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Ucranianas refugiadas no Brasil decidem voltar para casa mesmo com a guerra

A ucraniana Alina voltou para a Ucrânia com as filhas para se encontrar com o marido, que foi convocado para a guerra - Igreja da Cidade/Divulgação
A ucraniana Alina voltou para a Ucrânia com as filhas para se encontrar com o marido, que foi convocado para a guerra
Imagem: Igreja da Cidade/Divulgação

Flávia Mantovani

Colaboração para o TAB, de São José dos Campos (SP)

22/03/2023 04h01

Com um pingente do mapa do Brasil pendurado no pescoço, a ucraniana Alla Hrechana, 54, conta, em português básico, como tem sido sua rotina no interior de São Paulo, longe dos combates que vêm devastando seu país há mais de um ano. Depois de meses de incerteza e de mudar de ideia várias vezes, ela tomou uma decisão difícil: deixar o apartamento confortável onde mora na cidade de São José dos Campos e voltar para casa, mesmo sem perspectiva de um fim para o conflito na Ucrânia.

Alla chegou no Brasil em março do ano passado, com outras famílias resgatadas por uma rede missionária evangélica que acolhe refugiados cristãos. No grupo, formado essencialmente por mulheres e crianças, vieram também sua filha, Alina, 32, e duas netas. Em outubro, Alina viajou com as crianças, de dois e cinco anos de idade, de volta à Ucrânia. Ela queria ficar perto do marido, que é combatente na luta contra os russos, e embarcou para Poltava, no centro do país.

Poltava foi atacada assim que Alina chegou. Ela e as filhas estão bem, mas tiveram que se acostumar a viver com o racionamento de eletricidade, internet e água, que funcionam só duas horas por dia, e alarmes anunciando bombardeios.

"Foi um contraste muito grande com a vida que ela tinha no Brasil. Aqui, ela deitava e dormia", diz Alla, que foi acolhida pela Igreja da Cidade. "Lá, toca uma sirene e tem que correr para o bunker, depois tocam mais sirenes para você sair. Como é que dorme com as crianças?"

Alla seguirá o caminho da filha nesta quarta-feira (22), quando parte seu avião em direção à Polônia. De lá, atravessará a fronteira por terra. "Sei que a Ucrânia ainda é um lugar muito perigoso, mas deixamos os maridos e família lá, e estamos morrendo de saudade", diz. "O momento agora é de derramar sobre a Ucrânia todo o amor que recebemos aqui."

Dos mais de 200 ucranianos que vieram para o Brasil com a rede de igrejas GKPN (Global Kingdom Partnership Network), 34 foram para São José dos Campos, onde tiveram aluguel, alimentação e demais gastos bancados pela igreja batista por um ano.

Ucranianas refugiadas no Brasil decidem voltar para casa mesmo com a guerra - Igreja da Cidade/Divulgação - Igreja da Cidade/Divulgação
Refugiados em festa de despedida para os que retornaram à Ucrânia em outubro de 2022
Imagem: Igreja da Cidade/Divulgação

No fim desse período, só sete decidiram ficar — entre eles, o único homem do grupo, um senhor que obteve permissão para sair da Ucrânia por não ter mais idade para combater. Em outras cidades brasileiras, a opção pelo retorno também foi massiva: de um grupo de 27 acolhidos por outra igreja em Curitiba, por exemplo, apenas uma pessoa não quis voltar.

"Tenho vontade de colocar todo mundo debaixo da minha asa e dizer: 'Não vai, não, fica aqui'. Eles se tornaram nossa família", diz a pastora da Igreja da Cidade Carmen Rangel. "Mas é uma escolha que só eles conseguem fazer. Imagina sair da sua casa, deixar um monte de gente para trás. Como é que você vai aproveitar aqui sabendo que lá está do jeito que está?"

No começo, Carmen e sua equipe tiveram que lidar com casos complexos, como uma refugiada que soube, pouco depois de chegar, que o filho tinha sido morto na guerra. A pastora conta que as crianças se escondiam quando passava um avião, traumatizadas com o barulho, e que o grupo consultava frequentemente um aplicativo para saber quais lugares tinham sido bombardeados.

Mas houve também momentos de distração, com passeios organizados por voluntários, inclusive para o litoral paulista, onde muitos pisaram em uma praia pela primeira vez. "Meu filho saiu correndo do carro quando viu o mar. Minha mulher até chorou, ligou por vídeo para meu sogro", conta Gilmar Tadeu, 52, técnico de futebol brasileiro casado com uma ucraniana. Tadeu, que treinou times da primeira divisão na Ucrânia, voltou para o Brasil em um avião da Força Aérea Brasileira e hoje é pastor na Igreja da Cidade.

