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'Pesquisador dos terreiros': professor negro é impedido de assumir vaga

Doutor em direito, Ilzver Matos passou num concurso com base na Lei de Cotas, em 2019, e assumiria uma vaga na UFS, em 2020, mas não conseguiu tomar posse - Ricardo Borges/UOL
Doutor em direito, Ilzver Matos passou num concurso com base na Lei de Cotas, em 2019, e assumiria uma vaga na UFS, em 2020, mas não conseguiu tomar posse
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Rodrigo de Souza

Colaboração para o TAB, de Niterói (RJ)

02/11/2022 04h01

É sexta-feira, 21 de outubro, dia de Oxalá, e o acadêmico sergipano Ilzver Matos, 42, caminha todo vestido de branco no campus Gragoatá da UFF (Universidade Federal Fluminense), em Niterói (RJ). Convidado para contar sua história num encontro sobre questões étnico-religiosas da população negra, ele parece cansado, apesar do sorriso. "Sou um pesquisador dos terreiros", disse. "No direito, sou a maior referência no Brasil nesse tema. E estou sem emprego [na área]."

Dias depois, na quinta-feira (27), Ilzver voltou a narrar o caso, desta vez, no Seminário Internacional do Inct/Ineac (Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos). Para uma plateia de mestres e doutores, descreveu o episódio como se fosse um estudo de caso retirado de suas próprias pesquisas acadêmicas. Desde março de 2021, Ilzver vem contando sua história: doutor em direito, ele passou num concurso com base na Lei de Cotas, em 2019, e assumiria uma vaga de docente no departamento de direito na UFS (Universidade Federal do Sergipe), em 2020, mas não conseguiu tomar posse do cargo. "Essa história me consome", diz.

Um dos fundadores da Anajure (Associação Nacional de Juristas Evangélicos), ligada à ex-ministra e senadora eleita Damares Alves (Republicanos), o advogado Uziel Santana reivindicou a vaga, argumentando que teria prioridade para ocupá-la por ser professor do campus de Itabaiana (SE). Mestre pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), Uziel não tem doutorado, diploma exigido para o cargo. Ainda assim, o departamento deu razão a ele, e Ilzver não foi convocado.

Único candidato negro aprovado no concurso, Ilzver conta que travou uma batalha judicial e política para reivindicar sua admissão — o acadêmico ganhou recurso no Conselho Universitário, a instância máxima da universidade, mas não na Justiça. No dia 7 de outubro, a juíza federal Telma Santos Machado, da 1ª Vara Federal de Sergipe, decidiu que Ilvzer tem direito a uma das três vagas abertas atualmente, mas só poderá ocupá-la após a abertura de um edital de transferência interna de um professor já lotado na universidade. "A UFS mantém-se inerte, o que tem atrasado a convocação e a nomeação do demandante", diz um trecho da sentença.

"É a primeira vez que reconhecem meu direito de ocupar a vaga. Mas, mais uma vez, a questão está nas mãos da universidade", diz ele, com uma ruga de incerteza no rosto. Ele espera agora assumir um dos três cargos disponíveis no departamento de direito, mas ainda não sabe quando — nem se — a universidade o convocará.

Ilzver levou a questão ao Supremo Tribunal Federal, mas a ministra Rosa Weber negou seguimento à ação por considerar que ela ainda não havia sido esgotada pelos tribunais inferiores.

De temperamento calmo, ele explica pausadamente cada desdobramento do processo que se arrasta há quase dois anos. Tem percorrido congressos pelo Brasil para denunciar o descumprimento à Lei de Cotas não só na UFS, mas por outras instituições de ensino que empossaram menos pessoas negras do que o previsto na lei.

"Nem todo mundo tem coragem de contestar as decisões da instituição", diz. Segundo ele, candidatos muitas vezes preferem não se expor, por temerem retaliação em certames futuros. O silêncio pode ser igualmente imperativo para os já empossados, que temem dar margem a inimizades e perseguições políticas nas universidades.

Ilzver Matos, no Rio de Janeiro - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
'Nem todo mundo tem coragem de contestar as decisões da instituição', diz o acadêmico Ilzver Matos
Imagem: Ricardo Borges/UOL

'Universidade me mostrou que eu era negro'

Filho de uma faxineira e de um pintor de paredes, Ilzver é o primeiro doutor da família. Candomblecista, ativista do movimento negro e autor de quase 60 artigos acadêmicos, dedicou suas pesquisas a questões de direitos humanos. Estuda cotas raciais desde a graduação — seu TCC, defendido em 2004, foi uma proposta de implementação do sistema de reserva de vagas na UFS, que só viria a adotá-lo seis anos depois. Foi presidente da Comissão de Igualdade Racial e a Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de Sergipe.

Na universidade, diz, viu-se vítima dos fenômenos que sempre estudou: intolerância religiosa e racismo.

