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Como o ultradireitista Javier Milei conquistou favelas da Argentina

"Mentiroso", diz o comerciante Nahuel Arauco, 22, para a TV a cada pronunciamento do presidente argentino Alberto Fernández. "Dá vontade de insultar. Quase votei nele, e olha como estamos. Minha mãe também reclama, já estamos todos cansados", conta, entre calças penduradas na loja que aluga para revender roupas na Villa 31, a favela mais antiga de Buenos Aires.

Arauco era integrante dos Granadeiros, guarda histórica da Casa Rosada, sede do governo, que diariamente iça a bandeira argentina na Praça de Maio. Acabou deixando o trabalho pela "raiva" de receber um salário líquido baixo devido aos diversos descontos obrigatórios.

Hoje trabalhando por conta própria e sem carteira assinada, ele diz ganhar o equivalente a cerca de R$ 2.700 (no mercado paralelo do peso), praticamente o dobro que antes. Ainda assim, mora na casa da mãe com a namorada por não conseguir pagar um aluguel. Nas últimas eleições presidenciais, em 2019, Arauco votou em branco. Nas primárias eleitorais deste ano, que definiram os presidenciáveis que disputarão o pleito de outubro, apostou no ultradireitista Javier Milei.

"Somos governados pelos mesmos políticos de sempre, que dizem que as coisas irão melhorar e veja como estamos", reclama, sobre a inflação anual de 113% e a pobreza do país, que beira os 40%. "Nossa geração quer algo diferente, uma mudança é necessária."

Milei, do partido La Libertad Avanza, surpreendeu tanto o eleitorado como seus concorrentes ao obter mais votos que o peronismo e o macrismo, movimentos partidários consolidados no país.

O candidato ultraliberal expressa (muitas vezes, aos gritos) indignação com a situação econômica, que se deteriora ano a ano.

Também choca ao insultar os demais políticos, por vezes com palavras de baixo calão, e ao prometer acabar com a "casta política", "dinamitar" o Banco Central, dolarizar a economia e liberalizar a venda de órgãos humanos. Economista liberal, o candidato é conservador nos costumes: defende um plebiscito para rever a legalização do aborto, aprovada pelo legislativo em 2020, da qual discorda.

O discurso radical, porém, tem atraído o voto principalmente de homens jovens do país. "Foi uma surpresa quando começaram a contar os votos e saía a maioria para ele", conta a estudante Maribel Flores, 18, que votou pela primeira vez nessas primárias e fiscalizou o pleito pelo partido de Milei em uma escola da Villa 31.

Originária da província nortenha de Jujuy e há cinco anos na capital argentina, ela diz não ter medo do discurso agressivo do candidato. "São metáforas", defende.

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Em preparação para estudar direito na Universidade de Buenos Aires, de acesso universal e gratuito, Flores defende a proposta de Milei de deixar de financiar o sistema público de ensino e de saúde. O candidato propõe destinar verba estatal por meio de "vouchers" para a população, para que — segundo ele — as pessoas possam escolher se preferem gastar no setor público ou privado, e assim, estimular a livre competição entre as instituições.

"Entendo perfeitamente a proposta dos vouchers e acho que vai melhorar a qualidade educativa, acabando com greves por exemplo. Voto nele pensando no meu progresso e nos meus estudos", argumenta a jovem.

Maribel Flores, na Villa 31, em Buenos Aires
Maribel Flores, na Villa 31, em Buenos Aires Imagem: Luciana Taddeo/UOL

Outro 'L'

No outro extremo da cidade, a bailarina Claudia Pereyra, 59, chora ao falar da situação do país. Integrante do balé do famoso Teatro Colón, vinda de uma família de classe média baixa, ela conta que se formou com muito sacrifício: "Minha mãe me perguntava se eu queria sapatilhas de balé ou sapato de inverno, porque não tinha como comprar as duas coisas. Eu escolhia a sapatilha e, no frio, usava sandália com dois pares de meias", lembra.

No teatro portenho desde os 18 anos, ela alega ter lidado toda a vida com "máfias" governamentais nas diferentes administrações da prefeitura (governada na última década pelo partido do ex-presidente Mauricio Macri) e de sindicatos. Com um discurso anticorrupção, defende a promessa de Milei de uma "purga" no setor estatal e o fim da "casta política".

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Para ela, a vitória dele não foi uma surpresa. "Escuto gente daqui dizer querer o Milei eleito para tornar a vida dos [outros] políticos miserável. Falam exatamente assim", afirma.

Pereyra cresceu e continua morando no bairro de Villa Soldati, bairro de classe baixa no sul da capital argentina, cercado por favelas. O local é considerado perigoso e, segundo moradores, está abandonado pela classe política. Basta caminhar por poucas quadras para ver fios elétricos caídos, além de muito lixo nas ruas. Lá, Milei também teve uma das votações mais expressivas da cidade.

Atraída pelo discurso do candidato de extrema direita, ela entrou em contato com militantes do bairro. Com eles, todos homens vestidos de preto, como se fosse um uniforme, ela recebeu a reportagem para percorrer a região.

Na hora de posar para a foto, eles fizeram um "L" com os dedos, em referência ao partido "La Libertad Avanza". O gesto, afirmaram enfaticamente, é diferente do "L" do Brasil — Milei rejeita Lula, a quem já classificou com um "esquerdista selvagem que apoia ditadores com as mãos manchadas de sangue".

Eleitores de Milei fazem o 'L' do partido La Liberdad Avanza (não é de Lula)
Eleitores de Milei fazem o 'L' do partido La Liberdad Avanza (não é de Lula) Imagem: Luciana Taddeo/UOL

O grupo também diz não concordar com a definição de "ultradireitista" para o candidato, argumentando que "liberal é diferente de capitalista": "Numa guerra, os liberais defendem a paz. Os capitalistas vendem as armas".

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Estamos na região dos "monoblocks", um conjunto habitacional com 3.200 moradias espalhadas por 19 hectares, que começou a ser construído em 1972 pelo governo argentino para alojar cerca de 18 mil pessoas. Aqui, os habitantes lutam para chegar a cada fim de cada mês com comida na mesa.

"Os pobres são os mais afetados pela inflação, lutamos para sobreviver. Não tem planos de futuro, de comprar um carro, uma casa", lamenta o militante liberal Fernando Andrada, 31, morador dos "monoblocks" que na campanha para as primárias percorreu comércios da região para convencer as pessoas a voltarem em Milei.

Fernando Andrada diante dos conjuntos habitacionais 'monoblocks', em Buenos Aires
Fernando Andrada diante dos conjuntos habitacionais 'monoblocks', em Buenos Aires Imagem: Luciana Taddeo/UOL

Mas o grupo se queixa da "deterioração cultural" no bairro. Falam em jovens viciados em drogas, vandalismo contra a pouca iluminação pública existente e roubo de fios de cobre. "As empresas de internet precisam colocar avisos de que os cabos são de fibra óptica e não de cobre, para que ladrões não cortem os fios e a conexão da população", conta um dos jovens.

Andrada cita ainda o "drama" em relação ao fornecimento elétrico na região. "A estrutura é obsoleta e, como não tem investimento das empresas de eletricidade, eles não têm lucro suficiente para reinvestir e criar uma qualidade de serviço que a demanda requer", conta.

"Frequentemente ficamos sem luz. Já sabemos que o controle de preços termina deteriorando a produção. O governo nos manteve em uma bolha econômica, em vez de subsidiar somente quem necessita e deixar que se cobre preço de mercado", argumenta ele. "Não culpo as empresas, culpo os políticos, que administram o país ao seu bel-prazer."

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