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'Eu estava iludido': ex-incel relata como entrou e saiu da 'machosfera'

Timpa usa uma máscara de gorila para ocultar a verdadeira identidade. Seu apelido vem de "chimpanzé", termo usado em grupos de ódio  - Arquivo Pessoal/UOL
Timpa usa uma máscara de gorila para ocultar a verdadeira identidade. Seu apelido vem de 'chimpanzé', termo usado em grupos de ódio Imagem: Arquivo Pessoal/UOL

Do TAB, em São Paulo (SP)

08/05/2023 04h01

Quase cinco anos atrás, entrevistei dois homens que frequentavam uma comunidade virtual misógina para uma reportagem sobre incels brasileiros. Timpa* era um deles. Não foi uma conversa fácil, mas não pelo discurso virulento contra as mulheres. "Sou um figurante da minha própria vida", ele disse, em 2019, época em que o termo "incel" estava em alta pelos mesmos motivos de hoje: ataques violentos a escolas no Brasil.

Quando liguei para Timpa, poucos meses tinham se passado desde o massacre de Suzano (SP), tragédia que ficou vinculada ao universo virtual de comunidades misóginas depois que um grupo de ódio investigado pela Polícia Federal assumiu a mentoria do crime em um fórum fechado.

Timpa não apoia massacres e outros atos de violência, mas na época se identificava como incel, uma subcultura virtual localizada em um microcosmo que também é conhecido como "machosfera", composto por grupos marcados pela misoginia. O discurso misógino não difere tanto do que vemos fora da internet, na sociedade como um todo, mas nesse universo ele é racionalizado e traduzido em termos menos óbvios, como "red pill" ou "a real".

Nas duas horas de conversa, Timpa contou detalhes dessa experiência incel, do ódio que sentia por mulheres - "vagabundas", nas suas palavras. Também contou como era ser um homem negro no subúrbio do Rio de Janeiro, como se sentia excluído da sociedade, como se fosse um "NPC" (non-playable-character), um personagem incapaz de tomar decisões sobre a própria vida.

Cerca de um ano depois, em 2020, Timpa me procurou para dizer que tinha se afastado desse universo. "Eu estava errado, estava megailudido", escreveu. Continuamos conversando desde então e, agora, na casa dos 30 anos, ele aceitou contar como entrou e saiu do mundo incel. "Minha vida só piorou", desabafa.

'Fiquei encantado'

Em 2014, Timpa esbarrou no blog "Vida de Pobretão", de um autor anônimo que escrevia sobre as frustrações de ser pobre e não conseguir ficar com mulheres.

Na época, calhou que Timpa estava passando por coisas parecidas. Ele tinha acabado de levar um fora de uma menina depois de um namoro curto — e isso se somou a outras frustrações sociais e amorosas acumuladas em seus quase 25 anos. "Era aquilo: branca, padrão. Ela viu que eu não tinha muita coisa a oferecer e não quis mais. Hoje eu entendo, tudo bem. Na época, eu não aceitava."

Outros internautas comentavam coisas parecidas nas publicações. Quando Timpa viu, estava frequentando um grupo fechado no Facebook de leitores desse blog. Era como se tivesse encontrado um lugar onde não seria julgado por ser quem é.

Batendo o olho, "Vida de Pobretão" parecia apenas um blog sobre finanças pessoais e dicas de investimento. Entretanto, o site liderou um nicho pouco conhecido fora da machosfera, mas muito influente, com publicações antifeministas, homofóbicas e abertamente racistas. "O cara falava só absurdo, mas eu não percebia isso, tava cego. Era só mulher, mulher, mulher. Aí fui indo: red pill, incel, essas coisas", diz Timpa. Aberto em 2012, o blog acabou em 2016, mas não raro é mencionado como algo que deixou um "legado".

O autor do blog cunhou termos que se popularizaram nesse universo, mas também foram assimilados pela internet mainstream nos últimos anos: "bostil" (para se referir ao Brasil), "Msol" (mãe solteira, figura detestada nos blogs masculinistas) e "chimpa" (chimpanzés, para citar homens sem estudo, dinheiro e condições sociais para vencer na sociedade). Timpa, na verdade, é uma adaptação de "Chimpa", apelido que ele próprio se deu quando frequentava a comunidade. Foi por causa do apelido que passou a usar uma máscara de gorila nas redes sociais para ocultar a identidade. "Fiquei encantado, defendia tudo que era falado ali."

Timpa conta que o que mais o atraiu foi a frustração com o gênero oposto. Lembra que sempre carregou um peso enorme da rejeição: diz que aprendeu "na porrada" o que é ser pobre, negro e, segundo ele, feio — trinca perfeita para que um jovem se interesse por grupos masculinistas, cujos membros em primeiro momento se mostram compreensivos e acolhedores. Até que ele notou que as coisas não eram bem assim.

Cinco anos depois, Timpa vê os incels como agentes ativos do aprofundamento da sua depressão e dos abusos de álcool. "Era só caras frustrados que achavam que mulheres são as culpadas por tudo da vida deles."

