Topo

'Virei mito': 'Cara da Sunga' fica famoso correndo no frio de Porto Alegre

Eduardo Viamonte, conhecido como o "Cara da Sunga", que corre seminu nas madrugadas de Porto Alegre - Carlos Macedo/UOL
Eduardo Viamonte, conhecido como o 'Cara da Sunga', que corre seminu nas madrugadas de Porto Alegre
Imagem: Carlos Macedo/UOL

Fernanda Canofre

Colaboração para o TAB, de Porto Alegre

14/06/2022 04h01

A temperatura caía rápido na madrugada de sábado (11), com um ar gelado que parecia cortar o rosto de quem caminhava na rua, enquanto Eduardo André Viamonte se dirigia ao saguão do prédio onde vive, no bairro do Bom Fim, em Porto Alegre, com uma garrafa térmica debaixo do braço e uma sacola vazia.

O ritual se repete todos os dias, em todas as estações do ano. Enquanto conversa com o porteiro Carlos Fernandes, Eduardo vai tirando a roupa, guardando as peças dentro da sacola. Passam vizinhos, alguns entregadores, ele bebe água e sai para a rua vestindo apenas sunga, tênis, touca e luvas.

Na rotina de 20 km de corrida — metade do percurso no horário de almoço e metade na madrugada, com total de cerca de 2 horas diárias — Eduardo, funcionário público, professor de inglês, músico e agora influenciador digital, vira "o cara da sunga".

"No inverno, eu procuro a hora mais fria, porque é legal. O frio induz a uma produção muito maior de dopamina, no meu caso, o high da corrida é mais forte com o frio. Corro no verão, é horrível, é perigoso e Porto Alegre é um horror. É muito mais prazeroso correr no frio", explica ele.

Ainda que os termômetros marcassem 10ºC, depois 9ºC, depois 8ºC, no começo da madrugada, a sensação térmica girava em torno de 4ºC, enquanto ele se preparava para sair.

Foi num dia de temperatura parecida, em meados de 2003, que ele correu assim pela primeira vez, por um acaso. Naquele dia, como tinha esquecido a parte de cima da roupa que usava para fazer exercícios, resolveu correr pelo Parcão, um parque no bairro Moinhos de Vento, sem camisa mesmo.

"Diziam: 'vai morrer, vai pegar uma pneumonia!' Os carros passavam e gritavam. Só que eu não fiquei com aquela sensação de suor, não senti o desconforto da roupa suada, molhada e gelada. Lembro direitinho. Nunca mais corri de roupa", lembra. "O benefício foi tão grande, não tinha que lavar aquele monte de roupas", brinca.

O corpo, diz, acostumou-se rápido. Mesmo enfrentando na pele temperaturas de 0ºC e ondas de frio, ele conta que nunca pegou gripe ou resfriado nas quase duas décadas em que se tornou "o cara da sunga". "Quando era adolescente, eu vivia com dor de garganta, tinha febre. Depois que comecei a correr, minha imunidade ficou muito alta, principalmente depois que comecei a correr sem roupa", afirma.

Eduardo Viamonte, conhecido como o 'Cara da Sunga', de Porto Alegre - Carlos Macedo/UOL - Carlos Macedo/UOL
'No inverno, eu procuro a hora mais fria, porque é legal. O high da corrida é mais forte com o frio', diz Eduardo
Imagem: Carlos Macedo/UOL

'Mente aberta, espinha ereta'

Por volta da 1h30 da manhã de sábado, a temperatura na capital gaúcha oscilava entre 7ºC e 8ºC, na rua João Telles, bairro do Bom Fim, onde ele costuma passar durante as corridas noturnas. Frequentadores dos bares e casas da região que estavam pela rua pediam fotos, chamavam e acenavam, reconhecendo a figura famosa.

Um jovem se aproximou com o celular já gravando o vídeo, perguntando sobre o tempo e abraçando Eduardo, que lançou um recado: "mente aberta, espinha ereta". Um grupo de meninas, depois outro de rapazes, pediu selfies. Outros curiosos só olhavam e exclamavam admirados por vê-lo tão à vontade naquele clima.

"É um estilo de vida dele. Ele é muito conhecido aqui, trata muito bem todo mundo", relata a vendedora de cachorro-quente Hortência Fernandes, 69, que tem um ponto na região há cerca de dez anos e encontra Eduardo quase todos os dias.

"Estava de bota, mas troquei para um tênis, duas meias de lã, coloquei um casaco impermeável e por baixo uma lã. Tenho uma mala de roupas e uma de sapatos para ir trocando, para aguentar o frio, a chuva", conta, enquanto tenta esquentar as mãos e atender clientes.

No início da pandemia, Eduardo passou a publicar conteúdos em uma página no Instagram (@caradasunga) e em um perfil no TikTok. Em uma das madrugadas do começo de junho, antes da chegada oficial do inverno, ele gravou um vídeo para uma marca de cerveja, mostrando como gelar a bebida, em temperatura ambiente, no parque da Redenção.

