, também pelo Instagram.
Com o sonho de abrir a própria marca de roupas, tudo que Cleo esperava era uma ponte para entrar no "grand monde" da moda — e um jantar exclusivo da Chanel seria a oportunidade perfeita. "Se eu não confirmasse na hora, iria perder o evento", diz ela, que imediatamente comprou as passagens de João. Na época, a jovem morava na cidade de Tarrytown, a 1 hora de Nova York.
O influencer enviou a Cleo um print do suposto convite com o nome dos dois e da modelo Cindy Kimberly, que ganhou fama em 2016 depois de aparecer nas redes sociais do cantor Justin Bieber. João disse que era amigo da modelo e que ela acompanharia os dois no evento, cujo endereço só seria divulgado no próprio dia.
Antes de embarcar para Nova York, João avisou a Cleo que a mãe dele havia acabado de morrer, mas que ele cumpriria o combinado como prova do "profissional" que era. (Na penúltima semana de agosto, o TAB foi a Campo Grande e conversou com a mãe de João, que está bem viva.)
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De Hamptons ao SoHo
O influencer chegou a Nova York para encontrar Cleo no dia 27 de julho, às 15h30, no café da Ralph Lauren. O prédio histórico, aberto à visitação, ostenta decoração e mobiliário refinados. No local, sem consumir nada, João fez fotos e vídeos que posteriormente publicou em seu TikTok com a localização de Hamptons, como se estivesse numa das mansões onde a elite nova-iorquina passa o verão.
Os dois passaram o resto da tarde no Central Park, tomando sorvete e tirando fotos. "Ele foi um querido", conta ela. Quando anoiteceu, foram ao hotel em que João estava hospedado, o Sheraton, na região do SoHo — pago, como se saberia depois, não por ele mas por uma amiga — e lá se arrumaram para um jantar.
Fazendo as vezes de stylist, João emprestou a Cleo um cinto, um colar e uma bolsa em formato de capacete. Jurou que era tudo Chanel. "As pérolas do colar não eram de verdade, e o cinto era de qualidade ruim, muito frágil. Com certeza eram falsos", diz Cleo, que fez uma análise minuciosa dos itens em casa.
"O João usava umas roupas que, segundo ele, eram da Balmain, mas eu sabia que eram do Aliexpress, porque eu tinha na minha loja", admite Cleo, que passou alguns anos trabalhando com dropshipping, modelo de negócio em que o lojista virtual faz a ponte entre clientes e fornecedores. "Mas não vi maldade", explica. "Para mim, ele só estava querendo se exibir".
Jantar no Cipriani e rolé na concessionária
Às 22h do dia 27, a dupla foi jantar no restaurante italiano Harry Cipriani, na companhia de uma amiga de João, Carla Castro Sousa — que pagou a parte da conta do influencer, além da conta do Sheraton. O TAB procurou Carla, mas ela não quis se manifestar.
Uma amiga de Carla também se juntou ao petit comité no Cipriani. A turma pediu drinks Bellini sem álcool, raviolis e chás. Ninguém tirava os olhos do celular. O que faltou de conversa sobrou em cliques para captar cada detalhe e abastecer as redes.
Posteriormente, João publicou no TikTok um vídeo daquela noite. Nos segundos iniciais, ele aparece sentado no restaurante italiano.
A seguir, ele insere uma série de takes de pratos que não foram consumidos pelo grupo no local e uma nota fiscal falsa, emitida em turco, como se o valor da conta no Cipriani tivesse chegado a US$ 2,9 mil. A conta, na verdade, não passara de US$ 360, US$ 70 para cada comensal.
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No final do vídeo, ele ainda aparece na direção de um Rolls-Royce Cullinan, modelo avaliado em R$ 6 milhões. Esses vídeos curtos, em que ele usa roupas de Cleo, foram filmados em uma concessionária da marca em Nova York, para onde João a levou. "Ele me disse que conhecia o gerente e ficou lá tirando fotos como se estivesse dirigindo o carro", diz ela, que, a pedido de João, ajustava o ângulo das fotos para não dar bandeira.
A postagem no TikTok fica num limbo entre a verdade e a mentira. Ninguém pode contestar, por exemplo, que ele esteve no Harry Cipriani ou sentado em um Rolls-Royce — o enredo fabricado em cima disso que é fantasioso.
Usuário do Instagram desde os nove anos, João aprendeu desde cedo a manipular os códigos visuais das redes para dourar a pílula.
Na saída do Cipriani, João, Carla e a outra amiga pediram um carro de aplicativo para uma festa. Sozinha, Cleo também pediu um em direção ao terminal de trem e chegou em casa, na cidade de Tarrytown, de madrugada.
