Topo

'Eu que tirava a roupa dos homens': Ana Fadigas e a história da G Magazine

Ana Fadigas, criadora da G Magazine - Lucas Seixas/UOL
Ana Fadigas, criadora da G Magazine
Imagem: Lucas Seixas/UOL

Do TAB, em São Paulo

29/03/2023 04h00

Estava na tela da TV de qualquer domingo nos anos 2000. O apresentador Gugu Liberato aparecia rindo, dobrando uma revista ao meio para esconder algumas imagens — e revelar outras: "Olha aqui, menina, o bumbum!", mostrava para alguma convidada no palco.

Quem viveu aquela época lembra bem como a sensualidade e a nudez davam as caras nos programas de auditório. Era comum receberem atrizes e modelos que estampavam revistas masculinas como Playboy e Sexy. Elas participavam dos quadros e, de quebra, divulgavam os ensaios. Mas, na virada da década de 1990 para a de 2000, a fauna de atrações da TV aberta ganharia também a presença de corpos masculinos.

A responsável por revelar a nudez de homens famosos para todo o Brasil atende pelo nome de Ana Fadigas. Hoje aos 76 anos, a definição que usa para si mesma é tão boa que serve como "bio" em alguma rede social: "Eu era a mulher que tirava a roupa do homem".

Fadigas é a criadora da G Magazine, uma revista que, como a letra no nome indicava, marcou toda uma geração da comunidade LGBTQIA+. Pode parecer pouco, mas a publicação acumulou marcos históricos até deixar de circular, há exatos dez anos: além de contar com a nudez de famosos, foi a primeira publicação a mostrar também ereção.

Os primeiros a topar foram go-go boys e modelos, mas não demoraria muito tempo para a G sair do nicho e atingir todo o Brasil. Rolou na véspera da virada do milênio, em 1999, com a icônica capa com Vampeta, o primeiro (de muitos) jogadores de futebol que se desnudaram dos uniformes nas páginas da revista.

Ana conta que festejou a chegada de Vampeta, mas fez um alerta na assinatura do contrato. "Eu falei: 'Você sabe que pode acontecer de um estádio inteiro levantar e gritar 'bicha' pra você?'. Ele falou: 'E daí? Eu morei na Holanda. Tanto faz se fizerem ou não'", conta.

A preocupação não era à toa. Nos anos 1990, homossexualidade e futebol eram dois mundos tidos como completamente antagônicos. Quando viu a foto do ensaio em que Vampeta aparecia nu no gramado, agarrando o fundo do gol e com o membro ereto escapando na rede, Fadigas não teve dúvidas: pediu para que a imagem fosse o cartaz das bancas de revista.

O bafafá em torno da nudez do jogador estourou todas as bolhas. A revista vendeu 120 mil exemplares — mais da metade da tiragem média da Playboy —, número nunca imaginado por Fadigas para sua revista, com tiragem regular de 20 mil.

A partir daí, a G se consolidaria de vez nas bancas e na boca do povo, seduzindo ainda mais famosos como Latino, Matheus Carrieri, Alexandre Frota, Nico Puig, Rubens Caribé, David Cardoso e tantos outros atletas, como Túlio Maravilha e Robson Caetano. Todos homens viris, com corpos definidos e membros em riste. "Tinha que ter ereção, senão no outro mês eu apanhava dos leitores", ela lembra, hoje, na sala do seu apartamento no Morumbi, na zona sul de São Paulo. "Eles tinham uma vaidade muito interessante. Não iam só pelo cachê."

Essa vaidade, de alguma forma, ajudou a abrir as portas, anos depois, para a entrada de alguns de seus modelos na pornografia. Esta história pode ser ouvida no podcast do UOL TAB, "Brasil para Maiores", que conta com a participação da jornalista no episódio 3, "O Brasil na Puberdade".

'Hoje eu seria presa'

Olhando pra trás, Ana Fadigas avalia que o sucesso da G só poderia ter acontecido mesmo naquele período. "Imagina, hoje eu seria presa", diz, rindo largamente e ajeitando o cabelo pintado de roxo, moldado num corte moderno.

No final dos anos 1990, o Brasil parecia viver uma ressaca da censura de décadas sob a ditadura militar. "Você podia enfrentar algumas coisas, desde que você não se levasse a sério, intelectualmente falando", ela explica. "A década de 90 tinha essa coisa de ser ousado. As pessoas falavam muito que tal pessoa era ousada."

E a mídia gostava de toda essa ousadia. A G aparecia com frequência em programas como "Fantástico" e estava na pauta do dia nas atrações comandadas por Jô Soares, Faustão e do próprio Gugu — que não perdia a chance de mostrar as fotos mais "light" para a câmera. "De repente, a G tinha receptividade e não era tão 'pecado'. A gente pisou o pé, a mãozinha e foi andando devagarinho numa libertação maior, menos hipócrita", conta.

Ana Fadigas, a criadora da G Magazine - Lucas Seixas/UOL - Lucas Seixas/UOL
Imagem: Lucas Seixas/UOL

A vontade de quebrar barreiras e dedicar-se a uma publicação declaradamente gay nasceu no seio do seu casamento com o professor de história Jayme Camargo. Após seis anos juntos, ela acompanhou intimamente a saída do armário do próprio marido, com quem teve dois filhos. "Lógico que eu enxergava uma questão de mercado, com certeza absoluta, mas era uma história minha também. Eu tive que fazer uma família gay. Uma família diversa", explica.

Ana se casou outras duas vezes, mas se refere a Jayme como o maior amor de sua vida -- e o despertar da sua consciência para temas como homofobia. "Ele era um poeta, um gênio, mas de uma geração que sofreu muito para dizer que era gay. Um dia eu falei: 'Chega de se esconder, agora você vai ser meu gay de plantão'."

