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'Tenho um alvo nas costas': a rotina do vereador ameaçado por neonazistas

Leonel Radde em sua casa, no estúdio localizado no sotão onde grava seus vídeos para as mídias sociais - Tiago Coelho/UOL
Leonel Radde em sua casa, no estúdio localizado no sotão onde grava seus vídeos para as mídias sociais
Imagem: Tiago Coelho/UOL

Hygino Vasconcellos

Colaboração para o TAB, de Porto Alegre

07/04/2022 04h01

O portão tem quase três metros de altura e está cercado por um muro de tijolos. O acesso fica em um corredor verde, escurecido pela vegetação, e não há calçada nesse trecho da rua. Quem passa apressado pode até perder a entrada.

Forasteiros mal precisam avisar que chegaram, já que os latidos de nada menos que 30 cachorros fazem o anúncio. Ali mora o vereador e policial civil licenciado Leonel Radde (PT), 41, e seus tios de criação em casas distintas — a do petista fica mais ao fundo.

Leonel Radde, ao fundo, em sua casa com os cachorros, em Porto Alegre - Tiago Coelho/UOL - Tiago Coelho/UOL
Leonel Radde, ao fundo, em sua casa
Imagem: Tiago Coelho/UOL

Em 20 de fevereiro, o político, que vive na zona sul de Porto Alegre, recebeu ameaças de morte de grupos neonazistas. A data do assassinato está marcada: 31 de outubro. Além dele, também foram ameaçados o ex-presidente e pré-candidato à Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva, e a deputada federal Maria do Rosário, ambos do PT.

Apesar das ameaças, Radde segue com rotina inalterada e manhãs tomadas por atividades físicas. Procura fazer o dia render acordando às 5 da manhã. Após levantar, passa 20 minutos em meditação. Em vez de ligar as luzes do quarto, acende duas velas em um balcão próximo ao pé da cama, onde há uma estátua de um buda e um incensário. Em seguida, desliza a porta de correr do quarto e se senta sob os calcanhares em um colchonete, de frente a uma parede. De camiseta, deixa à mostra as tatuagens que cobrem os braços. Muitas delas fazem referência a símbolos do budismo.

Leonel Radde, vereador em Porto Alegre, meditando pela manhã em sua casa - Tiago Coelho/UOL - Tiago Coelho/UOL
Imagem: Tiago Coelho/UOL

Do lado de fora do quarto, a namorada, a enfermeira Giane Alves, 37, já começa a se arrumar para o trabalho — ela atua no bloco cirúrgico de um dos maiores hospitais da capital gaúcha. Os dois acabaram se conhecendo "na militância", nas palavras dela. O casal está junto há cerca de oitos meses, após o político ter terminado um longo relacionamento, no qual teve uma filha de 21 anos.

Depois da meditação, Radde vai até a pia da cozinha e prepara uma batida com banana, aveia e whey protein. Toma a bebida de pé e, em seguida, dá uns goles de água, retirada de um filtro de barro. De relance, espia as horas no relógio de parede.

Em um nível inferior à cozinha, integrada à sala, fica o escritório de Radde, uma espécie de área de lazer que ele chama de "Batcaverna". Logo ao lado das escadas, parte do piso é coberto por um tatame emborrachado azul. Do teto pende um saco de boxe. O petista luta jiu-jítsu há oito meses e pratica aikido há mais de 20 anos.

À direita do tatame, uma escrivaninha é o lugar de onde ele transmite vídeos para suas redes sociais. "É daqui que a gente responde aos bolsominions", afirma. De costas para a cadeira, uma bandeira do Brasil aparece esticada de ponta-cabeça. Fora do campo de visão estão fotos de Radde quando criança, do pai e do avô, além de instrumentos musicais (ele também é músico).

De volta à cozinha, Radde repara no relógio: já passava das 6h. "É hora de sair", diz a namorada. A movimentação na casa alerta o pastor alemão Marx e a pastora belga Frida, mantidos presos a poucos metros e soltos antes de o casal sair.

