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Como um filme de arte criou, sem querer, a indústria pornô brasileira

"Império dos Sentidos" (1976) de Nagisa Oshima provocou o início da produção de filmes adultos no Brasil - Reprodução
'Império dos Sentidos' (1976) de Nagisa Oshima provocou o início da produção de filmes adultos no Brasil Imagem: Reprodução

Do TAB, em São Paulo

22/03/2023 04h00

Antes mesmo de chegar ao Brasil, tentaram censurar "O Império dos Sentidos". Dirigido pelo cineasta japonês Nagisa Oshima e lançado em 1976, o filme conta a trágica história de amor entre uma ex-prostituta e o dono de uma propriedade de Tóquio, salpicada com experimentações sexuais misturando prazer e violência. Embora o longa-metragem de Oshima seja uma obra-prima, ficou mais conhecido pelas cenas de sexo explícito que chocaram os espectadores orientais e ocidentais.

As autoridades brasileiras não perderam por esperar. No mesmo ano, foi aberto um processo no Juizado de Menores de São Paulo: 12 pareceres foram emitidos por gente que nem sequer havia visto o filme. Na censura, os militares encarregados de analisá-lo chegaram à mesma conclusão: interdição devido ao "enredo chocante e de mensagem duvidosa".

A recomendação, entretanto, não foi capaz de impedir que "O Império dos Sentidos" chegasse aos cinemas brasileiros — embora com atraso. Em 1979, ele foi exibido na 3ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, idealizada por Leon Cakoff.

Desde a primeira edição da Mostra, em 1977, filmes que provavelmente seriam censurados pela DCDP (Divisão de Censura de Diversões Públicas) entravam na programação do evento, que começou no Masp e se expandiu para cinemas de rua da capital.

Para conseguir tamanha façanha, Cakoff se valia de uma "brecha": as malas diplomáticas trocadas entre consulados e embaixadas de países selecionados para participarem da Mostra e o Departamento de Cinema do Masp.

Não muito longe do museu, a notícia de um filme com cenas de sexo explícito, sendo exibido sem cortes, caiu como uma bomba na "Boca do Lixo", região onde se concentravam as produtoras e distribuidoras do cinema nacional. Era de lá que saíam as principais pornochanchadas, gênero que nasceu e se desintegrou junto com a ditadura militar.

Foi assim que um filme de arte japonês gerou um "efeito borboleta" comicamente brasileiro: o fim da pornochanchada e o começo da indústria pornográfica nacional — mesmo a contragosto.

A história da pornografia brasileira em sua fase mais maluca é tema do podcast do TAB "Brasil para Maiores", que resgata a era em que famosos toparam fazer filmes de sexo explícito. Novos episódios toda quinta-feira, em todas as plataformas de áudio e no Youtube.

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Crítica de 'Império dos Sentidos' na revista Manchete, publicada em 1980, após estreia nos cinemas brasileiros
Imagem: Reprodução/Biblioteca Nacional

A primeira vez

Mais ou menos um ano depois da 3ª Mostra, "O Império dos Sentidos" foi liberado pela censura depois de passar por um comitê final. O filme entrou em cartaz com classificação indicativa para maiores de 18 anos e foi exibido nas principais capitais brasileiras. Pouco tempo depois, outro filme com cenas de sexo explícito (também exibida na Mostra de 1981) entrou no circuito: "Calígula", de Tinto Brass.

A liberação gerou uma falta de interesse do público pela produção nacional. Era um cálculo simples: por que pagar para assistir a uma pornochanchada se havia filme de sexo explícito à disposição?

Isso criou as condições perfeitas para o nascimento do primeiro pornô brasileiro: "Coisas Eróticas", lançado em 1982, sob direção de Raffaele Rossi.

