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'Sou sozinho': 1º apátrida reconhecido por Justiça brasileira veio de navio

Paciência: nascido no Burundi, Andrimana Buyoya Habizimana aguardou decisões em todas as instâncias da Justiça, inclusive o STF - Valcidney Soares/UOL
Paciência: nascido no Burundi, Andrimana Buyoya Habizimana aguardou decisões em todas as instâncias da Justiça, inclusive o STF Imagem: Valcidney Soares/UOL

Valcidney Soares

Colaboração para o TAB, de Natal

10/04/2023 04h01

Andrimana Buyoya Habizimana, 42, o "Abin", passou semanas escondido dentro de um navio cargueiro que partira da África do Sul. Carregava poucos mantimentos e não sabia qual seria seu destino. O ano era 2006 e Abin, natural do Burundi — um pequeno país da África Central — queria chegar na Europa, onde imaginava ter uma vida melhor, longe dos problemas de sua terra natal.

O motivo: 16 anos antes, ainda em 1990, a criança de nove anos fugira com os pais da crise econômica e disputas étnicas que afetavam o Burundi. Os conflitos levaram o país a entrar numa guerra civil em 1993 que perdurou até 2005.

O africano sequer sabe quanto tempo ficou no navio: crava algo entre 20 e 30 dias. Para andar e comer, só às escondidas. "A pessoa anda no momento que dá. Quando via uma brecha andava um pouco, mas quase 90% [do tempo] ficava escondido", conta ele.

Só depois que a embarcação atracou ele soube onde estava: em vez do sonho europeu, veio parar no Porto de Santos, Brasil.

Adin, o apátrida reconhecido pela Justiça - Valcidney Soares/UOL - Valcidney Soares/UOL
Burundi, África do Sul e Brasil negaram cidadania a 'Abin': advogado brasileiro comprou a briga nos tribunais
Imagem: Valcidney Soares/UOL

Cidadania negada

Depois de tentar entrar em Portugal num voo que partiu de Natal, ser parado em Lisboa, preso e extraditado, se viu sem nacionalidade.

Na cela da Polícia Federal em Natal, teve seu pedido de cidadania negado por seu país de origem, pela África do Sul e pelo Brasil. Em certo sentido, portanto, Abin não existia.

Tendo saído do Burundi ainda criança com os pais, passou pela Tanzânia e depois pela África do Sul já na adolescência. "Quando fui pra África do Sul eu já estava sozinho. Meus pais tinham falecido, então passei a infância sozinho. Nesse tempo procurei o melhor para mim, por isso que entrei nessa ronda de viagem de um país para o outro tentando conseguir algo melhor", diz.

Presidente da Comissão de Relações Internacionais da OAB-RN à época, o advogado Marcos Guerra era um dos poucos profissionais de Natal com experiência em direito internacional. Foi ele quem trabalhou pelo reconhecimento da situação do africano.

Durante a ditadura militar, Guerra foi exilado político após ter coordenado o projeto "40 horas de Angicos", em que o educador Paulo Freire empreendeu uma experiência de alfabetização de jovens e adultos no interior do Rio Grande do Norte. Morou em Paris e conhecia alguns casos de apátridas — pessoas cuja nacionalidade não é reconhecida por país nenhum.

"Antes da anistia havia alguns brasileiros no exterior com o mesmo estatuto, então eu sabia tanto por ter estudado como por ter vivenciado que o caminho era pedir o reconhecimento de apátrida", explica o advogado. "Fui me informar com as Nações Unidas e recebi a informação de que no Brasil não existia nenhum caso e que o governo não estimulava. Ou seja, o recado: não vá por aí que será negado", lembra.

Abin, o apátrida reconhecido pela Justiça - ONG ReforAMAR/Divulgação - ONG ReforAMAR/Divulgação
Ele é voluntário da ONG ReforAMAR, que faz mutirões para pessoas em vulnerabilidade
Imagem: ONG ReforAMAR/Divulgação

Primeiro e único caso

Assumiu o caso do africano e resolveu tentar o improvável: "O governo diz o que quer, advogado entende o que a lei manda." O processo teve início em 2009. A prisão de Abin, que não deveria passar de três meses, durou oito por questões burocráticas.

A decisão que concedeu a Andrimana Buyoya Habizimana a condição de apátrida saiu em 2010, proferida pela Justiça Federal do Rio Grande do Norte, depois confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região e pelo STF (Supremo Tribunal Federal).

De acordo com o ministério da Justiça, trata-se do primeiro e único caso até hoje de reconhecimento de apátrida pela Justiça brasileira. Há outras pessoas nessa condição no país mas concedida somente pelo governo federal (um total de 20 apátridas).

Mesmo com o fim da guerra civil no Burundi, Abin não pensa em voltar para lá. Em Natal, tem hoje uma filha de 9 anos, fruto de um relacionamento com uma mulher brasileira, que já terminou. Desde 2008 trabalha no setor de almoxarifado hospital da Liga Norte Riograndense contra o Câncer.

"Eu tô feliz. Aqui no trabalho é o local em que passo mais tempo, quase o dia todo, e me considero feliz. As pessoas me receberam bem na empresa, me tratam bem, isso já me deixa tranquilo", afirma ele, que aos fins de semana também é voluntário da ONG ReforAMAR, que realiza reformas e mutirões para pessoas em situação de vulnerabilidade social.

Adin, o apátrida reconhecido pela Justiça - Liga Norte Riograndense contra o Câncer/Divulgação - Liga Norte Riograndense contra o Câncer/Divulgação
O apátrida relata a sua experiência em um seminário no curso de Direito da UFRN
Imagem: Liga Norte Riograndense contra o Câncer/Divulgação

Racismo e persistência

O africano diz que tem pressa e vislumbra um futuro melhor para si e para sua filha. "Sonho sempre temos. Hoje tô fazendo faculdade e preciso terminar", conta ele, que ganhou uma bolsa de estudos em uma universidade particular da cidade, com o apoio da OAB-RN. Está no terceiro ano do curso de Administração.

"Eu consegui chegar aonde estou por causa da paciência. Nem todo mundo tem paciência como eu tive de esperar, esperar, esperar. Tiveram alguns que já viveram conosco, não se adaptaram e decidiram ir embora. Uns têm dificuldade de atendimento em hospitais, outros têm crianças que precisam estudar e ainda têm essa dificuldade. Alguns municípios não acham normal dar espaço para um estrangeiro estudar, entrar na sala de aula", relata.

Ele conta que enfrentou e ainda enfrenta situações de racismo, mas quer seguir batalhando.

"Isso existe, e quem passa na pele sabe como é. Não é fácil. Mas nessa parte vejo que não sou só eu. Eu vi o negro brasileiro também sentir na pele do mesmo jeito como eu sinto. Mas é a vida, a gente tem que seguir", resume.

São 18h e a noite se avizinha em Natal. Com uma bolsa transversal preta, Abin sai com passo apressado rumo a parada de ônibus, a poucos metros do hospital. "Eu ando rápido", diz. Às 19h, ele já estará sentado em sua carteira na faculdade. O cidadão que um dia já foi negado por três países em breve estampará, com muito orgulho, o diploma de administrador.