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'Estamos todos no mesmo barco': a 1ª lésbica presidente da Parada LGBT+

Claudia Regina Garcia, presidente da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo - Camila Svenson/UOL
Claudia Regina Garcia, presidente da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo
Imagem: Camila Svenson/UOL

Do TAB, em São Paulo

16/06/2022 04h01

Quando entrou no Ferros' Bar pela primeira vez, no final dos anos 1970, Claudia Regina Garcia entendeu que existia mais gente como ela na imensa São Paulo assombrada pela repressão da ditadura militar. Uma amiga da escola já havia lhe dito antes ("vai lá, tem muita gente parecida com você"), e a adolescente de 15 anos foi comprovar. Precisava descobrir aquele espaço que virou símbolo da luta de mulheres paulistanas pela liberdade sexual.

"Ali fiquei sabendo dos encontros de grupos homossexuais organizados e, em 1980, entrei para o Grupo Somos. Foi então que começou minha história política", lembra a hoje militante de 59 anos, funcionária de um laboratório de exames do Hospital das Clinicas. O Somos foi um dos primeiros coletivos de gays, lésbicas, travestis e bissexuais do país, fundado em 1983.

De certo modo, a história de Claudia se confunde com a do movimento LGBTQIA+ paulistano que ela viu crescer e ajuda a organizar, como a primeira lésbica presidente, a Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo.

Claudia conta que aprendeu a expressar "o amor em gueto", muitas vezes escondida, mas não se acostumou a isso. "Não era a visibilidade que se tem hoje. Havia repressão, ignorância. E nem tínhamos metade do conteúdo informativo que temos agora. Era uma militância discreta, impedida pela polícia de realizar atos públicos", lembra ela, ao comentar o contexto atual, em entrevista ao TAB na sexta-feira (10).

Claudia Regina Garcia (ao centro), durante entrevista coletiva sobre a Parada LGBT+ de 2022 - Camila Svenson/UOL - Camila Svenson/UOL
Claudia Regina Garcia (ao centro), durante a coletiva de imprensa da Parada LGBT+
Imagem: Camila Svenson/UOL

A volta

No domingo (19), a Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo — considerada a maior manifestação desse tipo no mundo — volta às ruas depois de dois anos de pandemia. Cerca de três milhões de pessoas são aguardadas nesta edição, segundo os organizadores. A festa passa bem longe da dimensão daqueles tempos em que Claudia iniciou a militância, quando pouquíssimas pessoas conseguiam se manifestar publicamente.

Em 2019, quando houve a última edição presencial da parada, o evento movimentou R$ 403 milhões na economia da cidade, segundo cálculos da Secretaria Municipal de Turismo. Comparando com dados de 2017, foi um aumento de 78% no número de visitantes à capital paulista.

Mas, para 2022, ano de eleição, a Parada do Orgulho LGBT+ escolheu como tema "Vote com orgulho: por uma política que representa", uma reflexão que religa a própria Claudia aos seus ideais de juventude.

"Esse ano, em especial, nós vamos levar para a avenida Paulista a discussão sobre a democracia. Precisamos garantir que o Brasil seja um país que respeite a diversidade. Isso é um país próspero", disse Claudia, em entrevista coletiva com jornalistas e influenciadores digitais, na segunda-feira (13), em um teatro na zona sul da capital. "As instituições do país estão reféns de um governo autoritário, e, enquanto não temos uma constituinte, precisamos defender a eleição de políticos progressistas."

Claudia Regina Garcia, 59, assumiu a presidência da Parada em 2017 - Camila Svenson/UOL - Camila Svenson/UOL
Claudia assumiu a presidência da Parada em 2017
Imagem: Camila Svenson/UOL

Uma presidência simbólica

Claudia Regina Garcia viu a epidemia de Aids, no final dos anos 1980, esvaziar o Somos. "Morreram muitos amigos. Outros entraram em depressão. Conheço homens que tentaram 'virar' hétero só para não pegar a doença", conta ao TAB. "Naquela fase, migramos para o movimento político e fomos participar da formação do PT", acrescenta ela, que se diz marxista.

Depois do Somos e do PT, ela militou em grupo de mulheres feministas. Casou na década de 1990 e se afastou por um período, voltou às pautas de diversidade sexual e identidade de gênero nos anos 2000. "Fui para a parada de 2003. No ano seguinte, já estava voluntária e segui", explica. Em 2017, ela assumiu a presidência da APOGLBT (Associação da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo) pela primeira vez, depois de o então presidente deixar o cargo. Desde então, vem sendo reconduzida ao posto.

A presidência de Claudia é também simbólica. Ela lidera a principal entidade de um movimento que, historicamente, deu mais espaço de poder a homens gays — fato inúmeras vezes criticado por mulheres. "Acho uma decisão errada você se isolar. É preciso ensinar as pessoas no confronto, não como inimigo. Aprendi isso no Somos. Quando entrei nele, as lésbicas tinham acabado de sair porque acharam importante militar entre elas. Mas eu fiquei, uma escolha da qual não me arrependo."

O machismo que existe, argumenta a presidente, não a abalou. "Com os gays, aprendi a ter tolerância. Antes de ser lésbica, sou cidadã. Há quem diga que a mulher na parada não foi acolhida, mas acho que muitas decidiram continuar numa postura de gueto", comenta. "Sempre tive dificuldade de ter mulheres lésbicas na parada. Mas estamos todos no mesmo barco."

Claudia diz que quebrou barreiras misóginas dentro do grupo. "Assumir a presidência foi parte de uma construção. Esse reconhecimento foi natural", defende. "Estou cercada de homens, e há também uma mulher trans. Às vezes tenho que bater na mesa, porque gay não deixa de ser masculino. Mas sempre vejo a sociedade mais global, a coisa marxista me ensinou isso. Aprendi vivendo junto, não atacando, não me colocando mais abaixo nem me sentindo menor. Eles aprenderam a respeitar minha história."

A 23ª edição da Parada LGBT+, em 2019, na avenida Paulista - Eduardo Anizelli/Folhapress - Eduardo Anizelli/Folhapress
A 23ª edição da Parada LGBT+, em 2019, na avenida Paulista
Imagem: Eduardo Anizelli/Folhapress

'É hora de se juntar'

Além da festa ao redor da Parada do Orgulho LGBT+ no domingo, a presidente gostaria que o tema escolhido pela organização marque os participantes. Para ela, há coisas urgente a serem discutidas.

"A gente está lutando para viver. Quando vem a agressão, todo mundo apanha junto", alerta. "Se a gente não se ligar, tem uma bancada conservadora que pode destruir tudo que foi conquistado. Não é hora de divisão, é hora de se juntar, inclusive com outros movimentos: movimento negro, movimento de mulheres, feministas, dos trabalhadores. A fome e a falta de moradia estão atingindo a todos."

Atenta à história que ela também ajudou a escrever, Claudia defende que cada vez mais o movimento LGBTQIA+ esteja atento à consciência política e de grupo. "É preciso recontar sempre a história e formar essa nova geração que vem, para que não se apague o passado", diz. "O retrocesso é sempre um fantasma."