Ator que construiu o próprio teatro em Fortaleza luta para mantê-lo de pé
Carri Costa, 55, entra no Teatro da Praia de óculos escuros. Com o celular na mão, o ator e diretor se grava descendo pelo corredor da plateia, hoje forrada de pedaços de madeira que restaram da estrutura do teto que desabou há dois meses.
Carri pede socorro no espaço que hoje tem som de nada — diferença capital para um lugar que tirou gargalhadas do público por quase três décadas. O ruído de algumas partes do palco fica inaudível enquanto Carri fala. Ele ainda tem medo de presenciar outro acidente. É prudente e fica atento aos caminhos por onde pode caminhar.
Ao lado de um motel e de uma igreja evangélica, na Praia de Iracema, em Fortaleza, o Teatro da Praia respira por aparelhos que, nesse caso, vêm em forma de doação, em uma vaquinha virtual e por meio de Pix, para a recuperação do espaço. O valor já chegou a 75% do orçado para fazer as reformas, que devem custar R$ 85 mil.
Carri tem um prazo. Se não conseguir reabri-lo até 31 de dezembro, vai abrir mão do local. Seria como abrir mão do sonho, dele próprio. O artista é a alma do Teatro da Praia. Foi em 1993, após visualizar uma placa de aluga-se em uma das ruas no entorno do Centro Dragão do Mar, que veio a ideia de alugar o espaço.
Sem objeto para anotar o telefone, precisou decorar o número até chegar no Panqueca do Céu, restaurante que costumava frequentar. Lá pediu uma caneta, escreveu o contato em um pedaço de guardanapo e guardou no bolso da calça.
Dias depois, quando foi lavar a calça, encontrou o número e resolveu ligar para consultar o preço. Na manhã seguinte, foi até o galpão deteriorado, construído em meados da década de 1930. Assinou o contrato e pediu uns dias para efetuar o pagamento de cerca de R$ 800, em valores de hoje. Foram necessários muitos ajustes para deixá-lo com cara de equipamento cultural.
Trabalho de recomeçar
O tablado tem largura de 8,5m e comprimento de 4,09m. Há quatro coxias laterais, recepção, dois banheiros, dois camarins. A casa não tem ar-condicionado e lida com o mormaço com ventiladores de teto. O público se acomoda em 185 cadeiras plásticas.
Carri utiliza o dinheiro da bilheteria e investe o que ganha de trabalhos como ator e produtor de bonecos e objetos teatrais para realizar reformas e manutenções. A última, ainda inacabada, foi a da fachada — o nome permanece encoberto pela fiação de energia dos postes da rua José Avelino.
Segundo a Defesa Civil, será necessário reconstruir todo o telhado. Carri também precisa fazer um novo tablado e mudar toda a estrutura elétrica, porque os fios foram rompidos no momento do desabamento, além de uma parte hidráulica que passava por baixo do palco. Os extintores e refletores foram destruídos.
"Aqui é um local que precisa de uma constante melhoria na sua estrutura física. A parte que desabou foi a parte com que eu menos me preocupava, o palco. Eu me preocupava mais com a parte da plateia, que é onde o público fica", conta.
Nesse percurso, Carri sempre buscou parceria com o poder público, porque acreditava que o Estado deve fomentar a cultura. "Vai fazer dois meses que o lamentável aconteceu e, desde o ocorrido, não recebi nenhum contato das secretarias de cultura do município ou do estado. É muito estranho. Não imaginava que isso poderia acontecer", desabafa.
Carri ainda vive os abalos provocados pelo desabamento. Chorou por dias. O estrondo do teto caindo às 3h daquela madrugada não sai da cabeça. Enquanto lamenta, anda pelo camarim e mostra as 18 obras de arte que recebeu de doação para fazer um leilão. Os quadros, pintados por artistas brasileiros, estão um ao lado do outro, perto da escada que dá acesso à casa de Carri. A 19ª pintura chega em agosto, vinda da Europa.
Do seminário para os palcos
Carri tem lembranças muito vivas do tempo de seminarista em Carpina, em Pernambuco. Natural de Pacajus, no Ceará, viajou para o estado vizinho com vontade de ser padre. Lá, começou a tomar gosto pelo teatro, aos 15 anos.
O primeiro papel foi ser figurante de um dos grupos de pessoas que se deslocavam pelos cenários durante cenas d'A Paixão de Cristo. "Eu era o 'povo três'. Tinha mais dois povos na minha frente", diz, às gargalhadas.
