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'Carandiru era um país': sobreviventes lembram massacre, que faz 30 anos

Mauricio Monteiro, sobrevivente do massacre do Carandiru, hoje trabalha no memoria dedicado ao episódio, na zona norte de São Paulo - André Nery/UOL
Mauricio Monteiro, sobrevivente do massacre do Carandiru, hoje trabalha no memoria dedicado ao episódio, na zona norte de São Paulo
Imagem: André Nery/UOL

Do TAB, em São Paulo

02/10/2022 04h01

De uma janela do terceiro andar do pavilhão 9, Maurício Monteiro, 53, viu a tragédia começar. Os policiais tentaram entrar no prédio ao lado, o 8, mas foram impedidos por funcionários. Correram, então, para onde ele cumpria pena havia dois anos. O que veio na sequência foram tiros que deixaram mais de cem mortos.

Naquele 2 de outubro de 1992 — que completa 30 anos neste domingo —, 111 homens foram assassinados pela Polícia Militar de São Paulo, dentro do complexo do Carandiru, na capital paulista, no maior massacre no sistema prisional da América Latina. Na lembrança de Maurício, foi "bem mais que isso".

Preso em 1990 pelo crime de sequestro seguido de extorsão, ele estava em uma cela com mais 14 presos. Era final de tarde de sexta-feira, véspera da eleição municipal, quando a Tropa de Choque invadiu o local com a justificativa de controlar uma rebelião na penitenciária. "Eles atiraram para matar. Entravam e atiravam. Tinha gente com mais de 70 tiros, tudo nas costas", conta.

Maurício tentou se esconder atrás de uma cortina do banheiro improvisado, num dos cantos da minúscula cela. "O policial engatilhou a arma na minha cabeça e, quando ia atirar, um tenente impediu. Aquele homem foi meu anjo", lembra. "Ele estava desesperado. Dava pra notar o nervosismo. Ele dizia: 'Eu tô fazendo o que posso, tô fazendo o que posso'. Depois, mandou a gente ficar de cueca e ir para o pátio."

Maurício Monteiro, sobrevivente do massacre do Carandiru - André Nery/UOL - André Nery/UOL
No dia do massacre, Maurício tentou se esconder atrás de uma cortina, na cela
Imagem: André Nery/UOL

'Sou um número para o Estado'

As cenas do massacre seguem inalteradas na memória de Maurício. "A polícia chegou, deu facada, encheu de tiro, jogou cachorro em cima dos presos", lembra, apontando para uma fotografia que mostra, do alto, os antigos prédios da casa de detenção de São Paulo. "Era um país, e cada pavilhão era um estado."

O painel gigante é uma das peças do acervo da antiga Casa de Detenção, o Espaço Memória do Carandiru, na zona norte da capital paulista, onde ele trabalha como monitor. "Estou aqui e sou parte dessa história. Tenho que enfrentar nossa dor para que os outros não passem por isso", diz.

Fora da prisão desde 2011, depois de cumprir sua pena, Maurício se formou em gestão ambiental e em educação física. Na comunidade da Itápolis, no Jardim São Gabriel, zona leste de São Paulo, ele dá aula de boxe para crianças e adolescentes atendidas pelo Irec (Instituto Resgata Cidadão), criado por ele e pela família.

Integrante da frente de sobreviventes do massacre, o ex-detento se tornou um ativista contra o encarceramento em massa no Brasil — país com cerca de 920 mil pessoas presas, segundo o Depen (Departamento Penitenciário Nacional). "Isso não resolve. O Estado quer uma superlotação das prisões para justificar o aparelhamento das polícias e os gastos com presos", critica.

No YouTube, Maurício produz conteúdo de vídeo sobre assuntos ligados ao cotidiano de presos, como a presença de celular dentro dos presídios, e às lutas dele e de outros sobreviventes pela Justiça aos mortos no massacre. O canal se chama "Prisioneiro 84.901".

"84.901 é meu número de entrada no sistema prisional. Hoje, mesmo depois de ter cumprido pena, se a polícia me para, eles puxam esse número e veem meus antecedentes. É uma marca para sempre. Eu sou um número para Estado", reclama. "E eu luto para que isso acabe. Quem pare de nos perseguir. Por causa desse número, quem sai da prisão não consegue arranjar emprego. E por isso muitos voltam para o crime, porque sem oportunidade a gente é mão de obra para o crime organizado."

Espaço Memória do Carandiru, no Parque da Juventude, reúne objetos e fotos da antiga penitenciária - André Nery/UOL - André Nery/UOL
Espaço Memória do Carandiru reúne objetos e fotos da antiga penitenciária
Imagem: André Nery/UOL

'Esconder uma realidade'

A poucos metros da estação Carandiru do Metrô, o Parque da Juventude, um complexo cultural tido como refúgio arborizado na zona norte, abriga entre suas instalações uma biblioteca, um parquinho infantil e o Museu Penitenciário Paulista — e, desde 2017, o Espaço Memória Carandiru, quase escondido dentro da Escola Técnica Parque da Juventude.

O memorial funciona no prédio onde era o pavilhão 4 — um dos dois únicos não implodidos após a desativação do complexo penitenciário. "Aqui não é um parque de diversão, querem esconder uma realidade", afirma o artista André du Rap, que sobreviveu ao massacre no pavilhão 9 depois de se esconder entre corpos de outros presos. Para ele, aquele devia ser um espaço como o Museu do Holocausto, na Alemanha.

André fazia 21 anos no dia do massacre. Ele cumpriu pena no Carandiru de 1991 a 2000 por homicídio.

Como Maurício, André também milita contra o encarceramento em massa e transformou suas lembranças em música, poesia e livro sobre a prisão e o massacre — em "Sobrevivente André du Rap (do Massacre do Carandiru)", publicado em 2002, ele reconta tudo o que viveu em depoimento ao jornalista Bruno Zeni.

Livro de André du Rap tem relato do ex-detento e imagens do Carandiru - André Nery/UOL - André Nery/UOL
Livro de André du Rap tem relato do ex-detento e imagens do Carandiru
Imagem: André Nery/UOL

"Não são textos de vingança, mas de justiça", afirma ele, que hoje lidera com outros amigos um movimento para arrecadar assinaturas contra a anistia dos policiais condenados pelos assassinatos no presídio.

Em 2013 e 2014, 74 PMs foram condenados a penas de 48 a 624 anos de prisão pelo Tribunal do Júri. Em 2018, no entanto, o TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) suspendeu a decisão e pediu novos julgamentos. Após recurso do Ministério Público, no último dia 4 de agosto, o ministro do STF (Superior Tribunal Federal) Luís Roberto Barroso decidiu manter a condenação.

Tramita no Congresso, porém, um projeto de lei de autoria do Capitão Augusto (PL-SP) que concede anistia aos condenados — o texto foi aprovado na Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados e será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania e pelo plenário.

"Você já viu algum político dizer que vai fazer alguma coisa pela população carcerária?", questiona André. "Eu nunca vi", emenda.

"Queremos justiça. Só isso. Quando eu falo 'nós', eu falo de todo o sistema prisional. Isso chama atenção também para os outros massacres que existem todo dia. Nas comunidades, por exemplo, a polícia não entra para proteger, entra para matar."

André du Rap, sobrevivente do massacre do Carandiru - André Nery/UOL - André Nery/UOL
André du Rap, sobrevivente do massacre do Carandiru
Imagem: André Nery/UOL