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Taxidermista faz arte com insetos, cabeça de cachorro e esqueleto de leitão

Lucas Miguel, 26, taxidermista paranaense, com uma cabeça de búfalo prestes a ser empalhada - Theo Marques/UOL
Lucas Miguel, 26, taxidermista paranaense, com uma cabeça de búfalo prestes a ser empalhada
Imagem: Theo Marques/UOL

Flávia Schiochet

Colaboração para o TAB, de Curitiba

15/12/2022 04h00Atualizada em 15/12/2022 15h42

(imagens fortes)

Lucas Miguel, 26, é incapaz de matar uma mosca. O mais provável é que ele a encontre morta, com as asas levemente deformadas pela desidratação, e resolva colocar o cadáver insético sobre uma esponja úmida durante algumas horas. Após a reidratação do artrópode, borrifaria álcool para preservar sua pequena estrutura e o guardaria em seu ateliê.

Dar forma e conservar corpos de animais é o que Lucas faz há dois anos. A finalidade não é manter o animal com aspecto vívido. O taxidermista de 26 anos é formado em ciências biológicas e seu objeto de interesse são, principalmente, mamíferos e aves, transmutados em esculturas, quadros e objetos decorativos.

Das peças mais recentes exibidas em seu perfil no Instagram, sob o sugestivo nome de @empalhado, estão um incensário de cabeça de cachorro, no qual a fumaça sai pelas cavidades dos globos oculares; uma espécie de brinquedo em que um rato perde a cabeça em uma guilhotina; e um abajur com um esqueleto de leitão que jaz ao lado da lâmpada.

Lucas usa pele, ossos e órgãos de uma maneira pouco usual. Há taxidermistas artistas, com peças expostas em museus e em casa, trabalhando até com a confecção de objetos memoriais para tutores relembrarem seus animais de estimação. Mas poucos no Brasil intervêm artisticamente como Lucas, que borda pedrarias vermelhas saindo da barriga de um filhote de coelho. Que destaca asas, pernas e a cauda de um peru para reconfigurá-las em torno de uma moldura. Que fixa uma estrutura curva nos cascos de um cordeiro e transforma-o em um balanço infantil.

"A naturalidade para manipular um corpo morto é mal vista, como se fosse uma falta de respeito", diz. "Acho que isso tem a ver com o medo e o nojo que as pessoas têm. Estamos tão afastados da morte que quem está mais 'próximo' é tido como o louco que gosta de violência", analisa.

Entre as obras de arte criadas com restos mortais de animais, Lucas pendurou na sala este pé de galinha seco - Theo Marques/UOL - Theo Marques/UOL
Entre as obras de arte criadas com restos mortais de animais, Lucas pendurou na sala este pé de galinha seco
Imagem: Theo Marques/UOL
Vidro de formol com os olhos de inúmeros bichos misturados, na casa do taxidermista Lucas Miguel - Theo Marques/UOL - Theo Marques/UOL
Vidro de formol com os olhos de inúmeros bichos
Imagem: Theo Marques/UOL

Na ficção, taxidermia, dissecação e outros interesses relacionados à morte são um sinal de desequilíbrio do personagem. Em um dos curtas da série "O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro", da Netflix, a protagonista taxidermista assassina o marido. Em "Bates Motel", Norman Bates "empalha" a própria mãe. A vida real também colabora com o imaginário: todas as produções baseadas no assassino serial Jeffrey Dahmer destacam sua infância de taxidermista amador, junto do pai.

"A taxidermia é sempre retratada como um desejo pela morte. Mas mexer com algo morto e torturar algo vivo são coisas completamente diferentes", pontua Lucas Miguel.

Galinha-d'angola decora a sala da casa de Lucas Miguel - Theo Marques/UOL - Theo Marques/UOL
Galinha-d'angola decora a sala da casa de Lucas Miguel
Imagem: Theo Marques/UOL

'Osso não fede'

Apesar do estranhamento que seu trabalho causa, as peças autorais, feitas com animais doados ou comprados, têm alta procura. "As pessoas lidam melhor com ossos. É limpo, não fede, está mais distante da ideia de um bicho vivo", analisa. "Os órgãos são expostos quando há morte violenta. É um tapa na cara, um lembrete de que as coisas morrem, de que podem ser desmontadas", reflete.

Em meados de 2022, Lucas teve a oportunidade de estapear uma audiência fora das telas dos celulares. Ele fez sua primeira performance em um espaço artístico, que consistiu em trabalhar sentado à uma mesa, tirando a pele de um coelho. "Meu trabalho não é para eternizar a vida. É para eternizar a morte. É para você se acostumar [com o fato de] que as coisas morrem e que dá para separar as coisas: o corpo continua sendo algo bonito que pode ser preservado e apreciado."

Quem mais se interessa pelas peças são pessoas jovens, que trabalham nas áreas das artes e da comunicação. Algumas peças foram vendidas recentemente para um colecionador. As peças variam de R$ 30 a R$ 50 para brincos e colares com ossos e órgãos e podem chegar a R$ 700 para animais inteiros.

