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'Sou insuportável': como @jairmearrependi ajudou a modernizar a esquerda

Ilustração do artista Cris Vector de @jairmearrependi, um dos principais perfis no Twitter contra a rede bolsonarista - Reprodução
Ilustração do artista Cris Vector de @jairmearrependi, um dos principais perfis no Twitter contra a rede bolsonarista
Imagem: Reprodução

Do TAB, em São Paulo

23/11/2022 04h01

"O perfil só não tem meu rosto, mas eu sou 100% assim, uma pessoa insuportável", afirma o administrador da conta @jairmearrependi no Twitter, parte de um universo de perfis administrados por pessoas comuns, anônimas e fora da política partidária que ganharam destaque nas redes sociais. Criada para documentar eleitores de Bolsonaro "arrependidos", @jairmearrependi — Jairme, para os íntimos — conta com mais de trezentos mil seguidores e é uma das responsáveis por uma pequena renovação da comunicação da esquerda nas redes sociais.

Tirando a identidade verdadeira de Jairme, não há nenhum segredo na estratégia adotada pelo administrador para impactar milhares de seguidores. Ele utiliza do deboche e do humor como arma a seu favor para informar usuários, pautar o assunto político do dia e desmentir notícias falsas disseminadas pela rede bolsonarista compartilhando reportagens jornalísticas. Nesse balaio, não há escassez no estoque de memes do universo gay para tirar sarro de políticos e influenciadores bolsonaristas.

"Da mesma forma que não tenho filiação política e posso ficar falando de todo mundo, também não tenho filiação política para ter que ficar alisando", explicou Jairme, que respondeu às perguntas TAB em áudios no WhatsApp.

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Mensagem enviada por Jairme para a equipe de Lula
Imagem: Reprodução/Twitter

'Posta foto tremida'

"Lula, o povo no Kwai ia adorar ouvir o senhor falando desses papos aí, o senhor sabia?", sugeriu Jairme pelo Twitter, em agosto deste ano, no começo da campanha presidencial. A sugestão ganhou muitas curtidas e respostas encorajadoras de seguidores, mas não recebeu nenhuma resposta da equipe de Lula.

Acompanhando de perto as postagens da campanha de Lula nas redes sociais, Jairme ficou incomodado com a ausência do presidente eleito no Kwai e TikTok, duas plataformas onde Jair Bolsonaro tinha presença forte e os vídeos publicados podem ser facilmente baixados para serem compartilhar em outros lugares.

"Sugeri por mensagem direta que eles criassem um perfil nessas redes sociais, porque era muito ruim", conta sobre a consultoria gratuita que enviou à equipe de social media do presidente eleito — o TAB entrou em contato com a comunicação do presidente eleito, que confirmou a troca de mensagens mas disse que já estava nos planos da equipe abrir uma conta nas plataformas mencionadas.

Não só isso, como também sugeriu que Lula se aproximasse mais das pessoas nas redes sociais. "Falei também pro Lula postar foto tremida pra mostrar que existe, com câmera torta mesmo e dar uma folga pro Ricardo Stuckert", relembra, citando o onipresente fotógrafo oficial de Lula.

As sugestões de Jairme parecem simples, mas ainda encontram resistência entre alas da esquerda mais tradicionais nos bastidores da política partidária. Essa resistência a abraçar as redes sociais, ao contrário do que Jair Bolsonaro fez nos últimos anos para subir ao cargo de presidente, é alvo constante de críticas da militância mais jovem e mais ligada à internet.

"O núcleo duro da esquerda continua muito reticente, na verdade eu diria avesso a essa atualização e isso é muito preocupante. Pois estamos falando dos setores que poderiam (deveriam), eventualmente, apoiar, seja logisticamente, seja financeiramente, essa modernização", comenta Orlando Calheiros, antropólogo, produtor de conteúdo digital e podcaster conhecido como @AnarcoFino. "Pessoal ainda tá muito preso no paradigma dos blogs, que foi a última estratégia de sucesso das esquerdas em termos de comunicação de massa, mas que envelheceu igual aquele bom vinho aberto na geladeira", diz.

Jairme concorda que a esquerda mais "tradicional" está mais engessada na comunicação e acaba, acidentalmente, excluindo pessoas do diálogo político. Algo no qual a rede bolsonarista apostou.

"Ninguém gosta de acompanhar, mas as pautas que a galera da extrema direita montou durante os últimos dez anos até chegar na ascensão do Bolsonaro eram difusas. Era a criação de uma comunidade para as pessoas se conectarem", explica.

No curso da campanha, a campanha Lula aparentemente acatou as sugestões de Jairme. O então candidato trocou a foto de perfil nas redes sociais para uma versão mais "jovem", usando um óculos juliet, e passou a postar mais nas contas do Kwai e TikTok. Resultado: o perfil do Kwai do hoje presidente eleito conquistou 4,9 milhões de seguidores, ultrapassando os 4,5 milhões de Bolsonaro na plataforma.

"Bolsonaro pode ter todos os defeitos do mundo, mas as pessoas têm na cabeça que ele é uma pessoa acessível porque dizem que de vez em quando é ele mesmo quem responde os comentários no Facebook. Isso é acesso, as pessoas querem acesso", frisa Jairme.

Um surto do bem

A história de Jairme começa em 2018, quando decidiu criar um perfil inspirado na conta @Trump_Regrets, que fazia um apanhado de relatos de eleitores de Donald Trump arrependidos de terem votado nas eleições dos EUA em 2016. "Nesse período do fim do segundo turno, eu surtei. Surtei junto com todo mundo e senti que esse fenômeno ia se repetir no Brasil de uma forma muito mais bizarra", relembra.

