'Nota 10!': voz do Carnaval faz 30 anos na apuração e critica desfile atual
"Eu não faço suspense nenhum. Não precisa. Os sambistas já ficam na maior ansiedade. Imagina as escolas que desfilam na sexta e têm que esperar até terça para saber o resultado. É uma agonia." Há exatos 30 anos uma mesma voz dá as notas do Carnaval paulistano.
Antonio Pereira da Silva, mais conhecido como Zulu, tem 74 anos e desde os 12 está no meio do samba. Por onde anda, as pessoas que o reconhecem brincam imitando sua locução. "Se passa uma mulher avantajada perto de mim, tem sempre alguém que grita 'comissão de frente: nota dez'. É de lei", conta.
Dos números cantados por Zulu ao microfone surgem explosões de euforia, tristeza ou revolta. A apuração transmitida pela TV virou uma atração à parte: muita gente que nem assiste aos desfiles só quer ver as reações e confusões entre os dirigentes. "Já me confundi com o nome do jurado, mas nunca errei uma nota. Quando acontecer isso, é hora de parar", ensina.
Quando as cadeiras voam
No início de 1993, teve de assumir a apuração. "Eu estava ajudando a escolher os jurados, aí me falaram que o locutor estava doente. Caiu no meu colo. Parece que fui bem porque não me tiraram até agora." E olha que empurrão e pancadaria não faltaram nessas três décadas como arauto dos destinos carnavalescos.
"Foi uma tragédia anunciada." Zulu relata assim a apuração mais conturbada de que participou: a da 2012. "Avisei aos organizadores e à polícia, mas disseram que não podiam fazer mais nada. Deu no que deu. Na hora só tentei me proteger, porque tinha muita gente armada na área." O ápice foi quando um integrante da Império da Casa Verde invadiu o palco e rasgou as papeletas com as notas.
Tudo começou com a troca de jurados. E terminou com alambrados derrubados, cadeiras arremessadas, carros alegóricos incendiados e muitos safanões. Cenas semelhantes aconteceram em 1994, 1997, 2001, 2005, 2006, 2010 e 2016. Em 1993, as notas ficaram sumidas por um dia, o que levantou suspeitas e se determinou, a partir daí, deixá-las com a Polícia Militar no batalhão da Rota, no centro de São Paulo.
"Tem muito ego no Carnaval, dos presidentes às passistas. E todo mundo quer ganhar. O problema é que um detalhezinho tira um décimo e um campeonato da escola", sintetiza o locutor.
Em 2022, ele entrou em outra polêmica: foi contra a realização do desfile fora de época (aconteceu em abril), em um período de plena pandemia e baixa cobertura vacinal. "Infelizmente venceu o dinheiro, não venceu a ciência", criticou, falando com a autoridade de quem dedicou a vida também à área da saúde.
Corintiano verde e branco
Entre escolas, quesitos e jurados, são 1.620 papéis que Zulu tem que ler na próxima terça. Para não errar, cada nota é escrita com algarismos e, logo ao lado, com letras. Assim ele checa e não erra o valor. E olha que Zulu é especialista em rabisco — afinal, trabalhou com muitos médicos.
Zulu estudou, fez carreira e se aposentou como técnico em radiologia. Trabalhou em hospitais e no São Paulo Futebol Clube. "Sou corintiano e todo mundo lá sabia, inclusive o Gino Orlando [ídolo são-paulino e administrador do Morumbi por décadas]. Eles sabiam do meu profissionalismo e nunca fiz uma brincadeira. Podia perder a piada, mas não perder aquela boquinha", lembra.
A medicina entrou na família de tal forma que uma filha é enfermeira e uma neta é médica. Os pais de Zulu queriam que ele estudasse e não entrasse no samba. Mas ele levou uma vida dupla, virando integrante da Camisa Verde e Branco, que hoje está no grupo de Acesso 1, a segunda divisão da folia paulistana.