"Fiquei me sentindo muito mal por eles terem me deixado sozinha num lugar perigoso. Chorei a noite toda, mas não falei nada com medo de ele não me levar ao evento [da Chanel]", conta ela, que ainda queria acreditar na história.
No dia seguinte, 28 de julho, Cleo pegou um trem para encontrar João às 13h na região central de Manhattan, o umbigo financeiro da cidade. Ele havia marcado uma visita a uma loja de bolsas de luxo para que ela experimentasse algumas birkins, um dos modelos mais famosos — e caros — da marca Hermès.
"Foi horrível, ele mentiu do início ao fim", conta ela. Segundo Cleo, João disse à vendedora, com um inglês escorregadio, que era de uma família muito rica e falava ao telefone como se estivesse combinando com a mãe que bolsa ele iria levar. "Sendo que ele tinha me dito que a mãe dele estava morta", espanta-se Cleo. "Ele contou histórias absurdas, disse que estava sempre viajando pelo mundo, que tinha várias amigas árabes, ficou se gabando o tempo inteiro e me tratando como se eu fosse assistente dele".
A pedido de João, a jovem tirou mais fotos dele com as birkins. No fim da visita, diz ela, João separou três bolsas e avisou à vendedora que voltaria em um novo horário para comprá-las. Obviamente, não voltou.
Cleo diz que o questionou sobre as mentiras e, em resposta, ele disse que se tratavam de histórias "que precisamos contar para chegar aonde a gente quer".
'Destruído por dentro'
No fim da tarde do dia 28, depois da sessão de fotos na concessionária da Rolls-Royce, Cleo voltou para casa e João foi para o hotel. Depois de alguns minutos, ele entrou em contato pedindo que ela passasse o dia seguinte com ele no hotel porque seria a data do enterro da mãe - coincidentemente, na mesma data em que estaria marcado o evento da Chanel.
Nas mensagens a que o TAB teve acesso, João diz que estava "destruído por dentro", com saudades da mãe morta e que não iria comparecer ao jantar. Ele contou que já havia falado com a musa de Justin Bieber, Cindy Kimberly, "e ela entendeu" e estava do lado dele para o que fosse preciso. Ele, portanto, também contava com o apoio de Cleo.
Em resposta, a jovem disse que compreendia o luto, mas queria ir ao evento da Chanel mesmo assim, porque havia usado todo o dinheiro guardado naquele investimento. "Amiga, como assim você me diz esse tipo de coisa? A minha mãe está morta debaixo da terra", respondeu João, iniciando uma longa sessão de chantagem emocional.
Por fim, ele disse que ela poderia ir ao evento da Chanel se quisesse. Depois da briga, Cleo ligou para todas as lojas da marca em Nova York com a ajuda dos amigos. "O evento não existia", diz ela.
Cleo pediu de volta as roupas que ela havia emprestado a João, disse que havia descoberto tudo e pediu os R$ 6 mil das passagens, ameaçando processá-lo e expor o golpe na internet. "Ele continuou com a história da mãe dele ter morrido, me chamou de podre, nojenta", conta Cleo.
João devolveu o dinheiro da passagem, mas não o valor adicional da bagagem despachada e, em seguida entrou, em contato com a mãe de Cleo e o namorado dela para ameaçar "acabar com a vida" dela. Cleo diz que teve crises de ansiedade desde então.
Quando a história do "golpista de Campo Grande" viralizou no Twitter, João se pronunciou negando os golpes. Mas a internet quebrou a cabeça para entender como ele conseguiu ter acesso à vida luxuosa que aparece em trechos de seus vídeos.
"O que ele mostra na internet é às custas de pessoas como eu, que são otárias e pagam as coisas para ele depois de mil e uma promessas", afirma Cleo. "Mas eu acho que ele realmente acredita nesse personagem. Ele mente tanto que não consegue mais diferenciar a realidade."
Perdido no personagem
Em entrevista ao TAB, João VS contou uma versão diferente do que aconteceu na mesma viagem a Nova York.
Ele diz que estava em crise no relacionamento com o atual marido, segundo ele, um empresário suíço do mercado financeiro que tem "bussiness" em Dubai e Paris (João não quis citar o nome do marido nem detalhes do casamento). Por causa do momento difícil, ele ofereceu a Cleo uma "collab". "Eu tenho meus contatos dentro da moda", insiste.
João diz que logo no começo da viagem não gostou de sair com Cleo. "Na internet tudo é perfeito, pessoalmente você vê a merda que é", disse o influenciador. Ainda assim, ele levou a cliente a lugares exclusivos nos dois primeiros dias, como o café da Ralph Lauren, e passou horas tirando fotos dela no Central Park. Também a colocou em um appointment "muito privado" na "alta costura" da Hermès, onde tinha um QR Code que o permitia "fazer a locação de uma peça para retirada".
