Paixão por Carnaval: a história da escola de samba mais antiga de Portugal
O início da tarde ainda é frio e de pouco movimento na sede do Grêmio Recreativo Escola de Samba Bota, construída no terreno que abrigava a escola primária de Sesimbra, na região metropolitana de Lisboa. A única agitação no recinto é a de João Isaac, 52, que vende cerveja no bar, cozinha bifanas de porco na cozinha, e responde com presteza a cada chamado pelo seu nome. Tudo ao mesmo tempo. E nesse domingo de fevereiro o nome João soa mais que ronco de cuíca. Ele é o faz-tudo aqui.
O clima e a temperatura no ambiente mudam na marcação do surdo. É gente chegando para o ensaio geral da agremiação, às 15h, que volta às ruas depois de dois anos sem desfiles — foram os carnavais das restrições da pandemia de covid-19.
Não é difícil imaginar o quanto essa gente está sedenta por cair na folia. À portuguesa, disciplinada até no traje: camisa, agasalho, chapéu, cachecol, calça, saia. Tudo azul e branco, as cores da escola e de sua madrinha, a Beija-Flor de Nilópolis.
Verdes são os olhos de Carla Isaac, 48, atentos a quem adentra o ambiente. Não há título oficial, mas ela é de fato a primeira-dama da escola desde o ano passado, quando João, com quem está casada há 29 anos, assumiu a presidência. Carla é da equipe de apoio e desfila na ala das baianas. Nessa tarde de ensaio, ela também é a relações públicas que recebe o TAB.
Berço do Bota
Os múltiplos papéis de Carla só se encerram durante os desfiles de Carnaval, no domingo (19) e na terça-feira (21). É quando ela cai no samba como se não houvesse amanhã. A baiana de Portugal roda, brilha e sonha que está na Marquês de Sapucaí. Um sonho contido pelo frio — 25ºC a menos que no verão carioca — e pelos limites da via à beira-mar por onde passam as agremiações carnavalescas de Sesimbra, berço do Bota.
Escola de samba mais antiga de Portugal, o Bota foi fundado em 1976 por quatro amigos portugueses que saiam à noite na cidade. O então bloco atraiu foliões e também a rivalidade de um grupo (o Cheirinhos da Fossa) que tinha no nome a referência ao córrego onde era despejado o esgoto da cidade. O primeiro nome da agremiação era, portanto, uma provocação ao adversário.
"Era Caga no Rego", revela Maria de Jesus Aldeia, 67, há 47 anos na escola. "Depois, virou Bota no Rego, mas algumas pessoas ainda achavam agressivo." A saída foi transformar o verbo em substantivo e fazer da bota o símbolo do bloco. "Foi mesmo uma decisão de marketing, por assim dizer", explica o presidente João Isaac.
O Carnaval de Sesimbra tem apenas três metros de largura para evolução de comissão de frente, mestre-sala e porta-bandeira e volumosas baianas, que desfilam praticamente em fila indiana. "Não podemos ficar lado a lado porque as saias, com armação, já têm quase dois metros de diâmetro e assim vamos uma atrás da outra", conta Carla Isaac.
A rua também tem pavimento de pedra. Não raro, os carros alegóricos (dois apenas) enguiçam em pleno desfile. Já as passistas quebram o salto do sapato e há ainda quem torça o pé. Logo o pé, o órgão mais nobre de um sambista.
Carnaval a 16ºC
Às 15h, faz 16ºC em Sesimbra. O carro de som desce a colina que separa a sede da escola do local de ensaio. Serão duas voltas em torno do mesmo quarteirão. As ruas asfaltadas trazem alívio para quem tem os pés como instrumento. Reco-reco, pandeiro, tamborim, surdo, cuíca e cavaquinho entram no aquecimento e animam as passistas que, de salto alto e saia curta, resistem ao frio e ao cansaço da espera, sempre em pé.
A comissão de frente repassa a coreografia. As baianas brincam entre si. Os passistas mirins tentam se mexer na cadência da bateria. A ginga chegou cedo para uns, mas não para todos. Mas eles não param, pois na idade em que estão bateria carregada é o que não lhes falta.
Tiago Isaac, 28, filho mais velho de João e Carla, organiza a posição dos integrantes em cada ala. É uma das tantas tarefas desse mestre-sala, que também é uma espécie de diretor artístico, que desenha adereços, pensa alegorias e ainda costura fantasias, todas mantidas em absoluto segredo.
Ele agora confecciona o próprio traje, com peças de brechó, aplicação de penas e meias de balé, compradas na seção infantil de uma loja especializada. "Os sapatos vieram da Itália", diz ao mostrar o par já usado. "São vintage", completa a mãe.
Tiago coordena as alas ao mesmo tempo em que faz mesuras, giros, torneados, meias-voltas e maneios. Aprendeu com craques do Carnaval carioca, como Claudinho, da Beija-Flor, Matheus Oliveira, da Mangueira, Julinho Nascimento, da Viradouro, e Diogo Jesus, da Mocidade, que costumam dar oficinas em Portugal.
No restante do tempo Tiago estuda, ensaia e observa. "Passo os vídeos bem devagar para ver como eles fazem aquilo tudo", diz, admirado.
A desenvoltura do mestre-sala e da escola chama a atenção dos moradores do bairro da Maçã, em Sesimbra, que aos poucos chegam à calçada.
No início do desfile, Tiago está sozinho. O domingo é dia de trabalho para a porta-bandeira, supervisora de qualidade numa montadora de automóveis. O jeito é contar com a parceria de Isabel Andrade, 72, que improvisa a bandeira com um ramo de planta para o ensaio.
Um gaúcho entre nós
A paixão pela dança foi o que levou a família Isaac ao Bota. Na adolescência, Tiago fazia apresentações de lambada em festas da região. A irmã, Diana, 24, já fazia danças orientais na infância. Passou também pelo axé, e daí para o samba foi um passo, seguido pelos irmãos e pelos pais
O Carnaval de 2023 é especial para ela, que era passista e vai desfilar pela primeira vez à frente da bateria.
O ensaio é também um teste. A nova rainha se joga e se esforça, em graça e movimento. Ao final, está quase desfeita em suor e lágrimas. Mas passa, com louvor.
Carla se emociona com a performance da filha. E também com a do caçula, Samuel, 13, para quem se dirige com olhos rasos d'água e de orgulho. Fantasiado de malandro, o passista mirim segue o caminho dos irmãos e prova que o amor pelo samba é mesmo a principal liga dessa família.
Depois do ensaio, a caminho da sede do Bota, ouve-se o samba enredo cantado com sotaque brasileiro. São dois rapazes, portugueses, que imitam a pronúncia do terceiro, o músico gaúcho Leandro Figueiredo, 39. Ele é um dos únicos estrangeiros na agremiação, onde toca cavaquinho.
A tarde cai e a temperatura vai para menos de 10ºC. Um integrante do Bota é flagrado carregando um barril de chope. A animação está garantida e a noite que se aproxima tem tudo para ser longa.
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