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'Oxe, mainha': a Cinderela que virou ícone do Carnaval de Pernambuco

Há 30 anos, o ator Jeison Wallace interpreta Cinderela, personagem famosa no Carnaval do Recife - Ricardo Labastier/UOL
Há 30 anos, o ator Jeison Wallace interpreta Cinderela, personagem famosa no Carnaval do Recife
Imagem: Ricardo Labastier/UOL

Do TAB, no Recife

24/02/2023 04h01

Daqui a uns meses, quando os brasileiros começarem novamente a contar os dias para o Carnaval, é bem provável que se veja circular pela internet um vídeo de Engraçadinha Araújo.

As cenas têm, pelo menos, uma década, mas cativam qualquer folião ansioso pela festa: uma apresentadora de telejornal, ao finalizar o noticiário, se despede do público dançando frevo. Ela mostra, didaticamente, os passos do ritmo mais famoso de Pernambuco, que aumenta de cadência e muda de gestos de acordo com os tipos de agremiações e onde elas desfilam: os de bloco são mais lentos; os de rua, mais acelerados.

O "show" de Engraçadinha é uma esquete. E ela é, na verdade, uma personagem humorística famosa entre os pernambucanos por parodiar a jornalista e apresentadora local Graça Araújo, morta em 2018 em decorrência de um acidente vascular cerebral.

Por trás da interpretação, entretanto, está um dos mais conhecidos atores recifenses, que há três décadas se transformou em um símbolo do Carnaval (bem antes de Engraçadinha viralizar): o ator e humorista Jeison Wallace, 60, é mesmo conhecido na sua terra natal como Cinderela, a empregada doméstica que saiu do teatro para virar estrela na televisão, ganhou seu próprio programa, "O Papeiro da Cinderela", mantendo-se vice-líder de audiência desde então.

Do palco para a TV

Cinderela deu fama e carreira a Jeison nos anos 1990. A personagem, que vive na periferia, sabe de todos os bordões das favelas, das músicas e das dificuldades que os moradores dali conhecem bem. Faz piada da própria vida e da dos outros. Transformou-se, ao longo dos anos, numa figura reconhecida e carismática dos recifenses — sobretudo da população de classe B e C, seu público fiel nas tardes de segunda a sexta-feira.

Recifense, criado no bairro de Afogados, Jeison é um dos dez filhos de uma família pobre da periferia da cidade. Sua paixão pelo teatro começou cedo, quando, ainda criança, sonhava em cantar e atuar. Aos 16 anos, trabalhando como office boy de uma corretora, viu no jornal o anúncio de um curso para iniciação teatral. "Fui lá e me inscrevi. Você não aprendia nada, só o básico. Mas dali fui chamado pra fazer peças, conhecer gente, e assim comecei."

Das aulas de teatro, Jeison passou a integrar elencos de espetáculos infantis, e, à noite, se apresentava em boates gays, palco garantido para as transformistas da cidade, uma característica da noite LGBTQIA+ cujo auge foi no período entre o fim da ditadura militar e a reabertura política do país. "Muita gente dublava. Tinha quem imitasse Maria Bethânia, quem imitasse Gal Costa. Eu preferia fazer número com texto." Em 1990, ele estreou "A Bicha Borralheira", esquete escrita pelo também ator Henrique Celibi, que fazia paródia com a trama de Cinderela.

"Aquilo começou a fazer muito sucesso. As pessoas iam para beber e usar outras coisas, mas paravam para assistir à apresentação", brinca o ator. "Dali decidimos montar a peça em um teatro, e fomos procurar o Valdemar de Oliveira, no centro. Disseram que o teatro só estava disponível à meia-noite das sextas-feiras. Achamos a proposta interessante e começamos a temporada."

"Cinderela - A História que sua Mãe não Contou", como foi batizada a montagem, caiu no gosto popular. Nela, o clássico conto de fadas passou a ser ambientado na favela recifense, com personagens gays e travestis. O humor escrachado e o vocabulário popular chamaram a atenção do público.

O ator Jeison Wallace, 60 - Ricardo Labastier/UOL - Ricardo Labastier/UOL
O ator Jeison Wallace, 60
Imagem: Ricardo Labastier/UOL

"Em vez do sapatinho de Cristal, essa nova Cinderela (negra) perdia sua peruca loira; o belo e viril príncipe encantado dava lugar a um monarca covarde e totalmente desprovido de masculinidade; trocava-se a luxuosa carruagem por um passe de metrô e o glamouroso baile no palácio real era substituído por um concurso de dublagem para travestis", resume Luis Reis, pesquisador do teatro pernambucano e professor do Centro de Artes e Comunicação da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), no livro em que reconta a trajetória de sucesso do espetáculo.

Cinderela ficou em cartaz por mais de uma década, à meia-noite das sextas-feiras, lotando o Teatro Valdemar de Oliveira, no centro da cidade. "Tinha gente que dizia: 'Eu nunca imaginei que o teatro pudesse ser tão divertido'. Nós formamos plateias", conta Jeison.

A repercussão da peça foi estopim para Cinderela se transformar num símbolo do Carnaval pernambucano, desde 1992. "Eu estava em cartaz e nos convidaram para fazer parte da transmissão de um bloco em Olinda, as Virgens de Bairro Novo, pela TV Jornal", diz o ator, referindo-se à afiliada do SBT no estado.

Na agremiação, que completou 70 anos em 2023, homens desfilam vestidos de mulher. "Como também éramos um elenco de homens que estavam fazendo sucesso no teatro interpretando mulheres, acharam que daria certo", lembra Jeison. Durante a transmissão, o grupo simulou uma pequena história, na qual o príncipe buscava uma noiva entre os foliões.

Aquela brincadeira, que quebrou o formato jornalístico até então padrão nas coberturas, "foi o maior sucesso", lembra ele. "Desde então começou a minha carreira na TV."

Jeison Wallace se preparando para interpretar Cinderela - Ricardo Labastier/UOL - Ricardo Labastier/UOL
Jeison Wallace se preparando para interpretar Cinderela
Imagem: Ricardo Labastier/UOL

'Oxe, mainha'

Cindy, como também é chamada a personagem, lançou o bordão "Oxe, Mainha" — uma reclamação, chateada. Jeison também já gravou CDs de frevo (com letras autorais, cheias de trocadilhos) e participou de filmes como "Amarelo Manga", de Cláudio Assis", e "Lucicreide vai à Marte", de Fabiana Karla. No início do ano, gravou a segunda temporada da série "Lama dos Dias", de Hilton Lacerda, sobre a época do movimento manguebeat. "Eu interpreto o dono de uma boate gay que fazia apresentações de transformista", diz.

A fama deixou a agenda de Jeison lotada. "De manhã tem gravação, à tarde tem ao vivo. Hoje estou só com o café da manhã", contava ele, às 17h de uma quinta-feira antes do Carnaval. Por onde passa, a personagem é interrompida por fãs, que querem fazer alguma gracinha — e quase sempre uma resposta "afiada", com duplo sentido.

Naqueles dias, Jeison se preparava para mais uma maratona de cobertura: no Galo da Madrugada e nas ladeiras de Olinda, ele circulava fazendo brincadeiras e piadas, ao vivo, na TV Jornal. Uma festa especial, frisava, que comemorou a volta da folia às ruas do Brasil e uma homenagem que ele recebeu como tema da transmissão oficial do canal onde trabalha. "Isso me emociona muito", dizia o ator, antes de retomar para mais uma dia de gravação.