Cansado de acordar às 5h, partiu para Fortaleza em 1982. Na escola salesiana veio a oportunidade de criar um teatro improvisado. Carri não consegue separar o menino que transformou uma serraria desativada em palco na figura que se tornou.
Na estreia, repetiu o mesmo espetáculo, mas, dessa vez, evoluiu no personagem. Com cabelos longos e barba colada, interpretou Jesus "com feições nordestinas, cabeça de cearense, claro", brinca. "Era o que tinha na hora."
Inspirado na Teologia da Libertação, juntou pessoas do bairro, onde ficava a escola, para realizar outras peças teatrais. A força da descoberta da arte provocou mudanças na rotina da população daquele lugar durante os oito anos de existência do chamado Teatro Galpão.
Cada integrante daquele projeto exercia uma função, desde a confecção de cenário, figurino e adereço à construção do texto. "Isso moldou muito a minha forma de ver e entender o teatro. A partir daí, comecei a sentir que aquele era meu caminho, minha história, era aquilo que eu queria para a vida."
Os pais sempre foram estimuladores. Sem grana, o que poderiam dar era a liberdade de escolher o que ser quando crescesse. Dos seis filhos do motorista de caminhão com a professora de artes manuais, Carri foi a ovelha artística. Para o ator, ser autodidata ajudou na caminhada.
Como tinha urgência de tudo, sem tempo para perder e obrigado a aprender na prática, o artesanato foi a principal renda enquanto não tinha retorno financeiro dos trabalhos como ator. Com o passar dos anos, sentiu a necessidade de se aprofundar, de entender mais sobre a teoria do teatro. Com isso, resolveu se matricular no Curso de Artes Dramáticas da UFC (Universidade Federal do Ceará).
Cercado de humoristas que iniciavam a carreira no início da década de 1990, como Paulo Diógenes e Ciro Santos, percebeu-se como um bom ator comediante. O gosto de estudar, buscar coisas novas, fez Carri começar a pesquisar sobre a molecagem cearense e desenvolver um trabalho voltado para contrapor o escracho. Era vendo e lendo que descobria o que queria fazer no riso. A base veio dos escritos do folclorista Leonardo Mota, do poeta Quintino Cunha e do romancista Antônio Sales.
Depois de um tempo limitado a pesquisar, na história, elementos para compor personagens, criou o espetáculo "Tita e Nic", uma comédia experimental que está em cartaz há 23 anos e já passou por 12 capitais brasileiras, contabilizando 1,2 milhão de espectadores.
"Foi o exercício daquilo que eu tinha vontade de fazer a respeito de riso, colocar a molecagem muito boa e íntegra no palco. Quando digo íntegra, é dentro de um universo de responsabilidade social e cultural. Não precisamos discriminar ninguém para provocar o riso."
Depois vieram criações como "Loucuras de Amor", "As vizinhas", "Malassombro", "Cacos de Família", "Albergue Brother" e a última, "Chibil", que foi paralisada com pouco mais de um mês de apresentações devido à pandemia.
Cenas de resistência
Os embates para mostrar a importância do espaço cultural para a cidade fizeram Carri entrar para a política. Em 2008, pelo PT, tentou eleição para vereador de Fortaleza, mas não conseguiu votos suficientes. E acabou por construir inimizades.
Para evitar dores de cabeça e ainda mais frustrações, não tentou mais nenhuma candidatura, porque não conseguia se ver em cima do muro. Desse período ficaram as bandeiras do partido que cobrem as cadeiras para proteger da poeira. "Não posso ser alienado. Sou um artista. Se eu for alienado, vou ser artista pra quê, se não consigo mudar meu tempo, uma ideia, situações e sensações? Cobro, porque é meu direito como cidadão."
Em 2019, recebeu o convite para fazer o personagem Lindoso da Fonseca na série de televisão "Cine Holliúdy", da Rede Globo. A recepção ao convite foi seguida de uma longa gargalhada e descrença, não acreditando no que ouvia ao telefone. Depois de perceber que era realmente verdade, pediu para que a produção entrasse na rede social do ator, porque era um dos críticos da emissora. Carri vai para a terceira temporada. O dinheiro que entrou investiu no Teatro da Praia.
Para Carri, é no teatro que a vida faz sentido. Nunca havia pensado em ser dono de teatro. Até porque também vem de uma geração de abertura política, com sonhos ideológicos. "O sonho de posse, o sonho de ter e o sonho de comercializar são coisas que fogem à minha ideologia. Meu pensamento é muito mais participativo, comunitário, social, até."
Místico, Carri acredita nas causalidades intencionais. Precisou matar muitas coisas que causam medo e deformam a alma. Assim entende a vida.
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