"Foi a universidade que me mostrou que eu era negro. É uma identidade que se firma a partir do apontar das outras pessoas", conta. Na graduação na UFS, era um dos poucos alunos negros na turma. "Quando entrei, comecei a ser chamado de 'negão'. Foi aí que eu pensei: sou diferente", lembra.

Na pós-graduação, primeiro na UFBA (Universidade Federal da Bahia) e depois na PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), enquanto estudava comunidades de matriz africana, abriu-se aos poucos para os colegas, até sua identidade virar motivo de orgulho. "Só decidi revelar minha religiosidade quando terminei o doutorado, quando passei a me sentir em paz para falar para qualquer pessoa que eu sou de terreiro. Mas ser negro não tem como esconder."

A história de Ilzver mobilizou movimentos sociais e organizações de direitos humanos, que consideram o episódio um caso de racismo religioso e institucional. Para o jurista Silvio Almeida, é difícil imaginar que a universidade e seus gestores teriam a mesma atitude se Ilzver não fosse negro. "O caso de Ilzver é um descalabro. É evidente a ilegalidade dos atos que têm impedido o professor de assumir o cargo. Mas o que impressiona é a forma com que a universidade tem se portado, resistindo sistematicamente ao cumprimento da lei", diz. "A forma com que a universidade e seus dirigentes têm conduzido o caso é motivo de indignação."

De acordo com um levantamento do Observatório das Cotas Raciais, iniciativa do Instituto Braços e do MNDH (Movimento Nacional dos Direitos Humanos), das 38 vagas abertas pela UFS nos quatro editais publicados desde janeiro, só uma foi ocupada por uma pessoa negra (2,6% do total de vagas ofertadas, muito abaixo do mínimo de 20% previsto na lei). Entre 2014 e 2019, segundo a entidade, a UFS abriu 227 vagas para professores efetivos, das quais somente 20 (8,8%) foram preenchidas por candidatos autodeclarados pretos ou pardos.

"As universidades precisam adotar posturas antirracistas ao aplicar as cotas para superar as próprias resistências internas", comenta a procuradora Martha Figueiredo, autora de uma ação civil pública contra a UFS, que tem o Instituto Luiz Gama, presidido por Silvio Almeida, como "amicus curiae".

Ilzver Matos, no Rio de Janeiro - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
'O caso de Ilzver é um descalabro. É motivo de indignação', comenta o jurista Silvio Almeida
Imagem: Ricardo Borges/UOL

'Nunca fui de desistir de nada'

No fim de setembro, o MNDH e o Instituto Braços enviaram um pedido de cautelar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Na internet, o movimento ganhou apoio de Daniela Mercury e David Miranda, entre outras personalidades.

Hoje diretor de direitos humanos da Prefeitura de Aracaju, Ilzver vê nessa mobilização um jeito de pressionar as instituições a relembrar o propósito das ações afirmativas: reparar injustiças históricas. "Nunca fui de desistir de nada. Acho que isso é típico dos filhos de Ogum: perseverança, resistência, é ele que me dá essa força", afirma. "Agora a gente pode estar se encaminhando para uma resolução. Mas sei que nada está certo até o momento da assinatura da posse."

No dia 7 de outubro, a UFS publicou uma nota destacando que segue a legislação, "sendo uma das primeiras universidades federais do país a adotar políticas afirmativas para promover a inclusão de populações historicamente privadas do acesso a oportunidades". A nota foi motivada pela repercussão negativa sobre a postura da instituição no caso de Ilzver.

Ao TAB, a universidade diz que não houve racismo em nenhuma das instâncias que trataram do caso. A instituição informa que, quando o Conselho Universitário decidiu pela convocação de Ilzver, já havia uma decisão judicial vigente impedindo a nomeação dele.

A UFS já foi instada pela Procuradoria-Geral Federal a executar a decisão da Justiça, cujo primeiro passo é a abertura de um edital. No entanto, não há data prevista para o lançamento do processo seletivo. A Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas informou que aguarda o envio da papelada pelo departamento de direito.

Cerca de 60 entidades, entre elas o PT e o MNU (Movimento Negro Unificado), endereçaram uma carta ao Ministério Público Federal informando que Uziel Santana foi assessor parlamentar entre 2017 e 2020, ao mesmo tempo em que era docente da UFS — a Constituição só permite o acúmulo do trabalho de professor com outro cargo técnico ou científico. Entretanto, ele atuou nos gabinetes dos deputados federais Leonardo Quintão (MDB), Pastor Roberto de Lucena (Republicanos) e Pastor Eli Borges (PL). O documento pedia uma investigação.

Procurado pelo TAB, Uziel não respondeu os contatos. A secretária de seu escritório informou que o advogado estava ausente por motivos de saúde.

Ilzver Matos, no Rio de Janeiro - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
'Agora a gente pode estar se encaminhando para uma resolução. Mas nada está certo até a assinatura da posse'
Imagem: Ricardo Borges/UOL