Avião do 'voo da morte' volta à Argentina após 30 anos: 'Não consigo olhar'
A médica argentina Claudia Mabel Careaga, 65, tinha medo do que sentiria ao ver de perto o avião usado pelos militares para jogar sua mãe, sedada e ainda com vida, ao mar.
Por décadas, Mabel tentou não pensar no sofrimento de Esther Ballestrino de Careaga. Militante política e uma das fundadoras do grupo Mães de Maio, ela procurava um genro desaparecido, mas acabou ela mesma presa e assassinada aos 59 anos, em 1977, num dos terríveis "voos da morte" da ditadura argentina (1976-1983).
No último sábado, o Skyvan PA-51 no qual Esther fez sua última viagem voltou a pousar no Aeroparque de Buenos Aires, vindo dos Estados Unidos — onde ainda voava, incógnito. E Mabel se viu novamente confrontada com o método de extermínio de que sua mãe foi vítima.
"Senti uma angústia e uma dor enormes", contou ela sobre a chegada da aeronave, presenciada por um pequeno grupo de familiares de vítimas. "Não dá para parar de imaginar o que aconteceu dentro desse avião." Seu marido, o aposentado Hèctor Francisetti, 69, pediu: "Que não voe nunca mais".
Após a aterrissagem, os presentes se reuniram diante da parte traseira do avião de carga — a mesma que era aberta pelos militares para arremessar os prisioneiros — e fizeram uma homenagem breve aos mortos e desaparecidos da ditadura argentina.
"Quero ficar de costas para esse avião", disse Mabel ao TAB, às lágrimas. "Quero que ele esteja aqui, que a população o veja e saiba o que aconteceu, que quando veja essa máquina veja a história do que foi o genocídio. Mas esse avião entrou em nossas vidas da pior maneira, sem que nem soubéssemos. É muito difícil olhar para ele, porque só vejo minha mãe e as outras Mães da Praça de Maio."
Amiga do papa Francisco
Nascida no Uruguai e nacionalizada paraguaia antes de vir para a Argentina, Esther Ballestrino de Careaga era bioquímica farmacêutica e militante de esquerda. Nos anos 1950, foi chefe do jovem Jorge Bergoglio, hoje papa Francisco, então com 17 anos, num laboratório onde ele trabalhava como técnico. Ficaram amigos.
Esther virou alvo dos militares após o golpe de 1976, quando começou a se reunir com outras mães que procuravam filhos desaparecidos no movimento conhecido como Mães da Praça de Maio.
Ela procurava pelo genro, Manuel Carlos Cuevas, companheiro de Mabel, preso em setembro de 1976. "Já se falava de desaparecidos, mas não tínhamos ideia de que não o encontraríamos nunca. Diziam que ele não estava preso e que não tinha ordem de prisão contra ele, que era o que respondiam sobre todos os sequestrados", lembra Mabel, sobre as idas com sua mãe a prisões e delegacias.
Meses após o desaparecimento de Manuel, a irmã de Mabel, Ana María, que como ela militava na Juventude Guevarista e estava grávida, ficou sequestrada por militares durante três meses. Após o episódio, as irmãs decidiram se exilar na Suécia. Esther, no entanto, continuou na Argentina à procura do genro e outros prisioneiros da ditadura. Acabou presa na igreja de Santa Cruz, em Buenos Aires, quando arrecadava dinheiro para publicar no jornal La Nación a lista de pessoas que procuravam por parentes presos e desaparecidos.
"Pensávamos que elas seriam soltas", conta Mabel, sobre o momento em que soube da captura da mãe com outras fundadoras das Mães da Praça de Maio. Mas Esther foi levada para a temível Esma (Escola Superior de Mecânica da Armada), o principal centro clandestino de tortura e prisão da ditadura argentina, e morta no mesmo voo no qual foram assassinadas as também Mães da Praça de Maio Azucena Villaflor e María Ponce de Bianco, além de duas freiras francesas, Alice Domon e Léonie Duquet.
Os 'trasladados'
Alguns dos corpos jogados do avião em 14 de dezembro de 1977 apareceram na praia de Santa Teresita, a cerca de 350 km de Buenos Aires. Os cadáveres foram analisados por um legista, que registrou que as lesões eram compatíveis com queda de grande altitude, e foram enterrados sem identificação no cemitério local.
A identidade dos restos mortais foi determinada pela Equipe Argentina de Antropólogos Forenses somente em 1995, ano em que o ex-oficial da Marinha argentina Adolfo Scilingo revelou a um jornalista que tinha jogado pessoas vivas, peladas e adormecidas, após receberem injeções com sedativos, em águas do Atlântico Sul.
