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Fome e medo do suicídio: a preocupação dos familiares de presos na pandemia

WIN-Initiative/Neleman/Getty Images
Imagem: WIN-Initiative/Neleman/Getty Images

Vinícius Pereira

Colaboração para o TAB

29/09/2020 04h00

A quarentena causada pelo novo coronavírus isolou as pessoas de forma inédita, trazendo consequências até então inimagináveis para a sociedade. Para os brasileiros presos e suas famílias, o isolamento forçado foi ainda pior: com a terceira maior população carcerária do mundo em números absolutos, o país proibiu os familiares dos detentos de realizar visitas e dar suporte a eles durante a pandemia.

Os relatos ouvidos em condição de anonimato pelo TAB demonstram que, sem poder visitar os detentos desde meados de março, os familiares se preocupam com a possibilidade de suicídio, o medo da fome e a necessidade de entrega dos "jumbos" -- os kits feitos pelas famílias com itens básicos de higiene.

"O poder público ainda deixa muitas lacunas em relação ao sistema prisional, deixando de suprir necessidades e direitos básicos das pessoas privadas de liberdade", afirma a mestre em administração pública e governo pela FGV (Fundação Getulio Vargas) e pesquisadora do NEB (Núcleo de Estudos da Burocracia), Mariana Scaff Haddad Bartos. "A atual pandemia exacerbou estas falhas e violações de direitos que são sistemáticas e históricas", diz ela.

Não à toa, a pesquisa "A pandemia de Covid-19 e os familiares de presos no Estado de São Paulo", realizada pela FGV (Faculdade Getúlio Vargas), mostrou que 34% das famílias de pessoas presas em São Paulo estavam com dificuldades para se alimentar e que 69% das famílias afirmaram estar sem qualquer informação ou contato com o familiar preso durante o período.

Agora, alguns locais já permitem visitas controladas ou agendamentos de chamadas virtuais, mas as dificuldades permanecem, dado o escasso tempo de contato ou a impossibilidade de oferecer suporte material aos presos.

Pandemia isolou detentos

A necessidade de isolamento social como forma de diminuir o contágio da Covid-19 fez com que a suspensão das visitas separasse milhares de brasileiros. De acordo com dados do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), a população carcerária do país é de cerca de 773 mil pessoas.
Caso se considere a ligação afetiva com outras quatro pessoas, os detentos, somados a seus familiares, compõem uma população de 3 milhões de pessoas no Brasil -- número próximo ao da população total do Uruguai, por exemplo.

"Todas essas pessoas não tinham informação dos parentes dentro das penitenciárias. Já as pessoas de dentro não sabiam o que estava acontecendo aqui fora, e ainda há dificuldade de encontrar os representantes legais de cada detento, que, geralmente, atuam como fonte de informação do mundo externo", explica ao TAB Natália Pires Vasconcelos, mestre e doutora em Direito Constitucional pela USP (Universidade de São Paulo) e professora no Insper.

Para Mariana Scaff Haddad Bartos, o sistema prisional brasileiro poderia comportar, atualmente, cerca da metade dos detentos que de fato comporta. "Ou seja: temos cerca de 300 mil pessoas a mais do que o sistema comporta. É muita gente. Além disso, estamos falando de locais, em sua maioria, insalubres, com pouca circulação de ar e pouca luz, ambientes propícios à propagação de doenças", afirma.

Segundo especialistas ouvidos pelo TAB, no Brasil prende-se muito, de forma geral, e julga-se pouco. Mesmo com a pandemia, não houve uma soltura gradual prometida, mesmo com a orientação do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), publicada em março, que orientava a condução dos casos. Segundo o Depen, cerca de 33% dos presos são provisórios e nem ao menos foram julgados ainda.

"Em geral, os crimes são ligados ao mundo da droga, ou seja, as pessoas cometeram crimes ligados a drogas, como tráfico, ou são usuários e recorrem aos furtos", conta Vasconcelos. "O sistema de Justiça atua, de certo modo, conivente com essa situação. Eles ignoram os relatos da Defensoria Pública, dos presos, das organizações de direitos humanos. Pessoas que alegaram serem do grupo de risco tiveram seus pedidos negados em 90% das vezes -- apesar da recomendação do CNJ aconselhando que os juízes decidissem em favor da saúde das pessoas presas", completa.

Falta de jumbo e medo da fome

Sem a estrutura necessária e com presos em demasia, a pandemia escancarou problemas antigos, que impactam também a todos que têm uma ligação afetiva com algum detento. A pesquisa publicada pela FGV mostra que uma das principais preocupações dos familiares diz respeito a alimentação dos detentos.