Após deixar a namorada no serviço, o político dirige mais 1,6 km e chega à escola de jiu-jitsu. Antes de pisar no tatame, Radde coloca um protetor para os dentes e avisa: "agora vocês vão ver a surra que eu vou levar". Depois de um breve aquecimento, começa a lutar com o professor. O local é climatizado, mas não demora muito para o espaço ser tomado por cheiro de suor.

O vereador Leonel Radde e Guilherme Vilhalba em treino de jiu-jitsu - Tiago Coelho/UOL - Tiago Coelho/UOL
O vereador Leonel Radde e Guilherme Vilhalba, em treino de jiu-jitsu
Imagem: Tiago Coelho/UOL

Radde fica pouco mais de uma hora no local. Ao final da aula, troca o quimono por camiseta e bermuda, e de carro, segue para a academia. Mal havia começado o treino e teve de parar para atender ao telefone. "Minha rotina é assim mesmo. Até as 9h eu consigo fazer minhas coisas, depois eu nunca sei."

Dali, o político vai para a Câmara de Vereadores, no centro de Porto Alegre. O gabinete é pequeno: de um lado da divisória fica a sala retangular de Radde e, de outro, o espaço dos funcionários. Atrás da porta foi pendurada uma mandala; sobre um armário, a estátua de um gato preto e um incensário. Em um quadro branco, uma gravura assinada por Carlos Latuff entregue em 2021 tem os dizeres "com um abraço antifascista".

Leonel Radde na delegacia de polícia de Combate à Intolerância de Porto Alegre, fazendo a denúncia das ameaças recebidas. - Tiago Coelho/UOL - Tiago Coelho/UOL
Leonel Radde na delegacia de polícia de Combate à Intolerância de Porto Alegre, fazendo a denúncia das ameaças recebidas.
Imagem: Tiago Coelho/UOL

Pais na militância, filho na polícia

A mãe de Leonel Radde, a bancária e sindicalista Suzana Guterres, ajudou a criar o PT no Rio Grande do Sul na década de 1980. O pai, Ronald Radde, foi fundador do PDT e se considerava antipetista. O prenome do filho é uma homenagem a Leonel Brizola, fundador do PDT e ex-governador do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul. "A brincadeira da minha mãe era dizer a meu pai que eu seria o primeiro Leonel eleito presidente pelo PT. Meu pai ficava putaço."

Por cerca de 10 anos, Leonel teve carreira artística por influência do pai, que era dramaturgo. No vestibular, decidiu fazer faculdade de história, a matéria de que mais gostava no colégio. Acabou formado também em direito e, em 2012, ingressou na Polícia Civil.

Radde perdeu a mãe em 2011 e o pai em 2016. Quando Ronald estava no leito de morte, o filho avisou que iria disputar as eleições para vereador pelo PT.

Leonel Radde durante sessão no plenário da câmara de vereadores de Porto Alegre - Tiago Coelho/UOL - Tiago Coelho/UOL
Leonel Radde durante sessão no plenário da câmara de vereadores de Porto Alegre
Imagem: Tiago Coelho/UOL

Política na DP

Embora seja filiado ao PT desde 1999, Leonel nunca teve pretensões eleitorais. Os planos mudaram em 2014 quando, segundo ele, passou a sofrer perseguição dentro da Polícia Civil, onde atuava como escrivão, por fazer críticas a José Sartori (na época do PMDB), candidato a governador do Rio Grande do Sul.

"Quando vi que o Tarso ia perder [a reeleição] para o Sartori, fiz um vídeo no meu Facebook para uns 3 mil seguidores que viralizou. Eu dizia: o Tarso conhece bem o serviço público e o Sartori só privatiza e ataca o servidor público. Criou-se uma tensão na campanha do Sartori, porque aquilo tocava numa pauta de que policial não gosta da esquerda, e eu vinha e quebrava com esse discurso."

Mesmo fora do horário e local de trabalho, Radde respondeu uma sindicância, a primeira de quatro investigações — todas acabaram arquivadas, sem penalidades. "Comprometeu minha progressão de carreira porque cada vez que tu é promovido tem aumento salarial e vai contar lá na aposentadoria."

