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Fã de forró, russo suspeito de espionagem fingiu ser brasileiro por 12 anos

Clara Rellstab

Do UOL, em São Paulo

14/06/2023 04h00

No seu perfil no Facebook, Victor Müller Ferreira, nascido em Niterói e morador de São Paulo, curtiu a banda Fundo de Quintal e a página de humor Irmã Zuleide. Recebeu uma declaração de amor da namorada, acompanhada de um emoji de coração. Reclamou da realização da Copa do Mundo no Brasil, em 2014. Compartilhou matéria do Buzzfeed com uma lista das piores coisas que os brasileiros escutam quando estão fora do país e lamentou: "O pior é quando me dizem: 'Você não parece ser brasileiro'". O que os amigos da rede social não sabiam, até então, é que ele não era mesmo.

O homem branco e loiro por trás do perfil "tipicamente brasileiro", na verdade, se chama Sergey Vladimirovich Cherkasov. Ele foi preso, em 2022, no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, após ter sua entrada barrada em Amsterdã, na Holanda, por possuir documentos falsos. O rapaz estava prestes a começar um estágio no Tribunal Penal Internacional de Haia, onde foi aprovado como brasileiro nato. De acordo com o Serviço de Inteligência Holandesa, se Sergey não tivesse sido descoberto, teria acesso a informações sigilosas e conseguiria senhas para todos os sistemas digitais da organização — que, inclusive, pediu a prisão do presidente russo Vladimir Putin em março deste ano.

Antes de chegar ao Brasil, em 2010, ele vivia em Kaliningrado, na Rússia, a serviço da GRU, a maior agência de inteligência do país — o próprio Putin já foi espião ali. Os recrutados são treinados na Academia Militar do Estado-Maior das Forças Armadas de lá. Alguns são escolhidos para se tornarem espiões ilegais, um esquema da época da Guerra Fria que foi restaurado por Putin, no qual os agentes criam uma identidade falsa em um novo país. É o caso do Sergey.

O russo chegou ao Brasil em 2010 e, após dois anos vivendo em Brasília, mudou-se para o bairro do Butantã, em São Paulo. Vivia num dos quartos de 10 m² do condomínio-república localizado na Rua Abadia dos Dourados, 542 — a maioria é equipada com cama, geladeira, micro-ondas e armários. Contas de água, luz e internet estão inclusas no aluguel que, atualmente, varia entre R$ 800 e R$ 1.200. A escolha da cidade ou da rua não foi justificada oficialmente por Sergey, mas o lugar fica a menos de 5 km do consulado russo da capital paulista. Sob a alcunha de Victor, ele frequentava churrascos, baladas, namorava e fazia aula de dança todos os dias.

"Ele me disse que queria aprender a dançar porque era muito tímido e não conseguia interagir com as meninas nas baladas", conta Pheliphe Britto, professor de dança e um dos melhores amigos de Victor na cidade. Sobre a vida pessoal do rapaz, pouco sabia. "[Victor] falava que trabalhava numa agência de turismo e que estudava para concurso, não sei se era para o Ministério Público ou para trabalhar em cartório, alguma coisa assim".

Em um currículo de Victor disponível online, ele registra que trabalhou de março de 2011 a janeiro de 2014 na Soleil Viagens e Câmbio Ltda, localizada no Rio. Entre as atividades relatadas por ele, quase todas envolviam o manejo de dinheiro e operação de câmbio. Contatada pelo UOL, a empresa diz nem sequer conhecê-lo.

O estudo para um concurso do Ministério Público, na realidade, era voltado para conseguir a aprovação no curso de ciências políticas na Trinity College, prestigiosa universidade em Dublin, onde ele esteve entre 2014 e 2018, usando a identidade brasileira. Lá, além de ter sido representante da turma e professor assistente, desenvolveu uma pesquisa sobre como ONGs financiadas com dinheiro estrangeiro atuaram durante a crise política e tentativa de golpe militar na Turquia, em 2016. Formou-se com honras e não teve dificuldade de ser aprovado, em seguida, para um mestrado em Relações Internacionais na Universidade John Hopkins de Washington, nos Estados Unidos, entre 2018 e 2020.

Enquanto estava no mestrado, engajava-se constantemente em debates que envolviam a Rússia e escolheu como orientador o professor associado Eugene Finkel, que tem a política do Leste Europeu como um dos principais temas de estudo. O docente, que chegou a escrever a carta de recomendação para Victor utilizada na inscrição para o estágio do Tribunal de Haia, tuitou a respeito do aluno, assim que a notícia da sua prisão foi divulgada. "Aquele bastardo poderia ter chegado a lugares ainda maiores e causado muitos danos. Estou feliz que o capturaram. Ainda não digeri que fui usado como ferramenta nesse jogo", escreveu.