Os relatos, obtidos de forma exclusiva pelo TAB, mostram que a preocupação dos familiares passa pela possibilidade de os detentos se alimentarem de forma precária. "Eles estão muitos fracos. A alimentação é muito ruim e precária, e as coisas que mandamos não dão conta, porque entra pouca coisa de comer. É muito ruim ver fartura na minha casa e meu marido passando fome enquanto tenho comida para mandar e não deixam entrar", diz a esposa de um dos detentos.

Outro parente também se demonstra preocupado com a qualidade da comida entregue pela administração carcerária. "A alimentação é uma vergonha. Alimento digno eles tinham quando nós, familiares, levávamos nas visitas. Agora, não podemos levar mais", afirma.

Os jumbos geralmente contêm alimentos e itens básicos de higiene -- como escova de dentes e absorventes, remédios e até mesmo bombas de asma --, que deveriam ser entregues pelo Estado, mas não são. Além disso, como na maioria das penitenciárias a última refeição é entregue ao final da tarde, os detentos utilizavam os produtos que vinham nos jumbos para não passarem fome. A pandemia e a proibição das visitas, contudo, dificultaram a estratégia de sobrevivência.

"Os detentos que não recebem os jumbos e estão em presídios nos quais a última refeição é bem cedo podem ficar sem comida até a primeira refeição do dia seguinte, ou seja, estamos falando de quase 12 horas sem comer", diz Scaff.

Saúde mental e medo da morte

Outro ponto levantado pelos familiares é a preocupação acerca da saúde mental dos detentos. Eles listaram apreensão em relação a doenças como depressão. Quando perguntados sobre os principais temores, respostas como "suicídio por falta de notícias" e "preocupação com a saúde mental sem notícias do filhos e familiares" também apareceram no questionário. Outra aflição recorrente é com a saúde física dos prisioneiros.

"O maior medo de todos é ele ser contaminado pela Covid-19 e não resistir, porque a imunidade deles lá dentro fica realmente muito baixa", disse uma parente. Além dos problemas de saúde, os advogados que representam os detentos perante a Justiça também tiveram acesso proibido aos presídios. "A pandemia impediu as famílias de levarem produtos básicos, mas também interditou a prática de representação legal dos presos. Há muitos relatos de advogados que não conseguiam falar com seus clientes", conta Pires. "A informação sobre o sistema prisional, vindo da administração pública, é muito ruim. Então, a única forma de saber o que está acontecendo de verdade ali é contar com vistoria da Defensoria Pública, do Ministério Público ou dos advogados", afirmou.

Visita online

Com a discreta melhora nos números da pandemia, alguns estados voltaram a permitir visitas nos presídios. Outros aguardam uma decisão da Justiça para reabrir. No Amazonas, por exemplo -- que possui mais de 200 detentos diagnosticados com Covid-19, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária --, as visitas passaram a ser quinzenais, sendo limitadas a uma visita por interno e a 100 pessoas por ala e por turno em cada local. As condições de comunicação, porém, não melhoraram segundo relatos ouvidos pelo TAB.

"Voltam, em média, 20 mulheres todos os dias. Nada mudou. Ainda ouvimos relatos de revista violenta, comida estragada, racionamento de água, corte de energia, doenças de pele e falta de medicamentos", diz uma parente de um detento, que preferiu não se identificar. "E ainda passamos 36 horas tentando agendar a visita pelo aplicativo, que sempre trava. A gente marca uma senha e, na hora, é outra; quem era primeiro da fila vira a vigésimo e vice e versa. Isso quando conseguimos agendar", completa.

Em agosto, o Depen autorizou o retorno das visitas virtuais aos presos do sistema penitenciário federal. Com a maior população carcerária do Brasil, São Paulo também optou pela visita de forma virtual, limitada a cinco minutos. "O cadastro sempre dá erro. Então, para saber do meu irmão, eu vou até o CDP e grito pelos muros", disse uma parente de um detento.

De acordo com Carolina Maracajá, diretora do Programa de Atenção a Egresso e Família da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, o Estado vem tomando medidas para facilitar o contato entre os familiares, com projetos como o de correspondência e o de visitas virtuais.

"Existem, sim, dificuldades, mas a Secretaria está dando todo o apoio aos familiares", diz. Segundo Maracajá, o estado já proporcionou mais de 127 mil visitas virtuais e cerca de 2 milhões de correspondência virtuais. Em relação aos jumbos, ela afirma que "estão sendo recebidos via Correios, mas não presencialmente, porque é necessário um processo de desinfecção dos materiais que entram nas prisões".

A Seap AM informou que foi a primeira no Brasil a disponibilizar a visita virtual e que, desde julho, há um retorno gradativo das visitas.

"Todos os internos tiveram a possibilidade de falar com seus familiares através de vídeo chamadas durante a vigência do decreto", disse, em nota. "A partir do mês de julho, houve o retorno gradativo das visitas presenciais, que continuam até hoje, respeitando todas as medidas de segurança estabelecidas pela OMS", concluiu.