Gay não é tranqueira

Ana Fadigas tinha mais de 20 anos de carreira na Editora Abril quando decidiu criar a G Magazine. Na editora que praticamente monopolizava as bancas e as assinaturas, ela foi diretora executiva de um núcleo de revistas populares, como Contigo! e Boa Forma — e sempre preferiu assim. "Brincava lá pedindo pra nunca me colocarem na [revista de economia] Exame."

Eram outros tempos. Uma revista para gays parecia ser algo impossível num ambiente tão masculino e tóxico, ela pontua. "O assédio era diferente porque era sedução. Eu tive chefes que fecharam a porta e enfiaram a mão assim na minha...", interrompe. "Saí e falei: 'Não quero'. Era uma coisa pra ser confusa mesmo."

Foi só na Fractal Edições, que fundou na metade dos anos 1990 com o jornalista Ângelo Rossi, antigo sócio da Abril, e o apresentador Otávio Mesquita, que conseguiu desenvolver o projeto, lançado inicialmente com um nome nada sutil, BananaLoca, e conteúdo mais explícito e menos formal, mas ela que o projeto ficasse de pé pelo conteúdo.

Os amigos da área olhavam de fora e diziam que a carreira dela acabaria ao entrar naquele "submundo". "Gente, mas que submundo é esse?", ela gesticula. "Não balancei, mas foi muito difícil. E eu acho que o fato de eu ser mulher complicou. Podia ter dado mais certo se fosse um homenzarrão, disso eu não tenho dúvida."

Ana Fadigas, criadora da G Magazine - Lucas Seixas/UOL - Lucas Seixas/UOL
Imagem: Lucas Seixas/UOL

Chamou colunistas travestis e tantos outros escritores veteranos, como João Silvério Trevisan e Glauco Mattoso. Criou também um manual de redação para definir os termos que podiam ou não ser usados. "Eu queria jornalismo de verdade, porque a tendência era achar que gay é tranqueira." Um cuidado que se estendia à cláusula de contrato dos famosos peladões. "Eles não podiam ter atitudes homofóbicas, senão pagavam uma multa. Graças a Deus, nunca aconteceu. Acontecia só aqueles: 'Ah, eu tenho muito amigo gay.' Ter um amigo gay para eles era o máximo", observa.

Entre um ensaio nu e outro, Fadigas investia em matérias sobre sexo, comportamento, políticas públicas e direitos LGBTQIA+, que na época atendia pela limitada sigla GLS.

Acabou inspirando outras publicações do tipo, como as revistas Junior e Íntima — esta última, disfarçada de revista feminina, para conseguir mais anunciantes. "Mas a G era lucrativa. Eu consegui fazer com que tivesse grandes anunciantes sendo uma revista assumidamente gay", defende.

'A G era meu filho'

A fase áurea está eternizada na capa da edição 100. Ana Fadigas aparece vestida de branco, como uma debutante, ao lado de Matheus Carrieri e Alexandre Frota, dois dos primeiros atores a posarem pra G — e a dupla que mais vezes fez ensaio na história da revista.

Mas, depois de dez anos, a G já não vendia como antes. A nudez foi catapultada da TV aberta para a internet, onde os ensaios nus escoavam gratuitamente. "Da gráfica saía alguém que levava a edição e colocava inteira na internet", ela relembra. "A 'Super Ana' não deu conta de várias partes. Senti que eu teria que piorar para poder sobreviver, trabalhar com gente não tão boa, diminuir o número de páginas."

Capa da edição número 100: Ana Fadigas posa ao lado dos seus "colaboradores" mais frequentes, Alexandre Frota e Matheus Carrieri - Divulgação - Divulgação
Capa da edição número 100: Ana Fadigas posa ao lado dos seus "colaboradores" mais frequentes, Alexandre Frota e Matheus Carrieri
Imagem: Divulgação

Acabou tomando a decisão de vender a G, o que lhe rendeu dor de cabeça na Justiça. "Não queria vender para quem eu vendi. Hoje tenho quilos de processos por ele não ter pago os funcionários que foram com ele. Pela lei trabalhista, tudo isso volta para o dono anterior", lamenta-se. "Se eu tirasse o homem nu, o que ficava era uma revista militante da causa e isso se perdeu com o novo dono."

Sob nova direção, a G Magazine seguiu por outro caminho, com mais propaganda e sem nudez. Aos poucos foi perdendo periodicidade, até encerrar suas atividades em 2013.

Ela disse que a venda e o problema na Justiça foram causa de uma depressão profunda. "Eu tinha saudades da G, assim como se fosse um filho. E eu fui perdendo tudo o que tinha. Perdi cinco imóveis. Perdi isso, perdi aquilo. Meu casamento acabou", diz, em tom de lamento, segurando uma xícara de café.

Ela até tentou voltar para o mercado editorial, mas sem sucesso. "Fiquei muito marcada, entendeu? O próprio mercado me pôs de lado", explica, dando uma longa pausa. "Nossa, até perco o rumo de tanto que isso me toca ainda hoje."

Foi nesse período também que Jayme, seu primeiro marido, a quem ela dedica seu maior projeto no jornalismo, morreu. "Quase fui junto. Ele morava lá em casa, aí ele resolve morrer. Teve um infarto e morreu. Eu desentendi o mundo porque ele era o meu grande amigo, nunca me abandonou. É muito louco isso", diz, abanando a mão na frente do rosto, como se quisesse espantar a tristeza que a história também carrega. Dá certo.

"A G teve sua história. Ela teve começo, meio e fim e fez uma época. Ela nunca vai ser esquecida por quem viveu aquele período", diz, voltando a rir. "Eu era ousada."