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Paixão de Lina Bo Bardi por animais incluía formigas e até baratas

"Gateira": a arquiteta Lina Bo Bardi e alguns de seus felinos na famosa Casa de Vidro, no bairro paulistano do Morumbi - Arquivo Instituto Bardi
'Gateira': a arquiteta Lina Bo Bardi e alguns de seus felinos na famosa Casa de Vidro, no bairro paulistano do Morumbi
Imagem: Arquivo Instituto Bardi

Mônica Manir

Colaboração para o TAB, de São Paulo

05/03/2023 04h01

Na Casa de Vidro de Lina e Pietro Bardi, que avança com destemor sobre a natureza, dois habitantes se prendem ao solo daquela escarpa do Morumbi há mais de 50 anos. São os jabutis Casco e Folha, testemunhas longevas do quanto o casal de italianos amava os bichos e os cultuava no dia a dia enquanto moraram na residência paulistana, ícone da arquitetura moderna.

Casco e Folha, cujos nomes foram dados por quem hoje cuida do lugar, vivem no Jardim das Rosas, um recôndito da Casa de Vidro. Os dois eram três até o ano passado, quando um deles desapareceu. São remanescentes de um grupo de dez jabutis — todos machos — que ali habitavam, juntamente com uma fauna fértil de papagaios, cobras, lagartos, uma arara, cachorros e gatos — muitos gatos. Mais de 20.

"Lina era muito gateira", diz o arquiteto Renato Anelli, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e curador da Casa. Ele lembra, por exemplo, que a arquiteta representava a si e ao marido como gatos nas correspondências que trocavam quando longe um do outro - ela, por vezes, esparramada languidamente numa chaise longue, ele invariavelmente retratado como Gato Elétrico, a saírem setinhas do corpo como raios nervosos.

No pavimento do jardim da Casa, Pietro desenhou um gato no concreto ainda fresco. O felino está lá, eternizado, de rabo altivo.

Jabuti na Casa de Vidro Lina Bo Bardi - Mônica Manir/UOL - Mônica Manir/UOL
Os jabutis Casco e Folha vivem há 50 anos no Jardim das Rosas da casa de Lina e Pietro
Imagem: Mônica Manir/UOL

'Muccas' da Casa de Vidro

A primeira geração de gatos da Casa de Vidro teve início em 1956, quando os Bardi foram presenteados com dois espécimes birmaneses pelo restaurador francês Germain Bazin, curador e historiador de arte do Museu do Louvre. Pietro o teria conhecido quando exposições itinerantes do Museu de Arte de São Paulo (Masp), entre 1954 e 1957, circularam por várias cidades da Europa (Paris, Londres, Berna, Milão, Utrecht, Dusseldorf) e depois por Nova York e Ohio. Em 1956, o Masp, idealizado por Pietro e projetado por Lina, patrocinou o livro L'Architecture Religieuse Baroque au Brésil, de Bazin.

Dizem que um dos caseiros batizara todas as gatas fêmeas, muitas delas malhadas, com o nome de Mucca, que significa "vaca" em italiano. Duas Muccas, já da segunda geração e com as quais o casal não chegou a conviver, chegaram a idades surpreendentes. A cinza rajada, que temia chuva e trovões, tinha 16 anos quando faleceu em 2016. Está enterrada no jardim da Casa.

A última das Muccas, com faixas em preto e branco, resistiu até os 23 anos. Arisca de início, passou a se deixar acarinhar na maturidade. Era a estrela das visitas ao lugar (a casa foi aberta ao público em 2015), num discurso ecológico casado com o dos educadores.

A gata seguia para o tour a partir do seu território favorito, o espaço do forno e da churrasqueira. No Carnaval de 2020, pouco antes de estourar a pandemia de covid-19, Mucca teve uma grave infecção, que a debilitou. Uma das funcionárias da Casa a levou para morarem juntas. Dela, a funcionária cuidou até a morte, no sábado ensolarado de 23 de outubro de 2021.

As cinzas de Mucca estão em uma urna, que deve habitar um dia a Casa de Vidro — onde jazem as cinzas de Lina e Pietro.

Casa de Vidro Lina Bo Bardi - Mônica Manir/UOL - Mônica Manir/UOL
Projetada em 1950, é marcada por um bloco frontal de vidro apoiado sobre pilotis que se projeta sobre a mata
Imagem: Mônica Manir/UOL

Gata Bo e Gato Pardi

Pietro Maria Bardi nasceu na comuna de La Spezia em 1900. Achillina Bo, mais conhecida como Lina Bo, era de Roma, quatorze anos mais nova que seu gato elétrico. Partiram os dois da Itália em direção ao Brasil em 1946, deixando para trás a amarga recuperação europeia do pós-guerra.