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Timpa frequentou uma comunidade misógina e hoje aconselha outros homens a se distanciar desse universo
Imagem: Arquivo Pessoal/UOL

'Virei pobre de direita'

Da janela de casa, na comunidade de Lins de Vasconcelos, zona norte do Rio, Timpa costuma observar jovens como ele andando de moto, indo nos bailes, namorando. Mesmo estando no mesmo bairro e na mesma classe social, ele não se sente e nunca se sentiu parte disso.

Não que tivesse incentivo da família para sair e se enturmar. Educado dentro dos conformes conservadores da Igreja Católica, era impedido de sair de casa para não se envolver em "besteiras" pela mãe, que temia que o filho tivesse um destino comum a jovens negros e pobres — prisão ou morte.

Fora de casa, Timpa sempre estudou em escolas públicas, onde conta que foi perseguido por colegas e professores. Quis largar os estudos em determinado momento, mas foi proibido pela mãe. Até hoje, imagina que teria sido melhor se tivesse saído. "Escola pública é um depósito de gente", sintetiza.

Por sorte, tinha computador em casa e pôde ir atrás de seus interesses, como animes e videogames. Logo começou a participar de comunidades virtuais para trocar figurinhas e chegou a frequentar eventos de anime no Rio, mas diz que isso mudou pouco tempo depois com a "elitização" do circuito. De novo, sentiu-se rejeitado.

Timpa tinha esperança, embalada pela fé católica e pelos filmes americanos, de que eventualmente poderia mudar seu destino, casar, ter filhos, família. Nada disso aconteceu — e o universo masculinista deu todas as respostas que ele queria.

Seduzido pelo discurso fácil de que mulheres, gays e comunistas são seus inimigos, o carioca conta que começou a seguir cegamente as dicas que eram passadas ali. Desistiu da ideia de ficar com mulheres, ficou mais hostil com elas, virou à direita. "Um pobre de direita", diz. "Virei um cara chato, brigão, xingava mulher. Até minha família reclamou."

Grande parte dos grupos e influencers da machosfera dizem se preocupar em ajudar no desenvolvimento pessoal dos frequentadores, mas qualquer sinal de melhora na vida de Timpa era criticado. Em um momento, ele chegou a conhecer uma garota, mas assim que compartilhou a experiência foi bombardeado de comentários negativos. "Logo falaram pra terminar com ela, porque ela ia roubar meu dinheiro. Mas que dinheiro?", questiona.

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Timpa (de máscara de gorila) posa para foto junto com um amigo
Imagem: Arquivo Pessoal/UOL

Acordando para a real

Timpa virou uma espécie de "porta-voz" dos incels, em dado momento, e criou o canal Vida de Incel no YouTube. Até então, pouquíssimos membros da machosfera falavam abertamente sobre o assunto, e o carioca era um dos poucos a usar a própria voz e a expor sua rotina para o mundo fora daqueles grupos. Por causa da atenção, começou a ganhar dinheiro monetizando os vídeos.

As coisas começaram a degringolar em 2020, quando ele deu uma entrevista para um podcast ouvido por masculinistas. O discurso confuso de Timpa não bateu bem com os ouvidos do podcaster e seus ouvintes. Aconteceu o que muitas vezes acontece: brigas, ataques pessoais e ameaças de morte. Ironicamente, não são feministas, gays ou outras minorias as responsáveis pelo dissolvimento desses grupos, são os próprios membros que costumam voltar entre si.

"Eu era um macaco de circo que só existia pra fazer os caras rirem", afirma Timpa. "Tudo que eu falava ali virava vitimismo. Não podia contestar nada ali dentro, era só o que os caras falavam e pronto."

Foi quando ele começou a acordar para a realidade: não estava num ambiente de acolhimento ou desenvolvimento pessoal. O que havia ali eram, segundo Timpa, apenas desculpas para odiar mulheres.

Hoje, Timpa lida sozinho com alcoolismo e depressão. Diz que prefere estar assim do que iludido pelo discurso que abraçou durante cinco anos. Não busca redenção, nem quer ser a história ideal de um "ex-incel", mas faz o possível para dissuadir outros jovens de cair nessas comunidades, sem muito otimismo. "Perdemos uma geração", afirma.

Desde que rompeu relações com os grupos, viu o relacionamento com a mãe melhorar. "Foi um peso enorme que saiu de cima de mim", conta. Também voltou a monetizar vídeos e transmissões ao vivo, desta vez no canal Timpacast no YouTube, onde comenta vida, videogame e jogos do Botafogo.

Quase cinco anos atrás, Timpa me disse que se sentia um figurante da própria vida, alguém incapaz de ter controle sobre o próprio destino. O pensamento estóico continua, mas ele tenta ter perspectiva para não enlouquecer. "Posso ser um figurante para outras pessoas, mas sou o personagem principal da minha própria vida", explica. "Mas prefiro ficar atrás da cortina, escondido, porque sei que se eu for pra frente delas logo alguém vai me tirar dali, cortar minhas asinhas."