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Casa símbolo da Ligas Camponesas guarda memória das lutas em Sapé (PB)

Elizabeth Teixeira (centro) com seus filhos em 1962, em Sapé (PB): personagem central na luta camponesa e no documentário "Cabra Marcado Para Morrer" (1984) - Divulgação
Elizabeth Teixeira (centro) com seus filhos em 1962, em Sapé (PB): personagem central na luta camponesa e no documentário "Cabra Marcado Para Morrer" (1984)
Imagem: Divulgação

Do TAB, em São Paulo

04/06/2023 04h00

As últimas semanas foram de celebração e rodas de conversa numa antiga casa de taipa, em Sapé, a 50 km de João Pessoa. Os moradores comemoravam finalmente o reconhecimento dos povos e comunidades tradicionais da região — inclusive aquela terra onde a casa está incrustada há mais de 50 anos: a comunidade ribeirinha de Barra de Antas.

É ali, sob o mesmo teto que abrigou a luta do povoado nas últimas décadas, que eles têm se encontrado para discutir as necessidades da região.

Tal qual aquela casa, a comunidade tradicional de Barra de Antas não mudou muito. O território ainda sofre com problemas de saneamento, moradia e falta de terra para produzir, e as mais de 200 famílias ainda são, na maioria, agricultores e pescadores, como seus pais e avós.

Naquele espaço, eles se chamam à maneira dos antepassados: são todos "camponeses", palavra que caiu em desuso nas muitas transformações sociais do campo. Para Alane Lima, que coordena as ações e conversas no local, é culpa da pecha de "subversiva" associada à palavra durante a ditadura militar (1964-1985).

O campesinato está entre as maiores vítimas do regime, apesar de o Estado pouco reconhecer isso. Segundo relatório da Comissão Camponesa da Verdade, divulgado em 2014, apenas 29 dos 1.196 camponeses assassinados pela ditadura foram reconhecidos como vítimas. E isso marcou profundamente a forma como os trabalhadores do campo se mobilizaram nos anos seguintes.

"No passado, se você falasse que era camponês, era logo perseguido. Diziam: 'Eu não, sou agricultor'. Deixar de se dizer que é camponês por medo é uma crueldade sem dimensão", diz a camponesa — e presidente do Memorial das Ligas e Lutas Camponesas, sediada desde 2017 naquela casa de paredes brancas.

Não é de hoje que a casa é símbolo da cidade. A estrutura original está de pé desde a década de 1950, quando foi criada a Liga Camponesa de Sapé, a primeira da Paraíba a reunir trabalhadores rurais em um movimento coletivo e a dar o pontapé na discussão da reforma agrária no Brasil.

Memorial das Ligas e Lutas Camponesas em Sapé (PB) - Weverton Rodrigues/MLLC - Weverton Rodrigues/MLLC
Imagem: Weverton Rodrigues/MLLC
Memorial das Ligas e Lutas Camponesas em Sapé (PB) - Weverton Rodrigues/MLLC - Weverton Rodrigues/MLLC
Memorial das Ligas e Lutas Camponesas em Sapé (PB)
Imagem: Weverton Rodrigues/MLLC

Com seis cômodos e muitas imagens penduradas em suas paredes, a casa ajuda a conectar o presente da comunidade com o histórico de luta, perseguição e morte a mando de latifundiários (o que aconteceu com os pais de muitos ali, inclusive os antigos moradores da residência).

João Pedro e Elizabeth

João Pedro Teixeira viveu e morreu pela causa dos agricultores de Sapé. Ele foi um dos fundadores da Liga Camponesa, em 1958, e liderou as primeiras reuniões com trabalhadores rurais em busca de assistência social e direitos.

Em 1961, após resistir à desocupação das terras e da antiga casa que ocupava com a mulher e os filhos, o líder camponês sofreu represálias violentas, que incluíam tiros frequentes contra a residência onde hoje existe o memorial.

No dia 2 de abril de 1962, João Pedro foi alvo de uma emboscada e assassinado com três tiros de fuzil, disparados por policiais trajados de vaqueiros. Era um "Cabra marcado pra morrer" (1984), como diz o título do célebre documentário do cineasta Eduardo Coutinho (1933-2014) — a produção sucumbiu à censura ao tentar contar a história das lutas dos camponeses da Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte, ainda nos anos 1960.

No enterro de João Pedro, compareceram 5.000 camponeses. Centenas de outros se associaram à Liga logo em seguida, totalizando mais de 7.000 filiados — um verdadeiro levante contra os latifundiários do estado, agora liderado por João Alfredo Dias (conhecido como Nego Fuba), Pedro Inácio e a viúva de João Pedro, Elizabeth Teixeira.