Valentina Fuhol, que diz querer ficar no Brasil, com a filha, Halyna Mashtaler, que decidiu voltar para a Ucrânia - Igreja da Cidade/Divulgação - Igreja da Cidade/Divulgação
Valentina Fuhol, que diz querer ficar no Brasil, com a filha, Halyna Mashtaler, que decidiu voltar para a Ucrânia
Imagem: Igreja da Cidade/Divulgação

'País do abraço'

A invasão russa à Ucrânia provocou o maior êxodo forçado desde a Segunda Guerra Mundial, com mais de 8 milhões de pessoas tendo deixado o país. A maioria migrou para lugares próximos, como Polônia, Alemanha e República Tcheca. O Brasil se colocou como opção de destino ao criar um visto humanitário para esses refugiados, mas, como o restante da Europa também abriu suas portas para eles, poucos optaram por atravessar o oceano em direção a um lugar tão distante.

Ucranianas refugiadas no Brasil decidem voltar para casa mesmo com a guerra - Igreja da Cidade/Divulgação - Igreja da Cidade/Divulgação
Chegadas e partidas: dos 34 ucranianos instalados em São José dos Campos, só sete decidiram ficar
Imagem: Igreja da Cidade/Divulgação

Segundo um levantamento do OBMigra (Observatório das Migrações Internacionais), ligado à UnB (Universidade de Brasília), 555 ucranianos pediram residência no Brasil de fevereiro de 2022 a fevereiro de 2023.

O número dos que retornaram é mais difícil de calcular, pois os registros de entradas na Ucrânia não revelam se quem cruza a fronteira é refugiado e se está voltando temporariamente ou para ficar. O que mostram as pesquisas é que quase 80% dos refugiados e deslocados internos dessa guerra pretendem voltar algum dia para casa, ainda que apenas 12% deles planejem fazê-lo nos próximos três meses.

O dado está no relatório "Lives on Hold" (vidas em suspenso), do Acnur (Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), que também constatou que os que mais desejam retornar são os mais velhos, os que têm familiares que seguem na Ucrânia e os que enfrentam problemas para se adaptar aos países de acolhimento. Cerca de 18% dos entrevistados se disseram indecisos quanto ao retorno.

Além da preocupação com segurança, eles citaram como barreiras para a volta a falta de acesso a serviços básicos, a trabalho e a moradia adequada, que sofreram grande impacto no conflito.

No Brasil, muitas famílias ficaram divididas, com alguns integrantes querendo voltar e outros, não. Houve quem só batesse o martelo na semana anterior à viagem. "Uma delas disse que ia voltar, compramos as passagens, depois ela resolveu não ir. Passou um tempo e ela me ligou no meio da noite para dizer: 'Eu vou. Vou embora'. Até o último momento eles puderam decidir", diz Carmen.

Os únicos que vieram já com intenção de ficar foram um casal de idosos com a filha e dois netos, que já conseguiram trabalho. A neta está cursando faculdade de pedagogia e namora um brasileiro — que já está aprendendo a falar ucraniano.

Alla Hrechana com a neta, na chegada à casa alugada para a família em São José dos Campos - Igreja da Cidade/Divulgação - Igreja da Cidade/Divulgação
Alla Hrechana com a neta, na chegada à casa alugada para a família em São José dos Campos
Imagem: Igreja da Cidade/Divulgação

Os outros refugiados que ficarão em São José são uma jovem de 19 anos e seu irmão, de 17, que tem um motivo extra para não voltar: a possibilidade de ser convocado em breve para lutar. Uma terceira irmã, que migrou com eles, preferiu retornar para perto dos pais.

Quando escolheu voltar, a médica Irina Shevchenko, 45, precisou consolar a filha de 15 anos, que "fez muitas amizades e encontrou seu primeiro amor no Brasil". "Eu lembro a ela que, por mais que a gente ame o Brasil, nossa terra é a Ucrânia", diz.

Irina define o Brasil como "o país do abraço" e conta que não entendeu por que estava sendo abraçada por desconhecidos ao chegar ao Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos. "No começo achei estranho, mas hoje eu percebo que é um país que tem muito amor para dar. Eu me sinto metade brasileira, metade ucraniana."

Aluna aplicada das aulas de português, Valentina Fuhol, 66, incorporou ingredientes brasileiros à sua culinária e aprendeu a fazer brigadeiro e biscoitos de goiabada, que vendia junto com sua torta de maçã, que ficou famosa entre os frequentadores da igreja.

"Eu quero ficar", diz a ucraniana de cabelos curtos pintados de vermelho, que gosta do Brasil por ser um país "colorido, com liberdade e amor". Mas sua filha, a professora Halyna Mashtaler, 45, a convenceu a retornar no voo do dia 22: "Nossa casa é lá".