Natural de Cascavel (PR), passou infância e adolescência no sítio dos avós. Lucas sempre viu bichos morrerem, tanto de causas naturais quanto para virarem refeição. Sua primeira lembrança de interesse insólito foi por um crânio de cachorro encontrado no sítio, aos cinco anos. "Ninguém me repreendia, só pediam para eu lavar as mãos e não levar bicho morto para dentro de casa", ri.

Lucas leva "a morte estampada na cara", como gosta de dizer. Na tatuagem abaixo do olho direito, lê-se "ñemano", "morte" em guarani. Na parte de trás do crânio, o clássico em latim "memento mori" (lembre-se da morte). "É brega, mas não dava pra fugir", justifica, enquanto faz pequenas incisões com um bisturi na cabeça de uma cabra. Ela havia sido posta para descongelar naquela manhã dentro de uma vasilha com água." E já tem ovos de mosca dentro do nariz! Que ligeiras", riu.

Tatuagem de Lucas Miguel - Theo Marques/UOL - Theo Marques/UOL
Imagem: Theo Marques/UOL

Lucas fez um minicurso de taxidermia em 2013, no início da graduação, numa semana acadêmica da faculdade. À época, acreditava que trabalharia com comportamento animal - horas de observação de uma espécie ao ar livre, muitas anotações e pouca manipulação de animais. Em 2015, estagiou no Museu de História Natural Capão da Imbuia, na capital paranaense, onde aprendeu boa parte das técnicas que aplica e adapta no trabalho.

Após anotar as medidas de comprimento, circunferência e largura em um caderno surrado, Lucas começa a desferir golpes pequenos, delicados e constantes com a mão direita, puxando a pele do animal com a esquerda.

Ao terminar de escalpelar a extensão do pescoço, corta o couro do meio dos chifres até a base, contorna as protuberâncias com a lâmina e descola-o do topo da cabeça. Dali em diante, a pele sairá parcialmente, como uma luva: do avesso, um pouco embolada e ainda presa ao conteúdo que protegia.

Lucas Miguel trabalha na cabeça de cabra, em seu apartamento de Curitiba - Theo Marques/UOL - Theo Marques/UOL
Lucas Miguel trabalha na cabeça de cabra, em seu apartamento de Curitiba
Imagem: Theo Marques/UOL

O focinho e a boca requerem atenção extra para não romper a pele do queixo, mais fina, e para manter o máximo de gordura na região dos lábios. Diferente da técnica mais comum na taxidermia, em que os lábios são costurados para que a boca fique fechada, Lucas prefere fixá-los por dentro, junto da estrutura de isopor que esculpe para preencher a pele. "Fica mais natural. Se a pele ressecar, não vai esticar e aparecer os pontos", compara.

Periodicamente, ele vai à uma fazenda na região metropolitana de Curitiba para comprar partes de vacas, cabras e búfalos ou galinhas, coelhos, porquinhos-da-índia, gansos, patos e pavões inteiros, que morreram naturalmente. Os bichos são congelados para que não se decomponham até Lucas buscá-los.

Cada animal rende pelo menos dois trabalhos, um com a pele e outro com os ossos. Órgãos como olhos e corações são mantidos em formol, um armazenamento ainda sem destino. "Gosto de tratar a pele e limpar a carne do esqueleto para no futuro decidir o que fazer com cada coisa. Tenho ideias para fazer autômatos e algumas quimeras articuladas", revela.

Lucas trabalha em casa, um apartamento antigo com terraço na região central de Curitiba. A área externa é onde mantém um freezer horizontal lotado de animais embalados e congelados, além de caixas plásticas e panelas gigantes com água, onde repousam crânios de búfalo e vaca submersos. "As bactérias consomem a gordura e o resto de músculo, e aí o osso sai limpinho", ensina.

As peles são salgadas e deixadas no sol para secarem e impedir que sejam decompostas por microrganismos. Os ossos menores, como costelas de ratos, vértebras de pombo e pequenos esqueletos são postos em uma lata para que os ajudantes de Lucas — besouros dermestídeos (que fazem a limpeza dos ossos) e suas larvas, capturados por carcaças na varanda — removam a carne remanescente.

Alheia aos nacos de gordura, músculo, ossos e peles abundantes no apartamento, a gata Penélope, adotada por Lucas há cinco anos, observa os pombos no telhado vizinho. Não é por falta de oportunidade que a felina passa sem carne. Suas preferências é que são mais simples: entre o reino vegetal e o animal, ela escolhe mastigar as plantas da sala.

Lucas Miguel com a gata Penélope no colo - Theo Marques/UOL - Theo Marques/UOL
Imagem: Theo Marques/UOL

Errata: este conteúdo foi atualizado
A legenda da foto de abertura informava que Lucas Miguel tinha nas mãos um crânio de cabra. Na realidade, trata-se de uma cabeça de búfalo. A informação foi corrigida.