Em 2015, após criticar as primeiras medidas de Sartori, como o fechamento de postos da Brigada Militar, passou por outra investigação. "Fui o primeiro servidor a ser investigado naquele ano. Alegavam que eu estava quebrando a hierarquia."

Após dizer que Sartori estaria destruindo a Polícia Civil, Radde pediu férias para poder cuidar do pai, que estava hospitalizado. Ao voltar ao trabalho, foi avisado que agentes da corregedoria estariam entrando com nova sindicância. Da janela do cartório viu o carro chegando, o que lhe provocou revolta. "Ali decidi que ia para o quebra-pau, não ia mais recuar. Era ano eleitoral."

Radde teve pouco tempo para fazer campanha e contou com o apoio de amigos. "Era eu panfletando, fazendo os vídeos, e um cara gravando quando dava e subindo os vídeos na rede." O esforço não deu muito certo da primeira vez: ele não foi eleito por uma margem de 80 votos. Tentou o cargo de deputado estadual em 2018, mas também não venceu. Em 2020, voltou a disputar para vereador e acabou sendo escolhido.

Tema frequente

Leonel Radde, que trabalhou na 20º DP e na Delegacia de Homicídios, não é iniciante no tema ameaça de morte. Em 2015, foi constrangido por um homem que ofendeu um frentista haitiano em um posto de combustíveis em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre. Na época, Radde atuou na investigação aberta para o caso.

Em 2019, denunciou os organizadores de um festival de rock, chamado "Rock Against Communism" (Rock contra o comunismo, na tradução livre). Imagens captadas em uma edição anterior do evento mostravam frequentadores vestindo camisetas com a suástica.
"Eles tiveram de responder a um inquérito. Aí começaram as ameaças por parte desses grupos, desses indivíduos, a ponto de terem acesso ao meu celular particular, meu WhatsApp, conseguirem o meu endereço residencial", relata.

Em 2020, o nome dele apareceu no dossiê elaborado sigilosamente pelo Ministério da Justiça que identificou um grupo de 579 servidores federais e estaduais de segurança, identificados como integrantes do "movimento antifascista", todos críticos ao governo Jair Bolsonaro. Radde descobriu por colegas que estava sendo perseguido por agentes do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) do gabinete da Presidência da República.

"Foram lá na inteligência da polícia e pegaram toda a minha ficha. Não sei há quanto tempo estão me monitorando", diz Radde, olhando para os lados.

Detalhe das tatuagens de Leonel Radde no plenário da câmara de vereadores de Porto Alegre - Tiago Coelho/UOL - Tiago Coelho/UOL
Detalhe das tatuagens do vereador Leonel Radde no plenário da câmara de vereadores de Porto Alegre
Imagem: Tiago Coelho/UOL

Rotina sem alterações

A ameaça de 22 de março chegou via WhatsApp, no número disponibilizado por ele para atendimento à população. O texto diz: "Sua morte está planejada. Será 31 de outubro de 2021, às 21h no Rio Grande do Sul. Mané". Na semana seguinte, o político registrou boletim de ocorrência na Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância. Segundo o vereador, o número do telefone da pessoa que fez as ameaças foi repassado aos investigadores que apuram o caso.

Enquanto conversa com a reportagem em seu gabinete, o político, que já esteve cara a cara com homicidas, diz que não pode menosprezar as intimidações. "O risco é real, mas eu acredito que a gente não pode pautar nossa vida a partir desse tipo de situação. Isso é muito esperado, eu tinha dito antes de a gente assumir o mandato. Não foi uma surpresa, sabe? Se tem alguém hoje, dentro da Câmara Municipal de Porto Alegre, que tem um alvo nas costas, que é um alvo prioritário dessa extrema-direita, é o nosso mandato." Ele afirma que redobrou cuidados e que tem dialogado com os colegas policiais.

A namorada, por sua vez, mostrou desconforto. "Fiquei com medo. Até no meu trabalho me perguntaram como eu estava com isso", contou Giane ao TAB na casa dos mais de 30 cachorros, enquanto Radde se concentrava na meditação.