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'Como na série CSI': Maní, o vira-latas da polícia que fareja sangue humano

O cãozinho revelou talento digno dos melhores detetives e é capaz de identificar vestígios de sangue diluídos numa proporção de 0,00000000001 ml - Bruno Pimenta/UOL
O cãozinho revelou talento digno dos melhores detetives e é capaz de identificar vestígios de sangue diluídos numa proporção de 0,00000000001 ml Imagem: Bruno Pimenta/UOL

Paula Maria Prado

Colaboração para o TAB, de São José dos Campos (SP)

17/06/2023 04h01

"Busca!" Ao ouvir o comando de seu tutor, começa a brincadeira. Maní, um vira-lata de pelo preto brilhante, abaixa o focinho farejando o espaço. Estamos em um ambiente de mata com árvores, terra fofa úmida e folhas secas espalhadas pelo solo. Em menos de três minutos de varredura, o cãozinho se posiciona marcando o local: tem vestígio de sangue humano ali. E tinha.

Com 4 anos e 13 quilos, Maní é o único cachorro do país capaz de identificar vestígios de sangue humano, segundo a Polícia Científica de São Paulo. Adotado aos 40 dias de nascimento e treinado desde pequeno, o animal tornou-se um instrumento para desvendar crimes em cenários adulterados — principalmente locais que foram limpos e lavados pelos criminosos.

O espaço de treino em questão — controlado — fica atrás do prédio do núcleo de São José dos Campos (SP) da Polícia Científica, que atua em todo o Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira.

Faro finíssimo

A gota de sangue farejada por Maní, diluída 1ml X 10 -¹º em água (equivalente a 0,00000000001 ml) e colocada dentro de um tubo de ensaio sem tampa, é invisível a olhos humanos nus. Mas para o cachorro o odor é tão evidente quanto a vontade de ganhar sua bolinha azul a cada acerto.

Maní, o cão farejador de sangue - Bruno Pimenta/UOL - Bruno Pimenta/UOL
Desempenho do cão é tão impressionante que seu tutor prepara um artigo para um evento de ciências forenses
Imagem: Bruno Pimenta/UOL

"Nada para Maní é trabalho. Tudo é uma grande diversão", conta o médico veterinário João Machado, 40, há dez anos perito criminal da Polícia Científica. É ele que, a cada acerto do animal, o afaga, pega a bolinha, a aperta e joga. Também é João o responsável pelo bem-estar do animal, que come comida "de verdade" preparada por sua esposa, Lívia, também médica veterinária. A saúde de Maní é muito bem cuidada: uma vez por ano ele é submetido a exame de sangue, eletro e ecocardiograma.

"Quando João me procurou e contou do seu projeto de treinar cães para detecção de sangue humano, achei a ideia fantástica, mas fiquei reticente", admite Silvio Garcez, diretor do Núcleo de Perícias Criminalísticas de São José dos Campos. "Jamais poderia imaginar que um cachorro pudesse fazer isso. E hoje, Mani é uma realidade. Temos cerca de 30 casos em que ele deu 'match' e botou vagabundo na cadeia."

Machado teve a ideia de treinar um cão depois de ingressar na corporação, em 2013. Ao mesmo tempo em que se encantou com técnicas e procedimentos usados na resolução de crimes "parecidos com o que se vê na série CSI", como diz, deparou-se com desafios da área forense. Entre elas, a pesquisa por mancha de sangue latente, ou seja, aquela que foi removida por água ou sofreu processo de decomposição com o tempo.

Maní, o cão farejador de sangue - Bruno Pimenta/UOL - Bruno Pimenta/UOL
'Jamais poderia imaginar que um cachorro fizesse isso', diz Silvio Garcez, do Núcleo de Perícias Criminalísticas
Imagem: Bruno Pimenta/UOL

Odor de sangue bem 'printado'

O uso de substâncias quimioluminescentes é comum em espaços reduzidos. Mas, em lugares amplos ou áreas externas, tem dificuldades técnicas, a começar pela necessidade da escuridão total para que o perito veja a reação. Há ainda o gasto de produto, tornando a investigação onerosa, uma vez que cada frasco, que permite entre 50 e 60 metros de exame, pode custar até R$ 3.000.

