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'Ninguém aqui é normal': a rotina do setor do IML que identifica ossadas

Paulo Sergio Tieppo Alves, médico legista do setor de Antropologia Forense, mostra como é feita a análise de ossadas - Larissa Zaidan/UOL
Paulo Sergio Tieppo Alves, médico legista do setor de Antropologia Forense, mostra como é feita a análise de ossadas
Imagem: Larissa Zaidan/UOL

Marie Declercq

Do TAB, em São Paulo

18/03/2022 04h01

"As senhoras estão preparadas para ver o que tem aí dentro?", pergunta Seu Luiz, um dos seguranças, enquanto nos acompanha pelos corredores azuis e monótonos do IML (Instituto Médico Legal). Ao ouvir nossa resposta positiva (e um pouco hesitante), abre um sorriso simpático e caminha para seu posto na entrada do prédio.

Após uma pequena espera, Paulo Sergio Tieppo Alves, 53, médico legista do setor de antropologia forense do IML de São Paulo, sobe as escadas falando rapidamente com uma das peritas de odontologia forense sobre um possível cemitério clandestino encontrado na Grande São Paulo.

Próximo a uma sala trancada, com uma placa onde se lê "Sala de Vísceras", o especialista em medicina legal se senta próximo a caixas empilhadas com livros de anatomia e uma cópia do livro "Brasil: Nunca Mais". É dali que explica seu trabalho supervisionando o setor da antropologia forense.

O aviso do segurança não foi uma tentativa gratuita de assustar. Nem sempre aquele local de trabalho é um lugar fácil de se entrar, especialmente para quem não está acostumado. O setor recebe remanescentes humanos, cuja identificação tradicional já não é mais possível, como ossadas e corpos carbonizados ou já muito descaracterizados.

Por isso, a sala é mantida fechada e com uma placa de aviso com o desenho de uma caveira. Quem trabalha na antropologia tem uma rotina diferente da dos médicos legistas que trabalham no necrotério do IML, onde se lida com os mortos do dia a dia. No caso do setor liderado por Tieppo, chega ali quem está morto há mais tempo ou não pôde ser identificado pelas digitais ou mero reconhecimento visual.

Na literatura, há quem defina o trabalho de um antropólogo forense como uma tentativa de devolver a identidade aos remanescentes humanos esquecidos.

cartaz - Larissa Zaidan/UOL - Larissa Zaidan/UOL
Cartaz pendurado na porta da Antropologia Forense, setor responsável pela identificação de remanescentes humanos
Imagem: Larissa Zaidan/UOL

Nada de CSI

Acostumado a dar aulas para estudantes que estão começando a carreira na Polícia Científica, Tieppo explica em tom professoral como é esse "buscar a identidade dos remanescentes" que descansam na sala ao lado. "É um processo científico que consiste em uma série de diagnósticos para nos ajudar a descobrir qual é a identidade daquele corpo que está ali. E, para isso, trabalhamos com confronto", explica.

Trabalhar com confronto é, em termos menos técnicos, ter algo para comparar com o perfil biológico que o perito levantou, a partir dos restos que serão analisados. Tendo isso, o confronto é feito com os dados das supostas vítimas colhidos em vida.

Quanto mais informações (registros médicos, raio-X do corpo ou da arcada dentária, por exemplo) houver, mais material o perito terá para confrontar, e mais chances de conseguir chega a uma conclusão.

Mais simples ainda: se você analisou uma arcada dentária cheia de tratamentos odontológicos, fica mais fácil de identificá-la, caso tenha em mãos a ficha dentária da pessoa que suspeita ser a identidade da ossada. São as particularidades do ser humano que ajudam.

A mesma coisa com o DNA. Para saber se determinada ossada ou remanescentes humanos pertenceram a alguém, é preciso ter uma amostra do material genético dela para, assim, confrontar nas análises.

Apesar disso, nenhum exame funciona ou soluciona sozinho o caso, como nos acostumamos a ver em séries policiais em que um fio de cabelo revela identidade, causa da morte, modus operandi do assassino e tudo que tem direito.

O setor recebe de 150 e 180 remanescentes humanos anualmente - Larissa Zaidan/UOL - Larissa Zaidan/UOL
O setor recebe de 150 e 180 remanescentes humanos anualmente
Imagem: Larissa Zaidan/UOL

A falta de registros é o que dificulta o reconhecimento na antropologia forense. Afinal, como você pode confrontar o material se não há nem uma hipótese sobre o dono daquela ossada? E aí, a condição social determina os rumos. Quanto mais pobre e vulnerável, menos chances de se ter registros sobre uma pessoa em vida.

Dos 150 a 180 remanescentes humanos recebidos anualmente pelo setor, nem todos são identificados. "Não dá pra confrontar com o nada", afirma o legista. Hoje, a antropologia forense armazena cerca de duas mil ossadas no IML. É literalmente um setor com esqueletos no armário.

Desastres e cemitérios clandestinos

Cemitérios clandestinos não são algo comum, mas existem. "Muitas vezes recebemos denúncias de que é um cemitério clandestino, mas quando vamos ver há uma ou duas ossadas", explica Tieppo que, após uma pausa estratégica, esclarece. "Não que encontrar uma ossada seja pouca coisa."

Fora as ossadas, há também as tragédias. Nos últimos anos, peritos do setor trabalharam no acidente que vitimou Eduardo Campos em 2014 e na identificação das vítimas encontradas na casa do assassino em série da Favela da Alba, em 2016.

Apesar de parecer acostumado a falar com a imprensa, Tieppo é avesso à ideia de especificar alguns casos. Por ter vivido experiências não muito felizes com jornalistas, prefere falar com o assessor de imprensa da Polícia Científica ao seu lado.