Elizabeth Teixeira no Memorial das Ligas e Lutas Camponesas em Sapé (PB) - Weverton Rodrigues/MLLC - Weverton Rodrigues/MLLC
Elizabeth Teixeira no Memorial das Ligas e Lutas Camponesas em Sapé (PB)
Imagem: Weverton Rodrigues/MLLC
Elizabeth Teixeira no Memorial das Ligas e Lutas Camponesas em Sapé (PB) - Weverton Rodrigues/MLLC - Weverton Rodrigues/MLLC
Elizabeth Teixeira no Memorial das Ligas e Lutas Camponesas em Sapé (PB)
Imagem: Weverton Rodrigues/MLLC

A imagem de Elizabeth é o coração do filme, da história de Sapé e está em todo canto no memorial. Na época com 37 anos, ela levou adiante o legado do marido e entrou de cabeça na luta, sofrendo as mesmas ameaças. Precisou mudar de destino e saiu de Sapé fugida. Ameaçada de morte, viveu 16 anos no Rio Grande do Norte, com o nome falso de Marta Maria, longe dos filhos. Foi encontrada apenas em 1981 por Coutinho, quando ele retomou o projeto do filme.

Hoje, aos 98 anos, ela mora com uma das filhas em João Pessoa. É a única liderança viva daquela época. Com saúde frágil, não conseguiu falar à reportagem do TAB, mas nos últimos meses gravou um longo depoimento em vídeo para o memorial, na mesma casa que dividiu com João Pedro e que foi invadida após o golpe de 1964.

"Queimaram tudo e sumiram com tudo do João Pedro Teixeira, toda documentação, roupas, registros", explica Alane. Hoje, a casa é tombada pelo Iphaep (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba), num processo acompanhado de perto por Elizabeth.

"Nas nossas primeiras caminhadas, ela não conseguia entrar na casa. Ela se sentia mal ao pisar em Barra de Antas, porque ainda tinha a dor da separação. Tem pessoas da família que ela só foi reencontrar em 2014", observa Alane.

Como nossos pais

O Brasil mudou muito de lá pra cá, mas a existência do memorial e agora o reconhecimento oficial das comunidades rurais de Sapé ainda não livram o território de ameaças.

Desde janeiro de 2022, os moradores da região têm visto topógrafos realizando medições nos arredores. Documentos encontrados os fazem acreditar que as comunidades recém-reconhecidas como tradicionais, Chã de Barra e Beira Rio, além de Barra de Antas, podem estar ameaçadas de inundação na construção de uma nova barragem.

Comício das ligas de Sapé (PB) em 1962 - Correio da Manhã/Reprodução - Correio da Manhã/Reprodução
Comício das ligas de Sapé (PB) em 1962
Imagem: Correio da Manhã/Reprodução
Encontro de moradores e camponeses no Memorial, em 2023 - Weverton Rodrigues/MLLC - Weverton Rodrigues/MLLC
Memorial das Ligas e Lutas Camponesas em Sapé (PB)
Imagem: Weverton Rodrigues/MLLC

Procurada pelo TAB, a Secretaria de Infraestrutura e Recursos Hídricos da Paraíba se limitou a dizer que são apenas estudos sobre o projeto. "Nada definido", diz a breve nota.

O reconhecimento do território como comunidade tradicional dá voz aos moradores para discussão de projetos como este, mas vão além. A expectativa de todos é garantir, enfim, serviços básicos e investimentos na região.

"É no lugar onde viveu a família Teixeira, e onde a luta camponesa explodiu, que ainda se encontram as piores condições de vida no campo", observa Alane.

Localizada à margem do Rio Gurinhém, Barra de Antas fica inacessível em período de fortes chuvas e cheia do rio. Não há posto de saúde, nem a presença do programa Saúde da Família. Há famílias que moram em casas de taipa em situação precária.

"A gente está falando de água potável, moradia, alimentação. Como é que os camponeses não têm acesso à terra? Se não há possibilidade de haver reforma agrária, que haja minimamente uma área produtiva no quintal, mas não há."

A casa dos Teixeiras serve de ponto de encontro, agenda de cursos e discussões do dia a dia prático. Em seus sete hectares, há também espaço para plantação — "era o que as Ligas sonhavam na época", observa Alane.

Memorial das Ligas e Lutas Camponesas em Sapé (PB) - Weverton Rodrigues/MLLC - Weverton Rodrigues/MLLC
Memorial das Ligas e Lutas Camponesas em Sapé (PB)
Imagem: Weverton Rodrigues/MLLC

A história das Ligas exposta na parede tem mudado a forma como a população da região enxerga a luta camponesa. "Muitas pessoas têm aversão ao movimento das Ligas. É um processo. As pessoas são contra até entender que há uma conexão entre uma coisa e outra. Quando se há um processo formativo de diálogo, das crianças até os adultos e os idosos, há um despertar. Eu acho que o memorial cumpre esse papel de conectar as ligas com as lutas do presente. E de eles se reconhecerem ali", explica Alane.

Moradora do assentamento Padre Hygino, Alane tem uma vida entrelaçada à Barra de Antas, revelada quando ela passou a levantar documentação e fotos para o memorial. "Descobri que o terreno onde hoje é a comunidade foi doado pelo meu tataravô, e que minha mãe e meu pai se encontravam na casa onde hoje é o memorial. A reforma agrária foi a salvação da minha família", diz.

"Voltar para a comunidade numa outra perspectiva é contribuir com espaço e memória. É sobre a vida dos nossos pais, mas também sobre as nossas."