Outro desafio é o fato de a solução reagir ao ferro, substância não exclusiva no sangue humano — podendo reagir a ferro oxidado ou a sangue de animais. Maní não se confunde com isso. Para ele, os vapores orgânicos liberados pelo sangue humano formam um bolsão em torno de onde a mancha se encontra fácil de identificar.

"Fui pesquisar como outros países estavam lidando com as limitações que temos hoje na área e encontrei iniciativas ainda embrionárias de treinamento de cães na Dinamarca e na Noruega", conta Machado. Nesses países, cães em geral eram treinados para localizar cadáveres, a partir do odor de grandes massas em decomposição. A preparação de cães para perceber pequenas quantidades, mesmo gotas, de sangue é outra.

"Eles começaram a treinar cães que detectam só o sangue e obtendo bons resultados", lembra o perito criminal, que iniciou um longo processo de adestramento de Maní, partindo de socialização e comandos básicos, até exercícios com gotas de sangue doadas por colegas da própria corporação.

"Vi que ele estava pronto quando, durante uma brincadeira num parque, Maní espontaneamente apontou sacos de lixo de forma muito incisiva. Fui verificar e havia um absorvente lá. Ou seja, ele já estava com o odor de sangue bem 'printado'", relembra Machado.

Maní, o cão farejador de sangue - Bruno Pimenta/UOL - Bruno Pimenta/UOL
Maní apontou para sacos de lixo: havia um absorvente ali. 'Vi que ele estava pronto', diz o treinador
Imagem: Bruno Pimenta/UOL

Investigação mais ágil e econômica

O perito obteve autorização da Polícia Científica para levar Maní a campo com os policiais e o cachorro mostrou um índice de acerto de 100%, tornando o trabalho mais ágil e econômico.

Em seu primeiro caso, Maní tinha um ano e seis meses e fez a varredura de um pequeno galpão em São José, possível cenário da execução de um homem. O local estava limpo. Em dois minutos ele apontou o espaço atrás de uma escrivaninha. Quando os policiais puxaram a mesa, encontraram um furo com um projétil alojado. Logo adiante, Maní apontou o chão.

"Ele identificou a mancha de sangue depois da vítima ter levado o tiro e o que parecia ser vestígios do arrasto do corpo", admira-se Machado. Os investigadores comprovaram o feito com uso de substâncias quimioluminescentes. "Buscamos então imagens das câmeras [de segurança] no entorno e descobrimos um veículo. Levamos o cão, ele apontou dentro do carro onde havia sangue também." A reconstituição passo a passo permitiu que o corpo fosse achado e a história do crime pudesse ser recontada.

Maní, o cão farejador de sangue - Bruno Pimenta/UOL - Bruno Pimenta/UOL
O pagamento pelos serviços prestados? Ganhar sua bolinha azul a cada acerto
Imagem: Bruno Pimenta/UOL

Mas, afinal, o que o faro de Maní consegue identificar no sangue humano? O que há de tão específico que ele percebe mesmo no material muito diluído? É o que a Polícia Científica em parceria com a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) em São José estão tentando descobrir.

"Quando vi que ele detectava manchas que até as quimioluminescentes tinham dificuldade de marcar, comecei a entender que a questão da diluição era um ponto sensível. Porque tem uma hora que não dá para reduzir mais a mancha de sangue fisicamente, então comecei a reduzir bioquimicamente", conta Machado. Segundo seu tutor, Maní já chegou a identificar uma gota de sangue diluída até 1ml X 10 -¹² vezes em água.

Maní, o cão farejador de sangue - Bruno Pimenta/UOL - Bruno Pimenta/UOL
'Nada para Maní é trabalho. Tudo é uma grande diversão', diz o veterinário e perito criminal João Machado
Imagem: Bruno Pimenta/UOL

Agora, Polícia Científica estuda a criação de um protocolo para o uso de novos cães farejadores de sangue pelo país. E, pela primeira vez, o estudo será apresentado por Machado, que é aluno de mestrado da Unifesp, em um artigo no Interforensics, evento de ciências forenses que acontecerá em Brasília em agosto deste ano.

Para o futuro, São José deve ganhar mais uma aliada no combate ao crime: Savana, cachorrinha recém-adotada pelo perito criminal, já em treinamento.