Chegaram carregados de arte e cultura, com um acervo de obras de arte até então inédito no país. O projeto da Casa de Vidro surgiu na cabeça de Lina em 1950. Seria a primeira residência a ser construída no antigo Jardim Morumby. Os dois lotes, provenientes do loteamento de uma fazenda de chá, ficavam bem no alto, rodeados por uma vegetação exuberante da Mata Atlântica.

A ideia era se integrarem ao verde e aos bichos, mas não só. Também queriam incentivar artistas e arquitetos que moravam em São Paulo a montarem suas residências-ateliês por ali.

Lina Bo Bardi e os gatos - Eloisa Mara/Divulgação - Eloisa Mara/Divulgação
Mucca toma seu sol na arborizada propriedade, sede do Instituto Bardi
Imagem: Eloisa Mara/Divulgação

Em novembro de 1952, Lina e Pietro se mudaram definitivamente para o bairro na zona sul. A Casa era marcada por um bloco frontal de vidro apoiado sobre pilotis que se projetava sobre a mata sem guarda-peito. Lina gostava de se sentar ali, a balançar os pés livre e vertiginosamente, tendo atrás de si uma extensa sala repleta de objetos e obras de arte.

No bloco de trás, encravado no terreno, ficava a área íntima, com dormitórios, banheiros, closet. Interligando internamente os blocos, uma cozinha de perfil industrial. Mais pra trás no terreno, o tal forno a lenha, recinto predileto de Mucca.

A sala projetada para o mundo virou ponto de encontro de intelectuais, artistas e arquitetos, como o italiano Gio Ponti, o americano John Cage, os baianos Glauber Rocha e Gilberto Gil, que aspiravam a natureza e expiravam discussões culturais, políticas, sociais.

E os gatos a absorver e a ronronar tudo isso. Como escrevera Gil: "Sou um gato esperto / Não sou tatu, não / Não sou nem no mato / Quando eu ganho a rua / Eu ganho corpo / Nada eu acho chato."

Cartaz Lina Bo Bardi - Divulgação - Divulgação
O cartaz desenhado por Lina afugentou a Brastemp, que manteve o patrocínio mas tirou seu logotipo
Imagem: Divulgação

Não achate as baratas

A ligação de Lina com os animais se estendeu além e acolá da Casa de Vidro. Uma exposição de 1985 chamada Entreato para Crianças, da qual foi curadora e que ocorreu no Sesc Pompeia, atesta sua preocupação com o bem-estar dos bichos. O Sesc é outra cria revolucionária desta italiana naturalizada brasileira.

Na entrada do evento, um texto seu explicava aos grandes e aos pequenos a que veio a exposição: "Importante: os brutos não falam, isto é, é difícil entendê-los. Mas além dos bichos amigos (o pet dos ingleses), há bichos vagabundos visíveis ou quase invisíveis, os bichos caseiros, aranhas, baratas, besourinhos, ratinhos, todos eles estrelando a casa na espera da bomba do pesticida".

E continuava: "Está claro (ou não está claro) que existem (ou podem existir) zonas 'cinzentas', isto é, intermediárias entre o branco e o preto, zonas que permitem a convivência, o respeito e a atenção, que não permitem que as formigas sejam pisadas, as baratas achatadas a esmo, bichinhos gentis mortos de uma mãozada, assim como flores amassadas na planta, galhinhos desfolhados por um interlocutor ou conservador distraído".

Além de bichos esculpidos em várias formas e materiais possíveis, havia ilustrações científicas e viveiros transparentes com colônias vivas de baratas e formigas. "Uma fartura que as crianças saboreavam felizes", afirma o cenógrafo e designer Vitor Nosek, que conviveu com Lina por uma boa década.

Para o cartaz da exposição, Lina pintou uma barata e uma formiga e incluiu entre os dois insetos uma foto dela ainda criança, com capuz de renda e sapato de boneca. Mais abaixo, a advertência: "Não pise as formigas, não mate as baratas*". Mais abaixo ainda, numa letra com tamanho de pulga, a explicação para quem estivesse interessado no asterisco: "*Isto é, invés de matá-las, use o 'tratamento preventivo': tudo limpinho em casa, sequinho, refrigeradinho, sem cisquinhos e migalhas. O bichinho volta ao Mato de onde veio".

Nosek afirma que, ao ver o layout do cartaz, a direção de marketing da Brastemp, patrocinadora da exposição, agradeceu simpaticamente e pediu para eliminar seu logotipo do anúncio: "O patrocínio continua, mas Brastemp e barata no mesmo impresso não vai funcionar". Lina não se intimidou.