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'Não vou desistir': agricultora produz óleo de cannabis para 3 mil famílias

Fernanda Peixoto e Mateus Marin, no sítio onde funciona a Maria Flor, em Marília - Lilian Caramel/UOL
Fernanda Peixoto e Mateus Marin, no sítio onde funciona a Maria Flor, em Marília Imagem: Lilian Caramel/UOL

Lilian Caramel

Colaboração para o TAB, de Marília (SP)

26/06/2022 04h01

A paranaense Fernanda Peixoto tem dedos verdes, como diz a expressão inglesa. Quando criança, costumava acompanhar o pai, que plantava café na região de Londrina. No começo da vida adulta, quando morou nos Estados Unidos, especializou-se em sistemas agroflorestais com David Deppner, fundador da "Trees for the Future", organização dedicada à restauração ecológica e agricultura sustentável com atuação em mais de 50 países.

Foi nessa época que começou a pesquisar sobre as propriedades da Cannabis sativa para tratamento do filho. Um médico norte-americano havia lhe sugerido cadastrar seu primeiro filho de um ano de idade, portador de uma taquicardia de risco, em um estudo do Children's Hospital of Chicago sobre os compostos químicos da espécie. "Ele acreditava que a planta poderia ajudar a evitar episódios simultâneos de aceleração cardíaca e convulsões. Se acontecesse, Nicolas poderia morrer", lembra Fernanda. O tratamento com a cannabis afastou as convulsões perigosas, até que uma cirurgia cardíaca resolveu o problema quando o menino completou nove anos.

Em 2010, de volta ao Brasil, Fernanda coordenou um projeto de plantio de moringa, árvore de origem indiana de alto valor nutricional, para produção de farinha a partir de mudas. O objetivo era reforçar a alimentação de crianças carentes. Viajou país afora plantando moringas em assentamentos, comunidades indígenas, associações rurais e praças. Também plantou tarumãs, leucenas e açaizeiros para confecção de biobijuterias com sementes nativas. A ideia era gerar renda entre as comunidades e o trabalho tinha o apoio da "Trees for the Future". Os esforços deram frutos e ela recebeu um prêmio.

Em 2015, com a bolada do prêmio, abriu uma escolinha de educação ambiental, em Marília (SP), no sítio que a família havia comprado. A Escolinha da Mata oferecia trilhas, aulas ao ar livre e chegou a receber 10 mil crianças por ano.

O sucesso das empreitadas, porém, não veio sem uma pedra no caminho. Em 2018, ela e o marido, o horticultor Márcio Pereira, resolveram partir para uma aventura que não terminou bem. O casal viajava de Marília a Xapuri, no Acre, de carro, com alguns frascos do óleo de cannabis medicinal preparado por Fernanda. O destinatário era um amigo que sofria, após a retirada da próstata. Nessa época, ela já sabia cultivar a espécie e extrair os canabinoides, ainda que sem autorização legal.

Na zona rural de Rondônia, no entanto, antes de chegar ao Acre, foram flagrados em uma blitz da Polícia Rodoviária Federal. A sentença veio dez meses depois: 7 anos e 7 meses de prisão. "Quando você carrega remédio, como pode imaginar que vai pagar por crime hediondo?", questiona. "A Lei de Drogas é atrasada. É ela que mata o trabalho das associações."

Fernanda amargou cinco dias em um presídio feminino de Porto Velho (RO), seis meses em prisão domiciliar e atualmente responde em liberdade enquanto aguarda os desfechos do processo de execução penal. Márcio continua preso. Após cumprir quase três anos da pena em Rondônia, onde contraiu malária três vezes, apanhou e dividiu cela com 80 presos, ele segue em regime semiaberto na Penitenciária de Marília. Por ironia do destino, o complexo fica a apenas 2 km do sítio. É lá que ela trabalha coordenando a Maria Flor, associação canábica sem fins lucrativos - a maior do estado de São Paulo.

"A gente passa por aqui todo dia e fica imaginando ele lá dentro... A batalha desse casal não é fácil", queixa-se Silvia Almeida, diretora de acolhimento, ao passarmos em frente ao presídio rumo à Maria Flor. A prisão de Márcio gerou mobilizações online. "Acolhimento" é o nome dado ao trabalho das associações brasileiras de atendimento e acompanhamento continuado dos pacientes. Além de uma conta no Instagram que pede a liberdade de Márcio, circula um vídeo em apoio à causa, com participações de Eduardo Suplicy e Criolo.