No passado, chegou a ouvir ofensas, o que não gosta de comentar. Agora diz que só recebe carinho, além de fazer amizade com pessoas em situação de rua, garis e policiais que trabalham na madrugada, e os feirantes que encontra vez ou outra quando sai para correr perto do amanhecer.

Já no amanhecer do último sábado, com sensação térmica de 2ºC em Porto Alegre, encontrou um grupo de corredores de outros estados e se juntou a eles. "Vivo um estado de afeto, de amor com a cidade, porque onde vou as pessoas são muito carinhosas."

Eduardo Viamonte, conhecido como o 'Cara da Sunga', de Porto Alegre, para tirar uma foto com um fã - Carlos Macedo/UOL - Carlos Macedo/UOL
Fã pede para tirar selfie com o 'Cara da Sunga', na madrugada de sábado (11), em Porto Alegre
Imagem: Carlos Macedo/UOL

Lenda urbana

Logo que começou a ficar conhecido, Eduardo evitava dar entrevistas ou revelar mais sobre si mesmo. A imaginação popular começou então a criar lendas em torno de quem era o homem que corria sem roupas pela capital gaúcha.

Surgiram boatos de que ele seria um policial ou dono de uma rede gaúcha de farmácias que usava um óleo pelo corpo para se proteger do frio — na verdade, ele trabalha há cerca de 30 anos na área de TI do Banrisul, banco estadual. Também surgiram apelidos como "Gasparzinho" e "Francês".

A alcunha só se oficializou depois da música "O Cara da Sunga", composta por Carlinhos Carneiro, das bandas Bidê ou Balde e Império da Lã, em 2014. Enquanto corria pela Cidade Baixa, Eduardo ouvia as pessoas citando versos da canção e decidiu que o melhor seria abraçar o nome e não lutar contra ele.

"Essa história do 'cara da sunga' não aconteceu por acaso, ela vem sendo narrada coletivamente pela sociedade há 20 e poucos anos. Virei lenda, virei ícone, virei mito, mas nunca busquei isso", diz ele, que não revela a idade.

Eduardo usa o apelido em tudo que faz artisticamente desde então — ele se apresenta com a banda Império da Lã e o grupo Bloco da Laje e é mestre de cerimônias. No restante do tempo, quando está vestido, diz que dificilmente é reconhecido, pois ninguém imagina o corte de cabelo que esconde por baixo de toucas e chapéus que usa e colegas cumprem o acordo de não fotografá-lo.

"Não me defino como um personagem, e sim como artista, pois estou envolvido com várias coisas e é minha vida real, nada é armação. Me sinto muito mais 'cara da sunga' do que Eduardo", afirma.

Eduardo Viamonte, conhecido como o 'Cara da Sunga', de Porto Alegre - Carlos Macedo/UOL - Carlos Macedo/UOL
'Virei lenda, virei ícone, virei mito, mas nunca busquei isso', diz Eduardo
Imagem: Carlos Macedo/UOL

'Não parei mais'

Quando era aluno no Colégio Militar, destaque por boas notas, Eduardo fugia da educação física e nunca imaginava que teria a corrida como uma das coisas mais importantes da sua vida um dia.

Ele começou a correr ainda na adolescência, durante um intercâmbio nos Estados Unidos, quando achou na atividade um escape para ansiedade pelo bullying que sofria na escola por não saber falar inglês muito bem e não conseguir acompanhar as aulas. "Pela primeira vez, comecei a correr para baixar a ansiedade", lembra. O hábito foi retomado quando a rotina no Brasil também pesou na época que cursava Ciências da Computação na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

"Corria para desestressar e comecei a notar que, quando corria, eu tinha soluções, as coisas aconteciam na minha cabeça. Aí não parei mais. O ganho mental era muito grande — [faz] 27 anos que comecei a correr todos os dias."

Anos depois, quando cursava psicologia, ele chegou a fazer um trabalho sobre os efeitos da corrida no cérebro, para entender o papel dos neurotransmissores e também a influência que tinham na imunidade.

"Fiquei alguns anos desenvolvendo técnicas, qual a distância que eu tinha que correr, se mais rápido ou mais devagar. Fui dominando a partir das minhas experiências, anotando algumas coisas e estudando", relata.

Com o tempo, tudo que envolve a sua rotina de corridas — que não tem roteiro definido, nem horário fixo — Eduardo classifica como comportamento aprendido, especialmente os cinco passos que usa para encarar os dias de frio: proteger as extremidades para manter a temperatura do corpo; respirar profundamente; hidratar-se, mesmo sem sede; não ter medo do frio, nem de ficar doente; e, por último, não contrair o corpo.

"A única coisa que eu sei é que vou correr todos os dias", diz.

Eduardo Viamonte, conhecido como o 'Cara da Sunga', de Porto Alegre - Carlos Macedo/UOL - Carlos Macedo/UOL
O termômetro marcava 8ºC, mas a sensação térmica era de 4ºC naquela madrugada
Imagem: Carlos Macedo/UOL