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O cabeleireiro do Rei: Didi cuidou do topete de Pelé por 60 anos em Santos

Didi conta que cortou o cabelo de Pelé mais de mil vezes: "Ele não queria mais o cabelo raspado, rente à cabeça. Queria algo que chamasse atenção. Foi aí que nasceu o famoso topete" - Maurício Businari/UOL
Didi conta que cortou o cabelo de Pelé mais de mil vezes: 'Ele não queria mais o cabelo raspado, rente à cabeça. Queria algo que chamasse atenção. Foi aí que nasceu o famoso topete'
Imagem: Maurício Businari/UOL

Maurício Businari

Colaboração para o TAB, de Santos (SP)

10/12/2022 04h01

Criador do famoso corte de cabelo de Pelé, um tipo de topete que se tornaria uma de suas marcas registradas, o cabeleireiro João Araujo, mais conhecido como Didi, guarda com carinho e orgulho lembranças dos mais de 60 anos em que atuou como cabeleireiro exclusivo do Rei do futebol. "Foram mais de 1.300 cortes", lembra o profissional, que aos 84 anos ainda trabalha todos os dias no pequeno salão em frente ao estádio do Santos.

Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, tinha cerca de 16 anos quando desembarcou na Vila Belmiro, famoso bairro de Santos, litoral de São Paulo. Mas o primeiro local que o Rei conheceu não foi o estádio. Na verdade, assim que desembarcou do ônibus, o primeiro lugar que ele visitou foi o salão do Didi.

"Ele veio aqui, se apresentou. Nós éramos garotos, eu me ofereci para cortar o cabelo dele, mas ele tinha que se apresentar no clube, então não deu tempo. Poucos dias depois, ele apareceu novamente e pediu para eu cortar. Ele disse que não queria mais o cabelo raspado, rente à cabeça, que deixava ele parecendo com 'qualquer um'. Queria algo que chamasse atenção. Foi aí que nasceu o famoso topete", conta.

Mineiro como o Rei, o cabeleireiro conta que aprendeu a fazer cortes sozinho, observando o trabalho dos profissionais em Flórida Paulista, onde passou a infância. Em pouco tempo, ele já fazia "experiências" nos cabelos dos garotos da vizinhança. Aos 15, passou a cortar cabelo de adultos e a cobrar pelo corte.

Em 1962, mudou-se com a família para Santos. "Sempre gostei bastante de futebol. Meu sonho era ser jogador, mas não conseguia passar nas seleções." Pensando em trabalhar como cabeleireiro, conversou com o "Espanhol", o dono do salão, que pouco tempo depois voltou para a Espanha. Didi, então, chutou a gol: decidiu comprar o ponto — "paguei em dez anos, mas consegui me tornar o dono", recorda.

"O Pelé cortava o cabelo comigo pelo menos duas vezes por mês. Toda vez que ele vinha era uma loucura, a rua ficava cheia de fãs, crianças e adultos, que queriam ver o Rei sendo atendido por mim."

Didi e Pelé - Maurício Businari/UOL - Maurício Businari/UOL
Didi e Pelé na juventude, no salão que até hoje está na Vila Belmiro
Imagem: Maurício Businari/UOL

'A tesoura do Rei'

As conversas entre eles, segundo Didi, eram focadas no futebol. Mas, com o passar do tempo, o cabeleireiro acabou se tornando um confidente de Pelé. "Ele foi confiando em mim e me falava sobre os problemas, pedia conselhos. Nos tornamos amigos de verdade, ele me chamava de irmão", afirma, com orgulho, apontando para uma foto com a dedicatória do jogador.

Com o tempo, Didi quis se aperfeiçoar e se tornou aluno do Ateliê Georges Hardy, o francês responsável pela transformação de barbeiros (como eram chamados os profissionais que cuidavam de cabelos masculinos) em cabeleireiros profissionais. A partir daí, fez um curso atrás do outro, o que lhe rendeu premiações na área.

"O Pelé valorizava o meu esforço, ele dizia que sentia orgulho de mim, e eu ficava até sem graça. Uma vez ele viajou para a Europa e trouxe uma tesoura especial, com um fio de corte diferenciado. Depois disso eu só usava essa tesoura para cortar o cabelo dele. Era a tesoura do Rei."

Antes de adoecer, sempre que estava em Santos, Pelé aparava os cabelos com Didi uma vez por semana, para manter o corte. Dia sim, dia não, aparecia para fazer a barba. "Além da manutenção do topete, ele gostava de receber a massagem que eu fazia no rosto antes de fazer a barba dele. E ele pedia que eu mantivesse em segredo o produto que eu usava usa no cabelo dele", lembra Didi. "Era quina de petróleo, um produto que hidratava e dava brilho."

O salão de Didi, que foi cabeleireiro exclusivo de Pelé, em Santos (SP) - Maurício Businari/UOL - Maurício Businari/UOL
Em frente ao estádio do Santos, o salão atraía famosos e personalidades locais
Imagem: Maurício Businari/UOL

Milésimo gol e milésimo corte

Pelé e Didi têm muitas coisas em comum, apesar das profissões diferentes: mineiros, mudaram-se muito jovens para Santos, apaixonados por futebol, eles chegaram à milésima conquista, cada um na sua área.

Em 1969, Pelé marcou o milésimo gol de sua carreira, na vitória do Santos por 2 a 1 contra o Vasco, no Maracanã. Em 2015, Didi chegou à marca do milésimo corte de cabelo feito no Rei. Mestre das tesouras, Didi também tem um quê de majestade: mantém uma espécie de trono em seu salão, uma poltrona imponente, de madeira pesada e acolchoada com almofadas macias, na cor azul royal, com acabamento em franjas douradas, onde ele se senta todos os dias, enquanto aguarda a chegada dos clientes.

A fama atraiu ao pequeno salão clientes famosos como Durval, Coutinho, Pepe, Mengalvo e Junito, todos ex-jogadores do Santos, técnicos, como Serginho Chulapa, atores conhecidos, como Ney Latorraca e Nuno Leal Maia, além de personalidades locais como prefeitos, vereadores e deputados da região.

O salão de Didi, que foi cabeleireiro exclusivo de Pelé, em Santos (SP) - Maurício Businari/UOL - Maurício Businari/UOL
'Ainda tenho muita lenha para queimar, pretendo trabalhar até o fim dos meus dias. Que nem o Pelé'
Imagem: Maurício Businari/UOL

Ficar famoso não o deixou rico, porém. Atualmente, ele luta para pagar o aluguel, bancado na maior parte com sua aposentadoria. "A pandemia quebrou a gente. Hoje se consigo atender seis clientes por semana é muito. Tem dias que não entra ninguém aqui."

Didi conta que conseguiu sustentar a esposa, Célia, e quatro filhos com o trabalho como barbeiro e cabeleireiro, do qual sempre sentiu muito orgulho, mas agora anda desanimado devido à falta de clientes. Avesso à tecnologia, o cabeleireiro não tem telefone no salão, nem perfis nas redes sociais.

"Gostaria de ter, mas nem sei por onde começar. Precisaria de alguém que entende disso para me ajudar", diz. "Ainda tenho muita lenha para queimar, pretendo trabalhar até o fim dos meus dias. Que nem o Pelé, que mesmo já doente mandava o motorista me buscar para eu ir lá cortar o cabelo dele. Não quero parar."

Didi diz que sente saudade do ex-jogador e que ora muito por sua recuperação. "Faço votos que ele melhore. E que um dia possa trazer de volta seu sorriso aqui, sentado nesta cadeira", acrescenta, apontando para uma cadeira do salão, coberta por um velho lençol.