Em depoimento à polícia brasileira logo que foi preso, Sergey disse que escolheu estudar ciências sociais "por ter compaixão e por gostar de lutar contra a tirania e outros tipos de opressão". Relata ainda se ver, no futuro, trabalhando em locais que enfrentaram conflitos de longa duração. Admitiu que, sim, já esteve na Rússia — mas somente durante a Copa de 2018.

Como russo fingiu ser brasileiro por 12 anos  - Reprodução/Redes sociais - Reprodução/Redes sociais
Imagem: Reprodução/Redes sociais

Construindo o personagem

Entre os objetos encontrados com o russo estava um pen drive que continha um documento de Word, escrito em primeira pessoa, com diversos erros de português, no qual Sergey descreve a história de vida de Victor Müller Ferreira. O brasileiro inventado por ele nasceu em 4 de abril de 1989, em Niterói. A mãe, Juraci Eliza Müller, havia morrido pouco tempo após o nascimento dele, enquanto o pai, Júlio José Escalda Ferreira, de cidadania portuguesa e moçambicana, não tinha interesse em assumi-lo. Ele foi criado, então, por uma tia argentina, Pilar Palácio, que o levou para Buenos Aires com apenas dois anos de idade — motivo pelo qual seu português não era dos melhores.

O período no Brasil foi suficiente, somente, para que ele não se esquecesse da vista da ponte Rio-Niterói — que ele chama pelo nome oficial, "Presidente Costa e Silva" — e do cheiro forte de mariscos que vinha de um porto que havia perto de sua casa. Ele fala que acha que é por isso que não gosta do sabor de peixe e afins, "ao contrário dos outros brasileiros que adoram os dons [sic] do mar". O relato a respeito da juventude no país hermano, entretanto, é repleto de detalhes minuciosos e uma escrita que flerta com a literatura — um caderno de poesias escritas pelo russo também está sob posse da polícia brasileira.

A princípio, ele e a tia costureira viviam numa pensão de três andares. "O quarto sempre estava cheio de moldes e rolos de tecido de várias cores. Não deixava que ele tocasse na sua máquina de costura, que era a 'única coisa que ainda funcionava na vida dela'", escreveu. Na adolescência, para complementar a renda da casa, arranjou emprego numa oficina mecânica. "Pneus se empilhavam pelas paredes e o lugar cheirava a óleo de máquina. Nas paredes, um pôster de Veronica Castro jovem, que depois foi substituído por outro da Pamela Anderson."

No documento, ele escreveu que Victor não gosta de lembrar do passado, época em que ele sofria bullying por causa de sua aparência e sotaque — por parecer alemão, o chamavam de gringo, reclama. Também conta que, após a tia ter morrido de insuficiência cardíaca, passou por bastante dificuldade financeira e emocional, mas resolveu terminar a escola. Nos exames finais, escolheu as matérias consideradas mais difíceis — porque ele era "ambicioso e queria provar a si mesmo que, apesar do baixo status social, era capaz". Para a faculdade, cogitou algo que o permitisse ser comentarista político ou jornalista, mas se deu conta de que não teria condições de cursar o Ensino Superior. Sem enxergar saída, decidiu procurar o pai, cujo endereço lhe fora dado pela tia.

Em agosto de 2012, saiu da Argentina pela primeira vez e foi ao encontro do pai, no Rio. O homem até era aberto e carinhoso, ele diz, mas Victor não deixava de culpá-lo pela morte da mãe e pelas dificuldades posteriores. Por isso, apesar do desejo de aproximação de Júlio José, o rapaz decidiu que era hora de alçar novos voos sozinho e se mudou para Brasília no mês seguinte. Na capital federal, conta que pagava R$ 550 pela estadia, tinha aulas particulares de português e, nos tempos livres, passeava. Gostava de restaurantes a quilo, especialmente do "A Tribo", que, segundo ele, faz a melhor feijoada da cidade. Também era frequentador assíduo da balada do clube Macadâmia, único lugar em que conseguia dançar "música no estilo transe [sic]".

Como russo fingiu ser brasileiro por 12 anos  - Reprodução/Redes sociais - Reprodução/Redes sociais
Imagem: Reprodução/Redes sociais

Erros de continuidade

Quando foi interrogado pela Polícia Federal, Sergey tinha em mãos a certidão de óbito da suposta mãe. Ao entrarem em contato com a família de Juraci Eliza Müller, a polícia foi informada de que, sim, ela havia mesmo morrido, mas que, além de não ter tido qualquer filho, não havia sequer se relacionado com homens — era uma lésbica convicta. A respeito do suposto pai, não foi encontrada qualquer informação. Sobre a tia argentina, tampouco. E, quando solicitaram às autoridades argentinas detalhes sobre o número de identidade que Victor portava, receberam a resposta de que aquele registro era, na verdade, de uma pessoa do gênero feminino.

