'Pelo Recife eu leio o mundo', diz diretor Hilton Lacerda
Casarão antigo, no Recife, se bobear, vira farmácia, prédio ou salão de festa de condomínio. Essa é uma frase bem comum de se ouvir na cidade, mas se justifica: a especulação imobiliária deixa símbolos gritantes na capital pernambucana, demolindo construções centenárias ou ocupando espaços históricos.
As chamadas torres gêmeas, por exemplo, não só empatam a vista do bairro de São José e afetam a arquitetura do vizinho histórico Bairro do Recife, como também convergem casos públicos de polícia. De um dos dois prédios de 41 andares caiu e morreu o menino Miguel Otávio Santana, 5, quando estava sob os cuidados de Sarí Corte Real, patroa da mãe e da avó dele, em 2020. Cinco anos antes, durante uma operação da Polícia Federal para investigar desvio de dinheiro na Hemobrás, um morador do condomínio jogou maços de dinheiro pela janela do apartamento.
A poucos metros dessas torres, os galpões do Cais José Estelita já foram abaixo. No lugar deles, atualmente sobem edifícios de um projeto imobiliário contra o qual foram mobilizadas diversas manifestações e um acampamento, em 2013. Durante anos, o movimento Ocupe Estelita denunciou ilegalidades do leilão de venda do terreno e tentou, sem sucesso, impedir a construção.
"Essa especulação imobiliária mexe em questões afetivas? Mexe. Mas é como [o arquiteto] Paulo Mendes da Rocha me disse, durante entrevista para um documentário: a afetividade é subjetiva. O que interessa é que as cidades e a geografia delas têm histórias. E, no caso do Recife, muito plana, essas construções vão apagando a cidade, os horizontes vão sumindo", critica o cineasta recifense Hilton Lacerda, 56.
"Me preocupa muito a relação da pessoa com a cidade — não apenas a relação afetiva, mas a prática. Não acho que intervenção é desnecessária, mas precisa do Estado em torno dela. E isso é antigo. Os poemas de Manuel Bandeira me servem de farol aos tempos que mudam, desde ali eram críticas à expansão do Recife."
"Rua da União? Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância. Rua do Sol (Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)", escreveu Bandeira, em 1925, no poema "Evocação do Recife", sobre sua cidade que mudava de cara tão rapidamente.
A cidade como personagem
Como roteirista, Lacerda criou um estilo próprio de narrativa que costura contextos marginais da cidade em crônicas sobre memória, sexualidade e comportamento. Como diretor, estreou seu primeiro longa de ficção, "Tatuagem", em 2013. No ano passado, lançou o segundo, "Fim de Festa".
Agora o cineasta se prepara para mais um lançamento: em 10 de setembro, vai ao ar a série "Chão de Estrelas", no Canal Brasil. Novamente, com a cidade entre os personagens.
Na história de sete episódios, ele resgata o nome da companhia e o clima dionisíaco de "Tatuagem" para um contexto contemporâneo. Um grupo de teatro vai ser expulso do casarão onde funciona sua sede, e os atores e as atrizes, pegos de surpresa, tentarão de tudo para reverter a situação — incluindo apresentações teatrais que incorporam discussões sobre pertencimento, passado e finitude.
"Chão de Estrelas" se passa no centro do Recife, mas remete também ao imbróglio das construções em torno do Teatro Oficina, em São Paulo. Há 40 anos, a companhia de José Celso Martinez Corrêa recorre à justiça e ao poder público para impedir a construção de prédios no terreno em torno da sede do grupo, o Uzyna Uzona, no Bexiga.
"Sou próximo de pessoas do Oficina, e essa é uma briga muito presente no meu cotidiano. Aqueles prédios afetarão uma intervenção que é muito importante para o Bixiga, que é o teatro, e esse bairro vai sendo tomado pela especulação", conta Lacerda. "Com a série, minha ideia era entender dois processos ligados a isso: como os artistas reagem a esse apagamento, como se comportam em relação a ele, e qual a sensibilidade que está por trás dessa coisa tão agressiva que são as construtoras."
Um lugar para olhar o Brasil
Faz cinco anos que Lacerda voltou para o Recife, depois de duas décadas morando na capital paulista. "Minha relação com São Paulo, na verdade, começou em 1975, quando me mudei com minha família para Bauru. Mas eu voltava constantemente para o Recife, nas férias. Em 1980, voltamos para Pernambuco, e, em 1998, fui de novo morar em São Paulo. Fiquei até 2017", conta o diretor. "E espero migrar bastante ainda."
