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Carlos Carvalho, o cientista traído pelo governo no enfrentamento à covid

Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho, pneumologista, na Faculdade de Medicina da USP - Fernando Moraes/UOL
Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho, pneumologista, na Faculdade de Medicina da USP
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Angelica Santa Cruz

Colaboração para o TAB, em São Paulo

31/01/2022 04h00

Na noite de sexta-feira (21), o pneumologista Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho estava em casa quando recebeu, em um grupo de WhatsApp, um arquivo que, dizia o remetente, deveria ser lido com urgência. Abriu o documento e custou a acreditar no que viu. Ficou enojado. Não conseguiu continuar.

Era a nota técnica assinada horas antes por Hélio Angotti Neto, secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde. O documento tinha 45 páginas. Uma das que mais chamuscaram os olhos de Carvalho foi a de número 24. Nela, uma tabela comparava cinco "tecnologias de combate à covid-19" e dizia que a hidroxicloroquina funciona e é segura, ao passo que as vacinas não são eficazes, nem seguras.

O documento rejeitava uma recomendação de tratamento elaborada por Carvalho, junto a uma equipe de notáveis da saúde brasileira -- grupo formado a convite do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, acompanhado de perto pela própria secretaria comandada por Angotti Neto.

Foi um carrinho por trás no trabalho voluntário de oito meses feito por Carvalho.

Foi também uma rasteira no SUS (Sistema Único de Saúde), porque o trabalho de Carvalho consistia em desenvolver orientações para as várias fases de tratamento da covid-19. São diretrizes que explicam para as equipes de saúde, por exemplo, quando colocar um cateter de oxigênio no paciente, quando adotar ventilação invasiva, quando e como usar sedativo -- e assim por diante.

Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho, epidemiologista da USP - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho, pneumologista da USP
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Em dois anos de pandemia, o governo federal não emitiu sequer um protocolo nacional e unificado sobre atendimento de covid-19, à exceção de uma linha de atendimento de atenção primária para gestantes infectadas. Agora, com a ocupação de UTIs explodindo outra vez, esse protocolo seria precioso.

'Vacina ideológica'

Na noite de segunda-feira (24), uma nova versão da nota técnica, sem a tabela antivacina, foi assinada por Angotti Neto. Mas o estrago já havia sido feito.

Mesmo sem a tabela, a nota questiona os métodos dos pesquisadores reunidos por Carvalho. Diz que os dados usados têm "possíveis interesses de ordem ideológica". E dá o nome de dez especialistas que teriam "possíveis conflitos de interesses" ao participarem da elaboração das diretrizes.

Na prática, a nota técnica não cumpre apenas o propósito de enterrar o texto do grupo, que recomenda a vacina e exclui o "kit covid" do tratamento de pacientes. Ela também engaveta outros seis tópicos de um protocolo unificado, que dependia apenas de uma assinatura de Angotti Neto para ser publicado no Diário Oficial e chegar aos grotões do Brasil.

Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho, epidemiologista da USP  - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Ouro em pó

Angotti Neto é um oftalmologista conhecido por defender tratamento precoce e por ser um dos orgulhosos olavistas do governo Bolsonaro.

Carvalho é chefe da Divisão de Pneumologia do InCor (Instituto do Coração) do Hospital das Clínicas, onde também comanda a UTI Respiratória que criou há quatro décadas, quando tinha 28 anos. Tem uma folha monumental de serviços prestados à medicina, construída àquela maneira de guerrilha que sobra para os cientistas brasileiros.

Em 1998, ali na UTI que insistiu em criar -- e que já fechara e reabrira três vezes, por falta de profissionais suficientes para um rodízio de plantões sem trégua --, Carvalho orientou um estudo que mudou, em todo o mundo, a forma de fazer ventilação mecânica em pacientes com quadros graves de doenças pulmonares. As técnicas anteriores usavam o conceito de pressão positiva, que jogava grandes volumes de ar no pulmão dos doentes. Cuidando de vítimas de um surto de leptospirose que tinham os pulmões inundados de sangue, o pneumologista e sua equipe desenvolveram um método que reduzia pela metade a mortalidade ao colocar mais pressão e menos ar nos pulmões. "Só girando um botão diferente, no mesmo aparelho, sem gastar um tostão a mais", explica ele.

A estratégia, chamada de "Ventilação Mecânica Protetora" é hoje usada nas UTIs do planeta afora. O artigo científico onde ela foi esmiuçada, publicado no New England Journal of Medicine, tem mais de 2.300 citações.

Além do prestígio internacional bojudo, Carvalho encarou a covid-19 de frente. Passou por uma daquelas histórias de cinema. Em seu caso, foi uma inesperada volta à ativa.