Ainda que afirmasse que veio ao Brasil pela primeira vez em 2012, não há nenhum registro que comprove a entrada do cidadão Victor Ferreira no país — além disso, seu RG e certificado de alistamento militar são datados de 2010, ou seja, anteriores a essa suposta primeira entrada. A trapalhada documental também foi localizada na carteira de habilitação do "brasileiro", que possui a foto de um homem totalmente diferente de Victor — após investigação, descobriu-se que a imagem era de uma pessoa chamada Vladimilson, natural de Goiás.

Em relatório, a PF afirma que tanto a maternidade quanto o cartório não existem mais — deste último, só restou o livro. "Ficou a dúvida se Victor realmente nasceu ou se a identidade dele foi criada propositalmente com um pai de nacionalidade portuguesa, o que seria importante para a aquisição da nacionalidade portuguesa posteriormente", diz o documento. Antes de ser preso, Sergey já havia encaminhado toda a papelada necessária para se tornar cidadão português. Foi para obtê-la, aliás, que ele havia adquirido, pouco tempo antes, um apartamento em Cotia (SP), para que sua residência no país pudesse ser comprovada.

A documentação mais recente que Sergey emitiu como Victor Müller Ferreira foi obtida com ajuda de uma tabeliã aposentada de São Paulo, com quem o rapaz cultivou amizade. Em e-mails trocados com o seu supervisor, a quem ele chamava de Diver, o russo revela que estreitou laços com a mulher a partir de conversas sobre "astrologia, filmes e comediantes de stand-up brasileiros", e que eles chegaram a se encontrar mais de trinta vezes. "Ela autenticou todos os documentos do 'pai', anulou as multas por não votar no Brasil por 5 anos, limpou meu CPF e autorizou a compra do meu apartamento, de modo que não vou ter que demonstrar a origem do dinheiro", escreveu. A mulher, diz ele, é muito religiosa e acredita que ajudar o próximo a levará ao Paraíso. Ainda assim, aceitou de presente do russo um colar Swarovski avaliado em US$ 400.

Foto do passaporte russo de Sergey Vladimirovich Cherkasov - Divulgação / FBI - Divulgação / FBI
Foto do passaporte russo de Sergey Vladimirovich Cherkasov
Imagem: Divulgação / FBI

Próximos capítulos

Após dois meses de prisão — e de algumas visitas de representantes do consulado russo —, Sergey admitiu não ser brasileiro. Disse que cometeu um pequeno crime na Rússia e que fugiu para não ser preso. Veio para o Brasil, gostou do país, achou o clima "bom e agradável", e resolveu se mudar para cá. Como não seria possível trabalhar sem documentos, falsificou-os. Continua afirmando, no entanto, que não é um espião russo e que a sua renda, na verdade, vem da comercialização de bitcoins.

Em um primeiro momento, a Rússia afirmou que o cidadão Sergey Vladimirovich Cherkasov não possuía antecedentes criminais, mas já mudou de posicionamento. As autoridades afirmam que ele cometeu o crime de tráfico de drogas no país e que, por isso, deve ser extraditado. Eles solicitaram, ainda, que Sergey fosse transferido da prisão da PF, em Brasília, onde está agora, para o consulado russo, de onde aguardaria a decisão do governo brasileiro — honraria que não condiz com o status de traficante a ele estabelecido. Em depoimento ao Supremo Tribunal Federal, Sergey afirmou que gostaria de voltar à Rússia e cumprir pena por lá, ainda que ela seja maior do que os 15 anos por falsidade ideológica pelos quais ele foi condenado em solo brasileiro.

O pedido de extradição feito pelo governo russo está sob relatoria do ministro Luiz Edson Fachin. Em março, ele chegou a sinalizar decisão favorável à entrega de Sergey, mas isso só aconteceria com o fim das investigações da PF. Em 25 de abril, no entanto, toda essa história ganhou mais uma camada. O governo dos EUA também pediu ao Itamaraty a extradição de Sergey, com a justificativa de que ele cometeu crimes atuando como agente estrangeiro em solo norte-americano, sem autorização, além de fraudes financeiras.

Agora, as autoridades brasileiras terão de decidir para onde ele vai. O imbróglio acontece num momento em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva — responsável por dar a palavra final a respeito da extradição — tenta pôr panos quentes na relação com ambos países. Diante da intensificação da guerra com a Ucrânia. Informações de bastidor do Ministério da Justiça dão conta, no entanto, que a forma com a qual os Estados Unidos têm lidado com solicitações brasileiras, como a extradição do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, têm pesado contra uma decisão favorável aos estadunidenses.

Contados pelo UOL, o Consulado da Rússia, o Itamaraty, o Ministério da Justiça e Segurança Pública e os advogados de Sergey não responderam às solicitações de entrevista, até a publicação desta reportagem.