Quase como uma profecia autorrealizável, na noite da vitória de Bolsonaro, Jairme estava acompanhando as redes sociais e viu um tuíte de um jovem negro relatando ter sido revistado pela polícia sem motivo aparente quando estava indo a uma comemoração da vitória do presidente.

"Foi um episódio triste. Ele comentou dizendo que bem que as pessoas avisaram que seria desse jeito. Esse foi o primeiro de todos e foi aí que o perfil viralizou. Ele comentou isso e eu postei embaixo, aí as verificadas saíram retuitando e foi indo", relembra.

CPI da Pandemia

Em abril de 2021, foi instalada uma das Comissões Parlamentares de Inquérito mais importantes dos últimos anos: a CPI da Pandemia, criada para apurar as ações e omissões do governo federal no combate à covid-19. Era um acontecimento grande, uma investigação em tempo real dos estragos da pandemia no Brasil. Todavia, Jairme sentiu que a CPI não parecia estar atraindo tanta atenção do público brasileiro quanto deveria.

Então, fez uma montagem listando a programação da CPI no mesmo formato em que o festival Lollapalooza anuncia os horários dos shows do festival. Viralizou instantaneamente.

"Foi o meu conteúdo que mais viralizou, a ponto de chegar em grupos que eu participava que não eram sobre política", relembra. "Eu recebi muito feedback de gente falando que só começou a se interessar quando comecei a fazer a divulgação da programação semanal. Eu entendo 100% a crítica feita sobre o fato de a gente brincar com coisa séria, mas a gente tem que incluir o máximo de pessoas possível na conversa."

Parte do interesse esmagador pela comissão se deveu justamente à atuação simultânea de perfis no Twitter e livestreams que transmitiram as sessões fazendo comentários, quase como a narração de um jogo de futebol. O interesse pela CPI aumentou substancialmente, a ponto de associarem a comissão parlamentar com uma edição extra do programa Big Brother.

A interação entre usuários nas redes sociais e os senadores que estavam liderando a CPI, como Renan Calheiros (MDB-AL) e Randolfe Rodrigues (Rede-AP), se deu praticamente ao vivo e não só na criação de memes, mas também na apuração de informações e sugestão de perguntas para os parlamentares.

Além de @jairmearrependi, estavam também perfis administrados por anônimos como @tesoureiros, @bolsoregrets e @camarotedacpi, que não só reuniram informações para os parlamentares, como também faziam uma divulgação massiva da comissão para milhares de seguidores. Junto com os perfis no Twitter, influenciadores digitais da esquerda como Luide e Orlando Calheiros fizeram transmissões ao vivo no Twitch comentando todas as sessões.

"Não fosse a estrutura que a gente montou ao redor da CPI da Covid, as transmissões, o contato com as assessorias, ela teria sido um fracasso. A prova disso é ver que até a Globo passou a investir nesse formato de cobertura/entretenimento/paródia", explica Calheiros. "A comunicação da esquerda é muito mais apegada à ideia de crítica, problematização, e esquece da potência do deboche."

Suposições e processos

Depois de quatro anos na atividade, Jairme manteve o anonimato e diz que o sucesso por trás do perfil é justamente esse mistério em torno da identidade. Não faltaram suposições da direita sobre a verdadeira identidade da pessoa por trás da conta. Publicamente, Jairme só revela que é do Nordeste.

Não faltam acusações e suspeitas. Uma delas, a mais divertida de todas, veio de perfis bolsonaristas que afirmaram que a identidade verdadeira de Jairme é Glória Groove, cantora, drag queen e dona do hit "Vermelho".

"Tinha uma galera que estava articulada em desmascarar minha identidade. (...) Eu resolvi aprontar uma e dar um surto no Twitter dizendo que descobriram minha identidade e desativei o perfil", conta. Só que os perfis bolsonaristas morderam a isca no mesmo dia e logo perceberam que caíram na armadilha de Jairme.

Outra tentativa de atingir Jairme, essa bem mais séria, foi por meio de um processo movido pela equipe de Ciro Gomes, acusando o perfil de roubar o logotipo da campanha do pedetista para um filtro de foto.

"Durante a campanha, uma turma do PDT começou a fazer insinuações falando que recebia dinheiro do PT. (...) Só de raiva, criei o filtro "Prefiro Lula" [uma brincadeira com o slogan "Prefiro Ciro"] só pra mim, mas as pessoas começaram a usar o filtro nos perfis delas. Nisso, o social media do Ciro fez uma postagem falando que estavam copiando o logo do Ciro. (...) Eu achava que tinha ficado por ali, mas dias depois recebi uma DM falando que o Ciro estava me processando".

Por decisão monocrática do TSE, foi determinado que o Twitter revelasse a identidade de Jairme e que a conta tirasse o filtro de sátira ao slogan de Gomes. A plataforma se negou a cumprir a decisão do TSE, alegando que poderia abrir um precedente perigoso contra a liberdade de expressão e direito à intimidade. O processo ainda corre no TSE.

Jairme recebeu um grande apoio nas redes sociais, inclusive de juristas renomados e organizações que defendem a liberdade de imprensa. Ela mesma, no entanto, não aparenta ter perdido uma noite de sono por conta disso. "Eu faço perfil de cachorrada, porque eu gosto. Na minha cabeça, pensei 'pode vir'. Pode quebrar sigilo, porque eles iam quebrar a cara quando descobrissem que não recebi dinheiro nenhum".