Em 2018, o médico trabalhava no escritório de casa, à noite, quando sentiu que iria apagar. Conseguiu ir se arrastando pelo chão, bateu em um móvel e chegou ao quarto com o rosto ensanguentado, a tempo de pedir ajuda à mulher, a professora de radioterapia Heloisa de Andrade Carvalho. Foi levado às pressas para um centro cirúrgico. "Minha aorta estava rachada", conta.

Depois de operado, ficou com sequelas e permaneceu afastado do trabalho por quatro meses, para dar conta da fisioterapia. Em 2019, voltou à Faculdade de Medicina da USP, em ritmo mais lento. Mas achou que era hora de se aposentar. Tinha tempo suficiente de trabalho porque, vindo de uma família de classe média-baixa, começara a trabalhar aos 13 anos como office boy. Deixou a documentação para a aposentadoria toda pronta e, em janeiro de 2020, saiu de férias.

Mas, no meio do descanso, foi chamado com urgência pelo HC e pela Secretaria Estadual de Saúde. Queriam que ele participasse da criação de um comitê para monitorar o Sars-CoV-2, que já escapara da China. A partir dali, Carvalho não parou mais.

A UTI respiratória tem dez leitos e é uma das mais de 400 do HC. Chegou a 14 vagas para pacientes de altíssima gravidade -- entre eles, médicos e enfermeiros infectados no front. O próprio Carvalho pegou covid-19, apenas um mês depois do primeiro caso oficial no Brasil, mas escapou de ter os pulmões comprometidos. "Todo mundo se estropiou muito nesse período", define.

A taxa de mortalidade de pacientes intubados no HC foi metade da registrada no Brasil, entre fevereiro e agosto de 2020, de acordo com um estudo que analisou 250 mil casos de todo o país. O motivo: protocolo. No HC, médicos de todas as áreas se reuniam para montar diretrizes detalhadas e seguiam processos semelhantes. Com esses resultados em mãos, desenvolveram um aplicativo com tutoriais de técnicas de ventilação mecânica e fizeram teleconsultas em UTIs de todo o estado de São Paulo.

Mesmo atuando diretamente nas trincheiras, Carvalho fazia parte das grandes estratégias. Pela experiência científica e pelo que aprendeu na pandemia, era ouro em pó para ajudar o governo federal.

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Imagem: Fernando Moraes/UOL

Secretaria extraordinária

Assim que assumiu o Ministério da Saúde, Marcelo Queiroga buscou um nome de prestígio para assessorá-lo. Todos os caminhos levaram a Carvalho, a quem se apresentou quando fez uma visita de aproximação aos médicos da Faculdade de Medicina de São Paulo, em março de 2021.C

Semanas depois, Queiroga telefonou para o pneumologista e o convidou para assumir uma secretaria extraordinária que pensava em criar, para o combate à covid-19. Se assumisse, Carvalho teria de abandonar as atividades do HC e mudar-se para Brasília. Respondeu que não queria, mas que estava disposto a ajudar no que fosse possível.

Àquela altura, sem uma diretriz unificada em âmbito federal, cada entidade representativa de médicos publicava a sua. A Sociedade Brasileira de Infectologia tinha um protocolo, a de Pneumologia elaborou o seu. O Ministério da Saúde tem um programa chamado Proadi-SUS (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde), ligado a hospitais considerados de excelência no Brasil. Através dele, centros hospitalares como o Hospital do Coração, o Sírio-Libanês, Albert Einstein e Moinhos de Vento ofereciam seus protocolos. Mas era uma ação desordenada.

"Disse ao ministro que eu poderia fazer uma coordenação. Eu convocaria todas essas sociedades e faríamos um documento único. Isso é muito importante porque, ao longo desses meses, a população foi recebendo informações controversas. Ele concordou e começamos a trabalhar", conta.

Queiroga e Carvalho passaram a discutir os tópicos. Como era o período em que pacientes ainda estavam morrendo em Manaus, começaram desenvolvendo orientações para o uso racional de oxigênio.

As reuniões aconteciam todos os dias, das 17h às 19h, com médicos e especialistas. Os participantes mostravam seus protocolos e discutiam como unificá-los de uma maneira que fizesse sentido para o SUS. Todos, inclusive Carvalho, trabalharam voluntariamente.

As vacinas não entraram na pauta. "O ministro não pediu que nos posicionássemos, porque eram ponto pacífico. Brincou comigo que o ministério dele ia ser o da vacina, porque ele ia vacinar o Brasil inteiro", diz o médico.