Peritos, no geral, não são fãs de contar detalhe por detalhe de todo caso que chega à mesa. "É uma linha tênue entre a nossa obrigação de prestar contas à sociedade e também manter o sigilo dos casos."

Algumas situações, no entanto, são impossíveis de não virem à tona, como o trabalho que toda a equipe teve após o acidente com um avião da TAM em Congonhas, em 2007. Durante um mês, a antropologia forense identificou quase 200 pessoas que estavam no voo — na maioria, corpos completamente carbonizados. "Parecia um filme de apocalipse quando você entrava aqui", relembra o médico. "Passei meu aniversário trabalhando."

O setor recebe ossadas encontradas na capital e no interior do Estado de São Paulo - Larissa Zaidan/UOL - Larissa Zaidan/UOL
O setor recebe ossadas encontradas na capital e no interior do Estado de São Paulo
Imagem: Larissa Zaidan/UOL

Na época, a pressão da imprensa e das autoridades era acima da média. "A complexidade técnica em casos de grande repercussão é a mesma da dos casos anônimos. O que atrapalha é o pessoal vindo aqui toda hora", conta ele. Após receber os remanescentes das vítimas do acidente da TAM, todos os dias Tieppo tinha que parar o trabalho para receber alguma autoridade que aparecia nos corredores do IML cobrando maior velocidade no reconhecimento das vítimas.

Foi sugerido que a equipe trabalhasse 24 horas, em turnos, para acelerar a identificação. "Mas isso é impossível", explica. "Quando você começa a identificar um corpo, tem de ir até o final. Não dá para largar o trabalho no meio e passar para outra pessoa."

Ao todo, são seis pessoas no setor. "Nós conseguimos desenvolver uma dinâmica de trabalho em equipe onde o segredo não está apenas em um evento de grande repercussão, mas no dia a dia", explica. "É que nem uma orquestra com pessoas trabalhando juntas há muito tempo."

Portas abertas

Após a conversa com Tieppo, ele nos leva — um pouco relutante — para acompanhar na prática tudo que explicou em duas horas de conversa. Vestindo jaleco branco, cumprimenta a colega, também médica, que está documentando duas ossadas organizadas em cima de duas mesas. Ambos vieram de outras cidades do estado de São Paulo. Cercada de pastas, papéis e com a tela do computador parada em uma página de Word, a médica frisou a parte menos glamorizada da profissão: "Muita papelada", resume.

Os ossos estão meticulosamente arrumados sobre as mesas. Antes de serem montados e medidos, passam por uma limpeza feita pelos assistentes para retirar tecidos e outros materiais colados ao osso. Não há cheiro algum, exceto pelo material de limpeza, impregnado desde os corredores, higienizados constantemente pela manutenção.

Tieppo faz a medição da tíbia para determinar a altura aproximada da vítima - Larissa Zaidan/UOL - Larissa Zaidan/UOL
Imagem: Larissa Zaidan/UOL
medição - Larissa Zaidan/UOL - Larissa Zaidan/UOL
Tieppo faz a medição do fêmur para determinar a altura aproximada da vítima
Imagem: Larissa Zaidan/UOL

Aos olhos de leigos, as duas ossadas parecem idênticas. É aí que entra a prática dos peritos. Se você parar e prestar atenção, os ossos falam. Dos remanescentes, é possível descobrir a ancestralidade, gênero, o grupo etário, a estatura e, às vezes, até a causa mortis.

Uma parte extensa do trabalho é a medição de certos ossos que permite determinar o sexo biológico. Tieppo menciona a palavra "sexo" com cuidado. "Hoje em dia existe essa coisa de não poder falar do sexo biológico, porque a pessoa se refere a outro gênero. Mas, nesse caso, não temos como perguntar para a ossada como ela quer ser chamada. Então falamos aqui de características atreladas ao sexo biológico", explica.

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Paulo Sergio Tieppo Alves, médico legista do Núcleo de Antropologia Forense do IML de SP
Imagem: Larissa Zaidan/UOL

'Ninguém é normal aqui'

Tieppo entrou em um IML pela primeira vez no começo dos anos 1990, quando ainda era estudante na Faculdade de Medicina na USP. Passou no concurso público em 2002 e nunca mais saiu do necrotério. Fora o trabalho na antropologia, também é professor colaborador do Departamento de Medicina Legal do Instituto Oscar Freire da Faculdade de Medicina da USP e também dá aula de medicina legal na Academia de Polícia.

Não sabe dizer o que exatamente o fez se interessar pela área, mas, assim que entrou em contato com o assunto, já soube que passaria o resto da vida profissional debruçado em necropsias e laudos. "Gosto de cadáveres e gosto de trabalhar com cadáveres nesse estado", resume, ao som das risadas do assessor de imprensa que nos acompanha. "Doutor, assim parece que o senhor não é normal", adverte o assessor.

"Mas ninguém é normal aqui no IML", responde, com o meio sorriso oculto pela máscara cirúrgica.

Brincadeiras à parte, Tieppo fecha a cara quando ouve perguntas que possam sugerir certa insensibilidade à morte e ao sofrimento humano. No começo da entrevista, logo corrigiu a reportagem ao ouvir a palavra "podrão", jargão utilizado por alguns peritos da área para se referir ao cadáver em avançado estado de putrefação. "Ninguém gostaria de ouvir um parente sendo chamado assim", afirma.

Algumas coisas são possíveis de se acostumar. O mau cheiro é uma delas, ainda que logo seja maquiado pelo formol. Mas certos aspectos são impossíveis de normalizar. "Meus alunos perguntam muito se me acostumei com a violência. Nunca me acostumei e, se um dia eu me acostumar, será um problema."