"Eu tenho esses acessos", diz ele. "Eu posso meio que posso pegar bolsas, fazer uso delas e depois de um dia entregar [...] Pelo meu Instagram, por tudo isso, as marcas liberam para mim", justifica ele, dizendo que conseguiu uma bolsa emprestada para Cleo. "Eu fiz a retirada de uma bolsa, uma birkin [modelo da Hermès] de crocodilo rosa e no dia seguinte entreguei [devolvi]".
Na verdade, João e Cleo não foram à "alta costura" da Hermès. Fotos da ocasião mostram que eles estavam numa revendedora chamada Madison Avenue Couture, que comercializa acessórios de grife em Nova York. A reportagem entrou em contato com a loja, que desmentiu a história de João sobre a retirada da birkin de crocodilo rosa.
"Isso não é verdade. Nós não deixamos ninguém pegar nossas bolsas emprestadas, nunca", informou a loja, em nota ao TAB. "Para marcar um appointment, a pessoa tem que nos enviar uma cópia da identidade, carteira de motorista ou passaporte. Trata-se apenas de um showroom com hora marcada. Nós não oferecemos nenhum serviço especial para 'influencers' de Instagram", conclui a nota.
João insiste na versão do passeio em Nova York dizendo que, naquele mesmo dia, levou Cleo a outro appointment, desta vez na Chanel. "Ela [Cleo] provou roupas, ela vestiu, ela ia escolher a roupa que ela iria usar [no evento], para você ter noção da proporção, entendeu? Eu [estava] dando todo esse meu poder a ela, apresentando, colocando [a Cleo] no lugar".
Procurada, Cleo negou ter ido à loja da Chanel com João para provar roupas. "Quem dera", diz ela, rindo.
"Appointments" na Chanel também não são tão exclusivos quanto João dá a entender quando fala de seu suposto "poder". Qualquer pessoa com acesso à internet pode marcar uma visita — e levar até quatro pessoas — para experimentar roupas e acessórios na companhia de uma especialista da marca.
A reportagem do TAB, por exemplo, marcou um "appointment" de 1 hora na loja da Chanel no SoHo, bairro de Nova York. Não foi necessário apresentar documentos, apenas fornecer email e um número de telefone. Consultada pela reportagem, a atendente da Chanel disse que é "muito possível" conseguir roupas e acessórios emprestados pela marca caso o visitante tenha visibilidade no Instagram, basta negociar com a especialista no dia da visita.
Trocas desse tipo são comuns no mundo dos influencers, que exibem uma variedade de acessórios de luxo (sem comprá-los) em suas redes sociais. O segredo para prosperar é ter um número razoável de seguidores e uma boa lábia — coisa que João tem de sobra.
'É um trabalho, né?'
Com uma oratória invejável e o jeito de falar que lembra um personagem do filme 'Meninas Malvadas', ele sustenta sua versão dos fatos: "Eu fiz coisas para ela [Cleo] que eu não faço por ninguém. Quando eu faço, claro que eu tenho que cobrar porque é um trabalho, né? São pessoas que não têm acesso a isso, e eu lutei muito para ter esses acessos".
João confirmou que sua amiga, a modelo goiana Carla Castro Sousa, pagou diárias do hotel em Nova York. Ele disse que se trata de uma cliente "ótima" e que foi ela que o levou para fazer stylist quando compareceu ao evento da Fórmula 1 em Mônaco. É o que explica, inclusive, as fotos dele no país europeu. Comparando postagens no Instagram, é possível ver que eles estiveram juntos também em Saint-Tropez.
Ao TAB, João afirma que "desentendimentos" o levaram a cancelar o trabalho que tinha combinado com Cleo em Nova York e negou a morte da mãe (disse que, na verdade, tinha acabado de perder uma madrinha, "que é como se fosse mãe").
Ele afirmou que desistiu de ir ao evento da Chanel em Nova York porque já estava estressado depois das brigas. "Eu falei pra ela 'olha, eu não quero continuar esse trabalho, eu vou ficar mais dois dias [em Nova York], até a data da passagem de volta [30 de julho], e nesses dois dias eu não quero nem te ver". Ele, então, continuou visitando a cidade com outra amiga.
João diz que os prints em seu celular provam a veracidade de sua versão, mas não quis compartilhá-los com o TAB. Segundo ele, o material foi entregue a seu advogado, que "levou o caso adiante". A reportagem pediu a João o contato do advogado, mas o influenciador também não quis compartilhar para não "expor" o profissional.
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