"Naquela época, quem gostava de samba não era bem-visto. A polícia arrepiava quem estava na rua batucando. Lutamos e nos organizamos para ganhar respeito", orgulha-se.
Ele define o samba como "um desafogo da vida". "No trabalho, via como as pessoas chegavam cheias de pose, cheias de si, mas estavam podres por dentro. O raio-x revelava isso. Na avenida, todas as tristezas ficam para trás."
Carnaval na várzea
Zulu anda pelo sambódromo paulistano e é parado principalmente pela velha-guarda do samba. "Joguei muito futebol aqui. Era tudo campo de várzea." Ele morava na vizinha Barra Funda, e atravessava a ponte sobre o rio Tietê para jogar lá pelos lados da Casa Verde.
Seu primeiro emprego foi como "office boy" do extinto Banco Nacional. "Cruzava a cidade com dinheiro embrulhado no jornal, e ninguém desconfiava." Depois trabalhou no setor de brinquedos da finada loja de departamentos Mappin e em uma fábrica de plásticos.
Aos 20 anos, caiu de vez no samba e entrou na escola do seu bairro, a Camisa Verde e Branco. E foi assumindo cada vez mais responsabilidades dentro dela. "Só não consegui ser presidente. Perdi na eleição de 2010. Mas vai ser minha escola até a morte."
A Barra Funda é considerada o berço do samba na cidade por ter concentrado a população negra que chegava de trem do interior após a abolição da escravatura (1888). O Largo da Banana, perto das estações ferroviárias do bairro, foi cenário de manifestações da cultura negra, como a batucada e a tiririca (estilo de capoeira paulista). Até hoje, há uma rivalidade da região com o Bixiga, que foi local de quilombo urbano, pela primazia do samba.
Monumento linguístico
Zulu fez de tudo, só não compôs samba. Trabalhou na produção dos discos dos sambas-enredo, escolhendo músicos e estúdios. Já teve programa de rádio. Foi coordenador geral do Carnaval de 1999 e de 2005, cuidando de toda a verba do evento. Atuou até como comentarista de desfile, mas se arrependeu. "Sou muito crítico. Eu me segurei muito para não falar o que estava pensando."
Insistindo um pouco, o locutor solta o verbo. "Podem me chamar de saudosista, mas acabou a leveza, acabou a destreza. Essa história de desfile técnico transformou o Carnaval em uma parada militar. É um absurdo", dispara.
Para ele, a transmissão pela TV e os novos critérios de julgamento acabaram por uniformizar as escolas. "Antes, cada bateria soava diferente. Hoje, por exemplo, nenhuma toca em contratempo. Todos têm medo de atravessar. Quando um copia do outro, tudo fica igual", aponta.
É nessas horas que Zulu agradece por ser o porta-voz das avaliações ou, como ele define, "só um papagaio". Ele lembra do tempo em que não existia Excel, programa de planilhas para computadores, e todas as notas tinham que ser escritas em uma lousa quadriculada.
Zulu confessa que se inspirou em Carlos Imperial, célebre produtor artístico que foi locutor da apuração do Rio nos anos 1980, pela "simplicidade na dicção". Imperial (1935-1992) foi o criador do bordão "Dez, Nota Dez!", expressão que ganhou status de "patrimônio cultural imaterial do Rio" no ano de 2015 por decreto do então (e atual também) prefeito, Eduardo Paes.
Duas semanas antes da apuração, Zulu evita as bebidas geladas e passa a mascar muito gengibre para preservar sua garganta. "É um sacrifício ficar sem uma cervejinha nesse calorão, mas o que vou fazer?"
Enquanto a voz não falhar, ele continua anunciando as campeãs e as rebaixadas das três divisões da Liga Independente das Escolas de Samba de São Paulo. Mas Zulu não parece preocupado com isso e tem até um lema para encarar a transitoriedade da vida: "Deus é tão inteligente que fez o mundo e não vendeu cadeira cativa."
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