'Estava ansioso': Alceu Valença vai a pé para palco no Carnaval de Olinda
Eram 22h30 da quinta-feira (16) pré-Carnaval quando Alceu Valença saiu de casa, em Olinda (PE), para a sua tradicional missão anual. Cumprimentou dois guardas municipais que o aguardavam na calçada e seguiu andando, fantasiado, sobre os paralelepípedos das ladeiras da cidade histórica de Pernambuco. Um grupo de produtores e músicos o acompanhava.
"É Alceu, olha. Eita, é Alceu", repetia um homem, com uma lata de cerveja na mão e uma tiara de flores na cabeça. Os olhos arregalados e o sorriso denunciavam a surpresa ao ver o artista andando, assim, pelas ruas. Ao redor deles, na praça ainda vazia, vendedores ambulantes montavam as barracas onde venderão tudo o que abastece a alegria carnavalesca olindense, de álcool a macaxeira com charque. Pararam todos para tirar foto e cumprimentá-lo. Uma mulher o aplaudia.
Dali a 30 minutos, o "rei dos palcos", como costuma ser anunciado antes dos shows, estaria de volta à praça do Carmo, a porta de entrada para o sítio histórico olindense, para fazer o show de abertura oficial da festa da cidade por ele adotada e cantada em tantas canções que a eternizam como sua Pasárgada à beira mar.
"Eu estava ansioso, você estava ansioso, todos estávamos ansiosos. Foi muita espera", dizia, em referência aos dois anos de pandemia sem Carnaval. Foram também dois anos de espera por ver o morador mais ilustre daquelas ladeiras cantando novamente frevos, maracatus e emboladas que são a marca registrada do seu repertório carnavalesco e estão na ponta da língua de uma multidão a lhe assistir.
Ponto turístico
Uma massa de gente cruza, comprimida, as ladeiras e vias estreitas de Olinda, cidade irmã do Recife, a cada fevereiro (e, de vez em quando, março). Numa dessas vias, a rua de São Bento, mesmo no fervo e no aperto do Carnaval, esse povo tende a parar, esperar, gritar e saudar o morador mais ilustre da vizinhança: Alceu Valença mora no sobrado azul claro, de número 182, com o nome dele gravado em uma plaquinha em cima da porta.
A casa foi comprada na década de 1980, em meio ao sucesso do disco "Cavalo de Pau" (1982), que passou a marca de 1 milhão de cópias vendidas e no qual estão gravadas algumas das músicas mais conhecidas do cantor, como "Morena Tropicana" e "Pelas ruas que andei".
A casa, onde antes funcionava uma fundação que acolhia crianças em situação de vulnerabilidade social, é estadia de Alceu Valença sempre que ele está em Pernambuco (o artista se divide entre Olinda e o Rio de Janeiro). Por dentro, o sobrado colonial com três pavimentos tem piso de madeira de lei e é decorado com obras de artistas populares — um dos quadros coloridos, assinado por Marisa Lacerda, estampou a capa de "Maracatu, Batuques e Ladeiras" (1994).
Nos dias de calmaria, ali também é ponto turístico. Há sempre alguém, de Pernambuco ou de fora, que arranja um tempinho para posar numa foto em frente ao endereço. "A Casa de Alceu" está assim sinalizada no mapa virtual em qualquer buscador da internet.
"Um dia tinha um pedinte na porta de casa e eu estava conversando com ele. De repente, parou um ônibus de turista e todo mundo queria tirar foto comigo. Era perto do Natal, eu perguntei a eles: 'Vocês acreditam em Jesus ou em Papai Noel?' Disseram: 'Jesus'. Então eu fiz uma negociação: 'Tiro foto com cada pessoa que der R$ 5 a esse rapaz'", lembra o cantor. "Ele saiu com o bolso cheio", gargalha.
Paixão por Olinda
Nascido em São Bento do Una, celeiro de cultura popular no Agreste de Pernambuco, Alceu Valença se mudou para Recife na adolescência, quando passou a frequentar o cinema e a conviver com o maestro Nelson Ferreira e o poeta Carlos Pena Filho, vizinhos e amigos de seu pai. Foi então que começou a estreitar sua relação com o Carnaval, assistindo a cirandas e aos desfiles de maracatus e blocos de frevo.
A paixão por Olinda veio na sequência. Na cidade alta, além da casa da rua São Bento, o cantor comprou outros casarões. Certa vez, em entrevista, explicou que fazia isso para preservar a "história ibérica" da cidade, numa época em que alemães e italianos passaram a investir em casarios da região.
Uma dessas casas de Alceu está bem pertinho dos Quatro Cantos — a famosa encruzilhada cantada por ele. A Estação da Luz, como é chamado o casarão com enorme jardim, foi comprada pelo artista há quase 30 anos, e aberta ao público em 2019 como espaço cultural que recebe apresentações artísticas e exposições de arte. Na casa, o cantor gravou cenas de "A Luneta do Tempo", filme de sua autoria vencedor do Kikito de melhor trilha sonora no Festival de Gramado (RS) de 2014.
No dia 15 de janeiro, Alceu decidiu fazer uma surpresa aos foliões que passavam pela Prudente de Morais em um domingo de prévia carnavalesca. No fim da tarde, o artista surgiu na varanda da Estação da Luz e cantou para a multidão. O vídeo viralizou imediatamente na internet.
'Única coisa chata é a selfie'
"Andar por aqui é difícil. No Rio, ainda consigo, disfarçado. Mas aqui, só ando por vielas e ruas desertas", explicava, apertando o passo para o show que já estava perto de começar. "Eu gosto que me cumprimentem. A única coisa chata é a selfie", ri, cercado por homens e mulheres lhe fotografando.
A fama, por um lado, afastou Alceu Valença do Carnaval nas ruas de Olinda. "Eu gostava de ir aos blocos. Quando dava, ia no Eu Acho É Pouco", lembra, referindo-se a uma das agremiações mais conhecidas da festa olindense, que desfila aos sábados e terças-feiras pelas ladeiras históricas.
Por outro lado, é dele a responsabilidade de animar milhares de foliões que lotam seus shows, ao ar livre, tanto em Olinda quanto no Recife. "Preciso fazer um repertório especial para cada ciclo. Esse aqui de Carnaval eu canto os blocos, os frevos, canto os maracatus."
Para 2023, ele conta que também quis criar shows mais visuais com base nas suas obras. Por isso, a equipe desenvolveu um projeto de videografismo a partir de sucessos como "Estação da Luz" e "Bicho Maluco Beleza".
A volta do rei dos palcos
O trajeto de Alceu Valença de casa até o local do show não passou de 10 minutos. Mas foi tempo suficiente para ele ser reverenciado pela vizinhança. Amigos do artista, convidados para passar os quatro dias de festa em Olinda, assistiam à movimentação.
"Veja esse aí, é um amigo que vem do Rio Grande do Norte para me ver cantar no Carnaval", aponta Alceu, indicando um de seus convidados. "Para a minha casa, já vieram a rainha da Bélgica, o atual rei da Holanda", emendava o anfitrião.
Às 23h30, a praça do Carmo já estava abarrotada de gente. A cantora Elba Ramalho acabara de fazer sua apresentação. Ao microfone, o apresentador do evento anunciou, então, a grande atração da noite. Uma explosão de fogos registrou o fim de um jejum de dois anos e a volta da alegria às ruas da cidade. "O rei dos palcos", esbravejou o cerimonial, estava de volta à casa.
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