Até então, a existência dos "voos da morte" era considerada um rumor mencionado por alguns sobreviventes. Muitos familiares e mesmo ex-presos relutavam em acreditar na veracidade de tamanho horror — apesar da ampla lista de aberrações cometidas pelos repressores naqueles anos.
"Em 1979, um grupo de mulheres foi liberado e afirmou que os 12 sequestrados na Igreja de Santa Cruz estiveram na Esma e que foram 'transladados'. 'Traslado' significava a morte, aplicavam uma injeção... Mas não acreditamos, não me pergunte por que, porque acreditávamos em tudo o que contavam. Mas era a negação, de 'como uma coisa assim poderia acontecer?'. Depois aceitamos que elas tinham desaparecido e sabíamos que uma das formas de desaparição eram os voos", conta.
Mabel revela que somente após voltar para a Argentina, em 1984, com a retomada da democracia, e ver a quantidade de pessoas na Praça de Maio com as Mães, questionando o paradeiro de desaparecidos, com cartazes e pedidos de justiça, conseguiu internalizar que Esther nunca mais voltaria.
"Nunca vou esquecer daquela cena, da quantidade de gente que havia, com as fotos enormes com todos os rostos. Eu não conseguia parar de chorar na praça. Só neste momento se tornou palpável [para mim] que eles não iriam voltar", conta.
A médica ficou anos sem conseguir falar sobre a mãe. Sonhava com ela dizendo que estava indo para algum lugar, sem revelar para onde. Era inevitável ver fotos e imaginar, de forma extremamente dolorosa, como ela morreu. Então ela tentou parar de se lembrar. Sua filha, quando pequena, perguntou se ela não tinha mãe e por que nunca falava sobre ela.
Até que, em suas próprias palavras, Mabel conseguiu não ficar presa "nessa parte horrorosa" e se apegar às boas recordações. "Se não fizesse isso eu teria perdido tudo, porque não conseguiria lembrar da minha infância, dos momentos lindos, do jeito e da voz da minha mãe. Só disso [do assassinato]."
Ela afirma, no entanto, que é impossível se recuperar totalmente de uma morte assim: "Vivi com isso a vida inteira, quando apareceram os restos mortais da minha mãe, quando o avião apareceu e nos sonhos."
Contra o negacionismo
Foi em 2010 que o avião Skyvan PA-51 foi descoberto em Fort Lauderdale, nos EUA, após uma investigação do fotógrafo italiano Giancarlo Ceraudo e da jornalista Miriam Lewin, que sobreviveu à prisão nos centros de tortura da ditadura. Segundo a apuração de ambos, esta aeronave foi um dos cinco Skyvan que, ao lado de três aviões Electra, eram utilizados nos "voos da morte".
A aeronave estava sendo usada para serviços postais entre a Flórida e as ilhas Bahamas e, atualmente, para saltos de paraquedas. O dono contava com documentos do avião que identificavam datas, trajetos (com pontos de destino similares ao de partida, sem paradas) e as iniciais de pilotos - e contribuíram para a reunião de provas contra os envolvidos nos julgamentos por crimes da ditadura na última década.
Scilingo, o militar que confessou ter jogado corpos do alto de aviões, foi condenado na Espanha a dez anos depois da admissão, por crimes contra a humanidade, sob princípio de justiça universal. Desde 2017, dois pilotos e outros envolvidos nos voos foram condenados na Argentina à prisão perpétua.
Mabel e a filha de Azucena Villaflor, Cecilia De Vincenti, apoiadas pela fundadora da Mães da Praça de Maio Taty Almeida, iniciaram então contatos com o governo de Alberto Fernández para que a Argentina comprasse e repatriasse a aeronave.
Para Lewin, que descobriu o paradeiro do avião, a repatriação é importante em um momento de "discursos negacionistas da ditadura". "Há 40 anos vivemos em democracia e muitos jovens que não viveram naquela época podem ser presa fácil do discurso de que não foram 30 mil desaparecidos, de que os reprimidos tinham vínculos com a guerrilha ou tinham métodos violentos. Mas o único 'crime' das Mães da Praça de Maio era procurar seus filhos e o das freiras francesas, ajudar", inconforma-se.
De Vincenti chegou a pedir, no ato oficial de repatriação do avião, uma lei contra o negacionismo. Citando a Alemanha, onde é proibido negar o Holocausto e fazer apologia ao nazismo, a vice-presidente Cristina Kirchner disse que a ideia deve ser considerada.
Com o retorno à Argentina, o Skyvan PA-51 ficará exposto na Esma, que foi convertida em um centro de memória sobre os crimes cometidos pela ditadura. "Somos obrigados a lembrar, pela memória deles [vítimas] e para que todo mundo saiba o que ocorreu e para que isso nunca mais aconteça", conclui Mabel.
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