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Letreiro de 'Coisas Eróticas' de Raffaele Rossi, o primeiro filme de sexo explícito do Brasil
Imagem: Reprodução

O filme de Rossi foi uma resposta rápida do mercado cinematográfico brasileiro à chegada do pornô nos cinemas, mas não é especialmente celebrado. Foi uma produção de baixo orçamento, filmada em um sítio, com um enredo de pornochanchada e sexo de verdade.

O filme tem três histórias desconexas, mal escritas, com uma gama de atividades sexuais: sexo com penetração vaginal, anal, tapas e até pegação entre homens. Nem de longe é uma produção que salta aos olhos da "Boca do Lixo", mas lotou os cinemas do Brasil inteiro.

"Era um filme ruim, mas tinha sexo explícito. Na época, por causa da pornochanchada, a gente ia pro cinema para ver mulher pelada. A gente nem sabia a história", relembra Valter José, 68, doutor em filosofia e literatura e diretor de filmes adultos e figura notória do mercado pornô nacional.

Os números variam, mas o cálculo atual é que a obra de Rossi tenha levado 4 milhões de pessoas aos cinemas ao longo de dois meses, em 1982. Antes de estrear, os militares tentaram impedir a exibição, mas perderam a batalha de mandados de segurança. Na época, não era incomum que parte do orçamento de filmes fosse reservada às eventuais batalhas contra a censura.

Uma das propagandas do "Coisas Eróticas", inclusive, era a promessa de que as cenas do filme superariam o "O Império dos Sentidos".

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Reportagem na revista Manchete de 1979 sobre a liberação de filmes proibidos
Imagem: Reprodução/Biblioteca Nacional

Liberou geral

O cinema da Boca do Lixo estava passando por tempos difíceis no final dos anos 1970. A chegada do sexo explícito aos cinemas nacionais não colaborou com a situação financeira das produtoras. Ainda assim, muitos resistiram o quanto puderam. Todavia, a atenção similar à de um peixinho dourado do público — muito por causa da oferta do pornô —, refletiu-se rapidamente nas bilheterias. Muitos cinemas passaram a exibir filmes pornôs dos EUA em sessões comuns (para maiores de 18 anos).

O jeito, então, foi a Boca entrar de vez no sexo explícito. E não foi uma escolha feliz. "Muitos usavam nomes 'falsos', mas todo mundo sabia quem era quem", conta Matheus Trunk, jornalista, criador da Revista Zingu e biógrafo da Boca do Lixo.

Houve boas exceções. José Mojica Marins, o Zé do Caixão, usou o próprio nome para dirigir o filme "24 Horas de Sexo Explícito", mas a intenção de Mojica era fazer com que o público sentisse repulsa — principalmente de pornografia. Em uma das cenas, uma atriz aparece transando com um cachorro pastor alemão. Foi a primeira cena de bestialismo brasileiro.

Para o azar de Mojica, o filme foi um estouro. Em 1985, milhares de pessoas fizeram fila para assistir à saga de dois amigos competindo para ver qual deles fazia mais sexo em 24 horas. Deu tão certo que ganhou uma sequência: "48 Horas de Sexo Alucinante".

Mojica não gostou de mexer com pornografia, mas viu a experiência como alternativa para se livrar da pindaíba do cinema brasileiro à época. Os filmes ajudaram a financiar as produções seguintes do saudoso cineasta.

Sob pseudônimo ou não, cineastas e produtores lançavam filmes com a mesma proposta da pornochanchada, mas salpicados de sexo explícito, da forma mais improvisada possível. "As cenas de sexo explícito eram enxertos. Ou seja, eles gravavam as cenas com outros atores e editavam no filme", explica Trunk.

Um exemplo era o próprio "Coisas Eróticas", lotado de enxertos, servindo quase como uma versão cinematográfica de Frankenstein.

Segundo o jornalista, as cenas ficavam a cargo de atores e atrizes que faziam papéis menores nas pornochanchadas. Fora do cinema, os mesmos subiam nos palcos para encenarem peças de teatro pornô — em português claro, eram os famosos "shows de sexo ao vivo".