Ao todo, foram criados oito tópicos, que cobririam vários momentos do tratamento, entre a chegada ao hospital e a alta. Os grupos de trabalho entregaram sete. O sétimo é o que motivou a nota técnica assinada por Angotti Neto. O oitavo, que deveria dar instruções para tratar os pacientes que tiveram alta e apresentavam sequelas, ainda não foi finalizado. Cada um contava com grupos de vinte a trinta especialistas. Carvalho coordenou todos.

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Imagem: Fernando Moraes/UOL

Bololô negacionista

Em maio de 2021, o ministro Marcelo Queiroga foi chamado pela primeira vez para depor na CPI da Covid. Questionado sobre a ausência de um protocolo, afirmou que estava trabalhando nessa diretriz, mas, pelos ritos do Ministério da Saúde, ela deveria ser apresentada à Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias). No organograma da pasta, a comissão fica pendurada na secretaria comandada por Hélio Angotti Neto.

No mesmo mês, Carvalho passou a ser ouvido em reuniões com a Conitec. Começou ali um intenso bate-bola. "Incorporávamos as sugestões, avaliávamos e devolvíamos com explicações sobre o que foi absorvido e o que foi rejeitado."

Até outubro, foram aprovados, em partes, os seis primeiros tópicos. Apesar de não terem caráter oficial, estão disponíveis no site da Conitec. Mas, no fim de setembro, Angotti Neto colocou um elemento novo na mesa. Pediu que Carvalho montasse uma equipe que discutisse o tratamento pré-hospitalar.

O bololô começou ali. Na primeira reunião, representantes antivacina indicados pela secretaria questionaram os métodos de trabalho do grupo. Carvalho explicou que eles haviam sido estabelecidos em abril e que seis documentos já haviam sido aprovados pela própria Conitec.

Pelo sistema adotado, por exemplo, todas as recomendações eram baseadas em artigos científicos publicados em periódicos respeitados. "Desde o começo, não nos baseamos na opinião de especialistas. Não adianta alguém falar: 'ah, tratei 10 doentes com Novalgina e eles não morreram, vamos colocar no protocolo'."

A nota técnica de Angotti Neto paralisou toda a estrutura. Além de defender a cloroquina -- a droga mais testada no mundo, em mais de 2.500 estudos, com ineficácia comprovada --, o documento critica métodos que o próprio Ministério da Saúde validou.

"É um documento oficial que saiu rejeitando e questionando a nossa capacidade. É uma sucessão de absurdos, um texto autoimplodível", diz Carvalho. "E ele bloqueou toda a linha de cuidados que iria ajudar a população brasileira, por causa de uma estupidez, uma discussão absurda sobre a cloroquina. Ninguém mais no mundo fala disso!", completa.

O documento causou indignação na comunidade científica. Entidades como a AMB (Associação Médica Brasileira) soltaram notas de repúdio. Um grupo de acadêmicos da Faculdade de Medicina da USP iniciou um abaixo-assinado, agora com mais de 73 mil assinaturas, em que afirmam: "Causa enorme preocupação o fato de que as rédeas do Ministério da Saúde estejam sob a posse da ideologia, da desinformação e, principalmente, da ignorância. O comportamento do Ministério da Saúde transgride não somente os princípios da boa ciência, mas avança a passos largos para consolidar a prática sistemática de destruição de todo um sistema de saúde".

Carvalho enviou o abaixo-assinado para sua lista de contatos no WhatsApp com o pedido: "por favor, assinar e espalhar". Mas, assim que teve estômago para ler a nota inteira, foi apurar os caminhos legais que poderia trilhar para pedir que ela seja anulada e os tópicos do protocolo nacional sejam adotados oficialmente.

Foi informado de que teria dez dias para apresentar um recurso. Agora, trabalha em conjunto com as sociedades representativas e pesquisadores para finalizá-lo, até a próxima quarta-feira (2).

De acordo com o pneumologista, o ministro Queiroga o orientou a enviar o recurso diretamente para Angotti Neto. "Falei que mandaria para ele também, para que não seja arquivado. Ele concordou, e disse que vai analisar os dois lados e só depois se pronunciar."

Quando o grupo que ele próprio constituiu apresentar a contestação, Queiroga, cardiologista que já foi presidente da SBHCI (Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista) vai ter de escolher entre a ciência e o negacionismo.

No meio desse angu, aos 68 anos, Carlos Carvalho continua dentro de um tsunami. Não sobra tempo nem para jogar basquete ao lado de sua casa, uma de suas maneiras de relaxar. De vez em quando, ouve da mulher a pergunta: "e a sua aposentadoria?'. Aí responde: "Ixi... ficou pra depois".