O retorno à cidade natal foi para estar mais perto do pai e por questões profissionais, mas, principalmente, impulsionado por uma constatação desconfortável. "Comecei a ficar muito perturbado com o que acontecia com São Paulo, uma cidade a se transformar em um centro muito conservador", diz Lacerda, se referindo ao clima político e social que se estabeleceu a partir das manifestações de 2013 e, em seguida, com o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016. "Era acachapante ouvir as panelas e os discursos, um neonazismo sendo normalizado, a campanha em defesa da ditadura. É angustiante."
Lacerda está, agora, no lugar de onde sempre olha o Brasil. "Na verdade, mesmo morando fora daqui, sempre foi pelo Recife que eu li as coisas, sempre foi daqui que partiu meu olhar para ler o mundo", conta. A mudança de volta também lhe permitiu novos convívios com a cidade, como o Elã, cafeteria que o companheiro dele, Leo Lincoln, abriu em uma casa centenária na zona norte. "Passo um bom tempo aqui", explica.
É no Elã que Lacerda posa para as fotos desta reportagem. A construção de 1921 fica numa rua arborizada, cheia de prédios, em um bairro de classe média recifense. A fachada pintada de cinza, com detalhes em branco, azul e marrom, com luminárias presas à parede, relembra um estilo colonial que marcou a arquitetura da região.
"Essa casa é da família de uma amiga nossa. Já foi um salão de cabeleireiro, mas estava fechado. Quando decidimos abrir o café, foi feita uma reforma. E é curioso, que foram aparecendo as coisas da casa", explica. "Antes, tinha um forro de gesso, e, quando tiraram, descobrimos o teto original. Optamos também por deixar as paredes com o tijolo aparentes. São coisas que resistiram ao tempo porque ficaram camufladas." Por dentro, a casa é decorada com painéis e objetos da cenografia de "Tatuagem" e de "Chão de Estrelas".
Resistência
"O mundo artístico e cultural sofreu muito com a pandemia", reclama o cineasta. Em março do ano passado, quando o Brasil iniciou a quarentena, seu longa-metragem "Fim de Festa" entrava na segunda semana em cartaz no cinema. "Ele tinha uma carreira muito boa, estava começando a repercutir. Foi ruim do ponto de vista de ver um trabalho parar no meio, ele teria um resultado melhor se tivesse no cinema, mas obviamente que as plataformas de streaming ajudaram", conta.
O filme, com Irandhir Santos e Hermila Guedes no elenco, recebeu os troféus de melhor ficção e melhor roteiro no Festival do Rio, em dezembro de 2019. A trama se passa em torno de uma morte na Quarta-Feira de Cinzas, também no Recife (melancólico e ressacado no pós-Carnaval).
"Chão de Estrelas", ao contrário, foi finalizado durante o isolamento social. As gravações se encerraram em novembro de 2019, e a pós-produção foi feita de forma remota. "Natara Ney, a montadora, veio passar seis meses no Recife para editarmos, e ficou 1 ano e pouco. O tempo terminou sendo espichado." Embora cansativo, o processo mais trabalhoso teve suas vantagens: ocupou-lhe o tempo e deu-lhe concentração.
Para quem se acostumou a crônicas mais festivas no cinema de Lacerda, essas obras atuais trazem outro tom, acumulam mais densidade. Tristeza e banzo que têm a ver com as crises do Brasil, como explica o cineasta, se referindo ao governo e a um desmonte das políticas públicas do setor cultural. "A cultura já vinha sofrendo", pondera, "apesar de que algumas pessoas vejam na pandemia uma tábua de salvação para dizer que tudo que aconteceu foi por causa da pandemia".
"No cinema, o golpe já tinha sido dado, o desmantelamento de um bem artístico como esse, que demorou tanto tempo para ser construído, foi por causa de políticas claramente feitas para isso. A gente sabe quem está nas secretarias, qual o papel da Ancine", lamenta o diretor. "A pandemia foi uma pá de cal. No nosso mundo, o distanciamento colocado foi muito trágico."
Mas há de se resistir. Hoje Hilton Lacerda desenvolve roteiro para outra série de TV — a segunda parte de "Lama dos Dias", baseada no movimento manguebeat — e escreve a história de seu terceiro longa-metragem como diretor, ainda sem nome. O filme, conta ele, será a "terceira fase de pensamento que começa em 'Tatuagem' e passa por 'Fim de Festa'".
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