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Abertura do filme 'Variações do Sexo Explícito' (1984) dirigido por Alfredo Sternheim e produzido por Juan Bajon
Imagem: Reprodução

Os desbravadores

Para entender os primórdios da indústria pornô brasileira, Valter José resgatou outro nome memorável: a Galápagos Produções.

Criada por Juan Bajon em 1983, a Galápagos botou na pista cerca de 30 filmes de sexo explícito, grande parte gravada no sítio de Bajon em Campinas (SP). A direção de 11 deles foi assinada pelo diretor, roteirista e crítico de cinema Alfredo Sternheim, o Alfredinho.

Sternheim e Bajon não eram meros aventureiros. Ambos tinham nomes estabelecidos no cinema brasileiro e assinavam filmes de sexo explícito — muitos deles de zoofilia, inclusive.

Sternheim faleceu em 2018 e foi um exímio biógrafo da Boca do Lixo. Muitas das informações para esta reportagem foram extraídas do livro "Cinema da Boca - Dicionário dos Diretores", lançado em 2005 pela Imprensa Nacional.

Bajon vive recluso em Campinas. Sua última entrevista foi para Matheus Trunk em 2011. "Fomos os únicos a assumir. Não fomos medrosos ou covardes como os demais. Acho que fomos mais francos com o público", disse Bajon a Trunk.

A diferença dos filmes dirigidos por Sternheim era nítida. No lugar de enxertos, vieram histórias mais elaboradas e cenas mais bem feitas de sexo. Bajon também dirigiu filmes sob o selo da Galápagos. Sandra Morelli, uma das atrizes mais famosas da indústria nos anos 1980, citou Bajon em uma entrevista ao "Comando da Madrugada", em 1988, como um dos poucos diretores que respeitavam as atrizes.

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Sandra Morelli, estrela de filmes de sexo explícito nos anos 1980, em uma entrevista para Goulart de Andrade em 'Comando da Madrugada' em 1988
Imagem: Reprodução/Youtube

O começo do fim

A história da indústria pornô é contada pela história de suas crises. Os anos 1980 não foram exceção. Mundialmente, o mercado adulto estava passando pela transição das salas de cinema para uma mídia inovadora: o vídeo e as fitas VHS.

As exibições nos cinemas de rua foram escasseando. Nas décadas seguintes, muitos cinemas fecharam e outros se mantiveram como "cinemões", exibindo apenas pornôs, mantendo uma circulação intensa de garotos de programa, espectadores e clientes ao redor. Tudo junto e misturado.

Foi nessa virada do cinema para o VHS que nasceram as produtoras voltadas 100% para a produção pornô, dessa vez sem maiores pretensões cinematográficas, além de retratar a ficção do sexo. A partir daí, era tudo pornô. Sem eufemismos.

No começo dos anos 1990, surgiram novos CNPJs (ou melhor, CGCs) que se dedicavam à produção nacional de pornô: a Sexxxy (com três "x" mesmo); As Panteras, uma das poucas empresas pornô que ficava no Rio; Privat; Introduction; Explícita; Buttman e, claro, a Brasileirinhas.

Grande parte era conduzida por famílias inteiras que de alguma forma tinham relação com empresas de distribuição de filmes no país.

Alguns elementos do cinema de sexo explícito dos anos 1980 seguiram fortes: grande parte das gravações eram feitas em sítios ou casas de praia e muitas faziam filmes de zoofilia (a maioria com cavalos ou cachorros) para conquistar os públicos nacional e internacional.

Quarenta anos após sua criação, a Galápagos de Juan Bajon representa o elo mais forte entre a pornografia e a pornochanchada, inaugurando o que conhecemos hoje como o mercado pornográfico. Não é incomum ler desentendidos tratarem a pornografia e a pornochanchada como a mesma coisa, mas a resistência histórica dos cineastas da Boca do Lixo de abraçar a pornografia prova que a linha tênue que separa o explícito do erótico é muito mais forte do que se imagina.