Fernanda Peixoto, terapeuta canábica à frente da Maria Flor, em sítio de Marília (SP) - Acervo Pessoal - Acervo Pessoal
A terapeuta canábica Fernanda Peixoto, atuando pela 'Trees for the Future' no Brasil
Imagem: Acervo Pessoal

Orgânica, artesanal e barata

Fernanda passa o dia cuidando de oito variedades orgânicas de maconha, que crescem em uma estufa equipada com ventiladores, lâmpadas e telas de proteção. A partir das flores secas são produzidos seis tipos de óleos, pomadas e sabonetes. Ela é diretora de plantio e coordena um time de seis horticultores. "Com essa história da prisão e o estigma da planta, meu pai me achava uma doida. E a primeira estufa foi comprada com dinheiro da minha avó", ri, lembrando que passou um período financeiro difícil entre a prisão e a abertura da Maria Flor. A associação surgiu em 2020 e, em pouco tempo, passou de alguns amigos próximos atendidos para cerca de 3.000 famílias de todo o país.

Fernanda recebe a reportagem na manhã de uma segunda-feira entre clones — mudas replicadas a partir de sementes próprias — e o vai e vem dos horticultores. Eles chamam os clones de "bebês" e as plantas adultas de "meninas". Na entrada da estufa, um quadro lista receitas de defensivos e fertilizantes naturais, como chá de húmus, inseticida de vinagre, adubo de palma e um "guardião cítrico" para repelir insetos. "Eu vim da terra. A gente aprende com a natureza." Aplicando o que aprendeu com Deppner sobre agricultura regenerativa, ela chega a colher 140 quilos de flores a cada safra - são duas colheitas ao ano.

Produtos derivados da cannabis feitos pela Maria Flor - Lilian Caramel/UOL - Lilian Caramel/UOL
Produtos derivados da cannabis feitos pela Maria Flor
Imagem: Lilian Caramel/UOL

"Temos 35 colaboradores registrados, todas as contas são transparentes e, o mais importante, desoneramos o SUS em alguns milhões ao mês. A gente sabe muito bem que dá para produzir medicamento de qualidade e barato para muita gente. Ninguém precisaria pagar R$ 3 mil por uma caixinha de canabidiol importado e ficar refém da big pharma", critica. Seus óleos, de extração artesanal, são enviados pelos Correios mediante receita médica.

Questiono se ela conhece algum caso de cura efetiva com a cannabis. "Depende do que você entende por cura", devolve. "O que a gente pode garantir é a melhora na qualidade de vida. Vejo a cannabis como um fitoterápico complementar. É preciso começar devagar, ir ajustando a dose aos poucos e a cura irá depender da sensibilidade de cada um aos compostos da planta", coloca a horticultora, certificada em terapia canábica por um instituto de Israel.

A reportagem de TAB passou o dia na associação. Pela tarde, quem chega é o cadeirante Mateus Marin, 14, o primeiro paciente nos registros da Maria Flor. Mateus não fala e tem dificuldades para se manter ereto, mas não sofre mais as 80 convulsões diárias de antigamente, causadas pela Síndrome de West. "De 80 convulsões ao dia, passamos para 40 com a maconha. E, em quatro dias, elas desapareceram. A planta age nos sintomas e equilibra o organismo", conta Claudia Marin, mãe de Mateus e vice-diretora do "acolhimento".

Claudia Marin, o filho Mateus e o marido, no sítio onde funciona a Maria Flor - Lilian Caramel/UOL - Lilian Caramel/UOL
Claudia Marin, o filho Mateus e o marido, no sítio da Maria Flor
Imagem: Lilian Caramel/UOL

Fernanda sabe que um revés na Justiça pode significar dias mais duros na prisão ou, até mesmo, a interdição da associação, que tem o cultivo autorizado por uma liminar. A associação pleiteia um habeas corpus coletivo, o que traria maior segurança jurídica às quatro mulheres no comando dos trabalhos. Além da Fernanda, Silvia e Claudia, a farmacêutica Carol Marroni completa o quarteto, respondendo pela presidência.

No final de mais um dia cheio, Fernanda segue para casa com os cachorros animados na garupa. Os colaboradores começam a retornar para a cidade. À noite, mais trabalho está à espera. Há um site para refazer e o festival da próxima colheita, programado para setembro, para organizar. Na última colheita, em março, 47 médicos participaram do encontro. Eles aprendem com ela a extrair, dosar e prescrever. Apesar das incertezas quanto ao futuro, o do marido e da Maria Flor, Fernanda não desanima. "Vou continuar nessa batalha incansavelmente. Está clara a necessidade de milhares de brasileiros pelos óleos. A gratidão dos pacientes aliviados é o que me move. Eu não vou desistir."