Topo

'Espero continuar enquanto der': maestrina de 95 anos conduz coral em SP

Hugueta Sendacz, 95 anos, rege coral na Casa do Povo, em São Paulo - Fernando Moraes/UOL
Hugueta Sendacz, 95 anos, rege coral na Casa do Povo, em São Paulo
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Fábio Zuker

Colaboração para o TAB, de São Paulo

23/04/2022 04h01

Com dedo em riste e sobrancelhas arqueadas, a maestrina Hugueta Sendacz, 95, explicava ao público a origem do hino dos partisans, a resistência judaica ao nazismo. Sua fala, seguida de uma apresentação do coral que rege, foi o momento áureo das celebrações do Levante do Gueto de Varsóvia que acontecem todo ano na Casa do Povo, no centro de São Paulo. A festa aconteceu na última terça-feira (19).

De vestido e meia-calça pretos, Hugueta encolhia o corpo conforme a música ficava mais lenta e baixa. Depois, crescia para os lados e para cima, quando o cântico ganhava ritmo. Foi ela quem comandou a noite, ora entoando um discurso — fazendo muitos na plateia lacrimejarem —, ora transmitindo ternura e leveza ao conduzir o coro de 11 vozes cantando em iídiche.

"Nunca digas que esta é a sua última caminhada", traduziu Hugueta. Ela contou para cerca de 200 pessoas que o hino fora composto por Hirsch Glick, jovem poeta lituano. Glick o compôs entre campos de concentração e o gueto de Vilna, para onde eram levados os judeus antes de serem conduzidos aos campos de concentração.

"O compositor pegou o espírito da luta, da dignidade. De lutar com armas das mãos", afirmara a maestrina dias antes, em entrevista ao TAB.

A sonoridade do hino regido por Hugueta é estranha aos ouvidos brasileiros. A língua iídiche, hoje restrita a comunidades judaicas ultraortodoxas, sobrepõe traços do alemão, do hebraico e de línguas eslavas.

Em 19 de abril de 1943, cerca de setecentos combatentes judeus do Gueto de Varsóvia pegaram em armas para impedir que o exército nazista seguisse com as deportações. Menos de um mês depois, a insurreição foi massacrada pelo exército alemão.

A festa de terça-feira traçou um paralelo entre o cântico dos judeus perseguidos e os levantes negros, já que a Casa do Povo abriga temporariamente o acervo da Casa Sueli Carneiro, filósofa e escritora antirracista. A oradora foi Lucia Xavier, que há três décadas atua em defesa dos direitos das mulheres negras.

Hugueta Sendacz, 95, coordena um coral iídiche na Casa do Povo, em São Paulo - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL

De tijolo em tijolo

A história de Hugueta mistura-se a de uma pequena comunidade de judeus que foi morar no bairro do Bom Retiro. O fotógrafo Bob Wolfenson, 67, cresceu nesse ambiente. Para ele, Hugueta Sendacz é "tia Hugueta".

Bob morava com seus pais no mesmo edifício onde viviam Hugueta e seu marido já falecido, José Sendacz. O apartamento pertencia à mãe da maestrina.

Ele descreve esse ambiente "judaico-ateu" como marcado por intensas atividades políticas e culturais. "Nossa família não era religiosa. Restava essa coisa de humanismo, de cultura", relembra.

O fotógrafo se recorda das tardes que passava na casa de Hugueta. Quando era muito pequeno, ficava horas brincando com as louças dela, enquanto seus pais saíam para trabalhar.

Foi o ambiente festivo, na casa de Hugueta e José, que o marcou anos depois. "Aos sábados tinha uns aperitivos na casa deles, uns queijinhos. Eles bebiam. Era um lugar muito animado, cheio de conversa." Ele via em Hugueta e em todos os que frequentavam o círculo bastante ativismo.

"Era uma casa frequentada por muitos amigos. Ali eles resolviam todos os problemas do mundo", comenta Hugueta rindo, com alguma ironia. Hugueta fazia parte de um grupo de teatro, onde era atriz, figurinista e tradutora das peças do iídiche ao português. Ela e seu marido foram donos de uma fábrica de roupas; José cuidava do administrativo, e Hugueta da criação. Ela conta que estava sempre no aeroporto para ver "o pessoal chegar chique, elegante, [bem] vestido" — e ressalta que procurava apenas as tendências, não copiar modelos estrangeiros.

Aos 95 anos, Hugueta Sendacz rege coral na Casa do Povo, no bairro do Bom Retiro, em São Paulo - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Havia muitas organizações judaicas de esquerda no Bom Retiro, durante sua infância. Quase no fim da Segunda Guerra Mundial, um de seus membros decidira apostar que, se os russos chegassem a Berlim, ele doaria 500 contos de réis para a criação de um monumento às vítimas do Holocausto.

"Ainda nem se falava a palavra 'holocausto' naquele tempo. Durante muitos anos a gente não sabia dessas coisas, apenas começava a se saber", relembra Hugueta.

A ideia era criar um monumento vivo, "não uma estátua ou um obelisco, que não tem sentido", reflete ela. A proposta era erguer uma casa com um coral, uma escola, um teatro, para dar sequência à cultura que os nazistas tentaram exterminar.

O dinheiro doado serviu apenas para a compra do terreno e os membros do movimento de criação da Casa do Povo começaram a levantar fundos para construir o espaço. Hugueta, com 21 anos em 1947, grávida de 7 meses, era quem ficava na barraca, vendendo os tijolos. "Todo mundo queria contribuir. Todo mundo perdeu parentes lá na Europa."

Hugueta Sendacz, 95, coordena um coral iídiche na Casa do Povo, em São Paulo - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Dos fascismos às ditaduras

À época, Getúlio Vargas governava o Brasil de forma autoritária e postura antissemita. Eram os anos em que circulava o Plano Cohen, documento que circulava entre os militares e que supostamente trazia o passo a passo para uma "revolução comunista".

As pessoas eram proibidas de se aglomerar nas ruas, inclusive para conversar, relembra a maestrina. "Eram, no máximo, três. Se parassem e começassem a conversar, eram logo presos e iam para o Dops", o Departamento de Ordem Política e Social. Apesar dos tempos difíceis, as atividades políticas e culturais da comunidade não pararam. Para serem realizadas, eram necessárias autorizações no Dops mediante tradução juramentada do iídiche.

Já durante a ditadura militar, pós-1964, a Casa do Povo foi ainda mais impactada. O coral, o grupo de teatro, o jornal Nossa Voz, atividades abrigadas pela casa, foram encerrados. "Alguns associados foram detidos", afirma.

Hugueta não se recorda se houve um comunicado oficial, ou uma visita de algum militar. "Na prática, não precisou nem vir ordem escrita nem nada. Era uma época de terror." A maestrina se recusou a comentar os nomes.

A partir da década de 1980, com a comunidade judaica se dispersando por outros bairros, a Casa do Povo começava a enfrentar dificuldades. "Costumo dizer que o Coral Tradição manteve a Casa do Povo cantando. Eu acho bonita essa ideia de que o canto pode manter uma instituição", diz Benjamin Seroussi, 41, diretor executivo da Casa do Povo.

Hugueta Sendacz, 95, ao piano. Ela coordena um coral iídiche na Casa do Povo, em São Paulo - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Um coral para o futuro

O envolvimento de Hugueta com as artes começou cedo. Aos seis anos, ela foi matriculada no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, na República. A diretora do conservatório designou uma jovem adolescente para introduzi-la ao piano.

Foi lá que, anos mais tarde, já adolescente, passou a frequentar os cursos de história da música de Mário de Andrade. Hugueta o descreve como um homem "elegantérrimo", "impecável", e "um profundo conhecedor de tudo que é cultura que existe". Quando foi sua aluna, ele havia recém-regressado de sua pesquisa musical pelo Norte e Nordeste.

Os seminários eram praticamente diários, com Mário de Andrade sentado à cabeceira de uma mesa comprida na biblioteca do conservatório. Ela sorri, ao comentar que há poucos dias reencontrou uma ficha da aula que teve de apresentar aos 14, 15 anos, sobre história da música medieval, incentivada pelo ilustre professor.

Hugueta só aprendeu regência mais velha, enquanto já conduzia o Coral Tradição. Os ensaios aconteciam em sua casa, no final da década de 1980. Após dois anos, transferiu as atividades para a Casa do Povo. Hoje, o Coral tem entre 10 e 12 pessoas, entre judeus e não judeus. Todos, garante a maestrina, cantam em iídiche perfeito.

Lídia Nobel, 80, é nascida na Argentina e há 13 anos faz parte do coral. Quando começou, não sabia nada de canto. "Vou acompanhando de ouvido, e Hugueta anima muito o coral." A pandemia impôs desafios: a sincronização das vozes por videochamada fica muito difícil, devido ao atraso de algumas conexões. "A Hugueta fazia questão de fazer os encontros via Zoom."

Com a relativa melhora, o Coral conseguiu realizar três ensaios presenciais para a celebração do Levante do Gueto de Varsóvia. Hugueta explica que tem em seu repertório 120 músicas apresentadas, entre canções populares, cantigas de ninar, cantigas folclóricas, músicas de festa, músicas satíricas, músicas de protesto e músicas sobre o Holocausto. E garante, risonha: "tem um outro tanto sendo preparada". "Estamos voltando à ativa, com tudo! E espero continuar enquanto der", diz a maestrina, para quem parece ser inconcebível separar música, vida e política.